Quem faz um blog fá-lo por gosto

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

What's in a name?

Junho de 2013 - Aurora recém-nascida e António com as suas caretas e dentes partidos (Foto: A Família Numerosa)


"What's in a name? That which we call a rose
By any other name would smell as sweet"
Romeu e Julieta (II, ii, 1-2) William Shakeare


Cada gravidez é uma gravidez, mas tirando a parte da supresa e do pânico iniciais, das náuseas e vómitos fora de controlo até às 16 semanas de gestação, e de pairar sempre uma sombra de um risco para a minha saúde mas, sobretudo, para a vida desta criança que tomou de empréstimo o meu corpo para dele fazer a sua primeira morada, não há como negá-lo: é a quarta vez que que passo por este turbilhão de brutais mudanças que andam num vai-vém e à velocidade da luz; são quatro vezes que passo nove meses guiados por luas e marés; são quarenta semanas (mais duas menos duas) vezes quatro.

Been there. Done that. (Este é um post bilingue)

Não é bonito de se admitir, mas não há novidades nas incontáveis sensações que podem encontrar-se descritas em qualquer exemplar dos milhões impressos d' O que se espera quando se está à espera (é a quarta vez que o leio com a avidez e a quarta vez que está à minha cabeceira, como uma Bíblia).
Trato por tu todos os desconfortos e inchaços variados com que vou tendo que lidar (o pior deles é o do nariz Savimbiano lá para o final do mês nove); conheço tim tim por tim tim diversas dores, como as lombares, azia, ciática, e as temidas contracções uterinas (que na primeira gravidez me tombaram numa cama às 24 semanas); reconheço ao mínimo sinal os super-poderes que me são atribuídos nos nove meses em que a Natureza me concede a dádiva de gerar uma vida - não tentem jamais um homem desesperado (continuo muito shakespeariana) e não se metam, muito menos, com uma mulher grávida, que é um ser assustadoramente sobrenatural -; e não me surpreendo com a intuição acutilante e certeira com que vou tomando decisões e gerindo o equilíbrio desta minha família (numerosa).

A (ben)vinda desta menina vem desequilibrar a dinâmica de género lá por casa. Até agora tínhamos filhos com géneros interpolados e geometricamente calendarizados de cinco em cinco anos: menina-menino-menina.Sabíamos que havia apenas duas hipóteses em cima da mesa, e com a mesmíssima probabilidade de poderem vir a acontecer: ou vinha o equilíbrio dos dois casalinhos de filhos pirosos, ou o mundo era mesmo das mulheres e a começar pela nossa casa.

Confirmado que não vou ter que mexer no post "E agora tu, filha', há uma carga logística mais leve pela frente - as roupinhas da Aurora estão há poucos meses lavadas, passadas e dobradas, com saquinhos de alfazema ainda fresca, em caixas de plástico bem fechadas, arrumadas na tulha do topo do roupeiro do quarto -, há a certeza também de que iremos gastar muito mais dinheiro nas próximas décadas, porque eu não vou resistir às piroseiras de vestidos, folhinhos, rendinhas, lacinhos e à tentação de vestir as mais novas de igual. Até aqui tudo bem, sem surpresas. O único problema que temos pela frente é a missão quase impossível e de gigantesca responsabilidade de escolher o nome da nossa terceira menina, do nosso quarto filho.

Não está fácil, não é mesmo nada fácil, e é uma enorme e rebuscada tarefa aquela que vamos ter pela frente, com cuidado para o cosmos se alinhar e nos revelar, em jeito de epifania, o nome próprio perfeito e a conjugação melódica com a carrada de apelidos que acoplamos sempre aos nossos filhos em memória dos seus avós.

Quando eu gosto o pai não gosta (Rosa é um nome tão bonito, porquê????); quando o pai gosta eu torço o nariz (por mais doce que seja Ângela há aquela malvada alemã fada madrasta de todos os portugueses). Quando a Carolina dá a sua opinião de primogénita eu imagino-me a viver na margem sul (Nicole não me convence de todo, lamento querida!). E quando o António, que recebeu a notícia da confirmação do sexo da irmã e ao mesmo tempo o jogo Spiderman III para a PSP com um sonoro e sentido 'Adoro Meninas!', me bate à porta do quarto, atirando o invulgar nome de Anaís ( sem eu - juro - o ter iniciado na literatura erótica), ponho-me a imaginar de sobrolho franzido a maldade dos colegas da escola e do liceu a chamarem-na de "Anais", ou mesmo da minha vizinha Anália, que o meu pai, gozão que era, passou a vida a chamar de Orália.

Na demanda shakespeariana do what's in a name descobri este blog delicioso: http://nomesportugueses.blogspot.pt/
E, de repente, tenho um post it rabiscado cheio de possibilidades e nenhuma certeza: Oriana, Anaís, Clarice, Paloma, Luzia, Lúcia, Amélia (que o pai não gosta mas eu insisto, desistindo do Rosa), Serena, Agnes, Lucinda, Melissa, Camila (e o pai a dizer que depois a chamam de 'Camela'), Ema, Cândida (e eu a tentar esquecer que é nome de fungo), Isabela, Violeta, Míriam, Carmo, Celeste, Dulce, Emília (e o Sítio do Picapau Amarelo), Glória, Hortense, Jacinta....

Que se marque o concílio para que seja revelado, com graça, delicadeza e suplèsse divina, o nome da querida Infanta.

(A Aurora tem o nome mais lindo - podem tirar-lhe o epíteto de filha mais nova, mas não lhe podem tirar isso)




quarta-feira, 6 de agosto de 2014

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Quando eu for grande quero ser...

Setembro de 2013 - a Aurora, com quatro meses, olha de esguelha, a medo, para as palhaçadas do António


Depois de toureiro, disparado só para me pôr os nervos em franja, o António ontem disse querer ser homem do lixo. Não sei se era para testar, ou para me ver a entrar numa lenta combustão espontânea, tipo banho-maria, ou se a fase de imundice, pela qual todos os meninos passam, se estendeu, agora, a um fascínio pela carga toda pronta e metida em contentores, boleias à pendura no camião mal-cheiroso pela noite fora, como um cão que teima em ir com a cabeça de fora da janela, com as beiças e a língua ao sabor do vento. Às vezes quer também ser médico do INEM e acho que não está nem aí para o Hipócrates e seu nobre juramento: é mesmo pela velocidade, pela adrenalina, pelo barulho frenético das sirenes e os efeitos psicadélicos das luzes de emergência.

Ontem, ao jantar, falámos de profissões, do futuro.
Tudo começou com mais uma minha tentativa para que arrumassem aquilo que desarrumam. 
Faltam ainda duas semanas para entrar de férias, mas a escola dos mais novos já fechou há quase dez dias e a da mais velha há mês e meio que não há nada para ninguém até Setembro. 
O João recusou traduções e revisões para estar em compasso de espera e babysitter da catraiada até irmos todos em procissão dar banho à minhoca. Acho que vai chegar lá exangue e esfrangalhado - ainda bem que se seguem três semanas de dolce fare niente e ausência de Internet e televisão.

O poder destruidor daquele trio de filhos em férias é assustador. Por menos tempo que o pai os deixe em casa, conhecendo o seu poder ciclónico de desarrumação, é diariamente um tormento - o universo tende para o caos e tudo começa ali no nosso apartamento.

Ontem cheguei a casa ao final da tarde e não havia nada sobre nada: almofadas do sofá espalhadas pelo chão, num puzzle esquizofrénico, dezenas de embalagens dos malditos Danoninhos coleccionáveis e temáticos, como pinos de bowling tombados a todo o comprimento da casa. A Aurora tinha pratinhos e talheres de plástico de brincar como num piquenique fandango, a Carolina e a maldita moda dos elásticos tipo erva daninha por todo o lado, com os gatinhos animados a comerem-nos e arriscarem uma visita dias mais tarde à urgência veterinária.

Eu, sem saber o que fazer à vida ou para o jantar, tentei ter uma conversa séria com os mais velhos:
"Filhos, não tarda seremos seis. Mais três gatos e um cão. Filhos, já pensaram na Lola - a nossa fada-do-lar uzbeque -, todos os dias a arrumar as mesmas coisas, para além de pôr a roupa a lavar, a passar a ferro, a fazer as camas... Vocês têm que ajudar a mãe e a Lola. Opá, a mãe até vos paga, como paga à Lola, mas têm que começar a ajudar; não dá mais!".

Rapidamente a Carolina quis indagar das condições salariais e contratuais da Lola. 
E, mercenária-empreendedora como é (está sempre a sacar dinheiro ao irmão, vendendo-lhe bugigangas variadas; o embaixador morcão que o Relvas arranjou há uns tempos para dar o exemplo à juventude preguiçosa ficaria orgulhoso da minha mais velha), prontificou-se logo a arrumar tudo. 
Cinco minutos depois estava tudo um brinco, e a minha alma estava parva. Afinal, não estou a criar uns incapazes; apenas um par de miúdos mimados a quem nunca foi pedido nada. 
Obviamente que os subornei à la Pavlov com reforço positivo: trazia na mala há alguns dias um jogo em enésima mão para a Playstation, para um dia perfeito de um futuro também ele mais que perfeito em que toda a gente se portasse exemplarmente.

Depois voltámos às profissões. 
A Carolina espantou-se pelo quanto a Lola e a sua mãe, Nargeeza, trabalham todos os dias, em três casas diferentes, para poderem dar uma vida melhor àqueles que ficaram naquele país da ex-União Soviética, onde muçulmanos se cruzaram com mongóis dando origem a gente feições impressionantes, olhos claros e em bico, estaturas enormes, sorrisos amarelos com muitos dentes de ouro implantados na boca e, acima de tudo, uma ética de trabalho absolutamente irrepreensível.
E aquilo comoveu-me, tal como me comovem os recados que a minha filha mais velha deixa escritos à Lola, em cirílico, usando a ajuda do Google Translate - não faço ideia o que lhe escreve; é entre elas...


A Carolina revela então que quer ser caixa de supermercado só por uns dias, para experimentar aquela coisa boa, relaxante, de passar códigos de barra sem pensar em mais nada (até a compreendo; tenho o mesmo fascínio sempre que vou a uma fábrica, ou quando estou no talho ou na peixaria e me perco com a faca afiada a fazer filetes ou a destripar um cantaril). 

Diz-me também que, na Kidzania, caixa de supermercado é uma das profissões mais concorridas do recinto onde as crianças brincam aos crescidos e as marcas fazem lavagens de cérebro em estratégias de marketing brutalmente bem feitas. O Belmiro pode, portanto, ficar descansado: não há bebés e crianças que cheguem para renovar geraçãoes neste país, mas as que foram paridas têm desde já um fascínio pela registadora do supermercado, pelo cheiro das notas e do vil metal que apenas lhes passará pelas mãos por escassas fracçõess de segundos em horas e horas intermináveis de horários selvagens por turnos. 
Pelo sim pelo não temos que passar a ir às caixas self service para ver se isto lhe passa...

Sei bem que ela quer ser cantora. 
Outrora eu também quis ter o mesmo destino, mas foram-me cortadas as asas: "Podes sempre cantar no duche e nos tempos livres, mas tiras um curso". 
Costumo dizer que o meu pai, pintor boémio, irresponsável, arruinou todas as possibilidades de um seu filho ter uma carreira artística. O seu mau exemplo caiu-nos sempre em jeito de ameaça: "E queres ser como o teu pai?"

 (E a verdade é que, por mais atribulada e imperfeita que fosse a nossa relação, feita de arrufos e distâncias, eu sempre quis, eu apenas quis a sua aprovação e validação a vida inteira)

A minha querida cunhada mais nova, a Joana, diz, fascinada com os meus distintos e variados talentos: 'Podias ter sido qualquer coisa; é impressionante!'. E eu, no gozo, remato sempre: 'E, no entanto, perdi-me, e não fui nada!". 

Percebo bem o que ela quer dizer, que é elogio e não um lamento, como fazia o meu avô ao meu pai, pelas grandes expectativas goradas, pelo destino grandioso que não se cumpriu. Com tanto jeito, para tanta coisa, eu poderia ter tido a carreira que quisesse (menos para a Matemática, tudo menos matemática!). Mas não fui o que queria ser, aquilo que sempre me fez mais feliz, que me era tão fácil de executar que não poderia nunca ser um trabalho - até parecia mal!

Hoje em dia um curso superior nada vale: o centro de emprego está cheio de gente jovem a ver a vida por um canudo, muito lá ao fundo, num emprego que não é mais do que uma miragem numa travessia pelo deserto. Os call centers e as caixas de supermercado também estão cheios de malta licenciada.
Portanto, se a Carolina quiser ser cantora pode ser cantora à vontade, com o pleno e total apoio da família. 
Se quiser caixa de supermercado, ainda que por uns dias, também não há mal nenhum; não nos caem os parentes à lama.

Ò António, e que tal canalizador, filho? O que achas? Ou electricista?

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Quem faz um filho fá-lo porquê?


Ontem fomos capa da Notícias Magazine.
'Detonámos' o photomaton improvisado numa salinha de reuniões do edifício do DN.
Caretas e mais caretas (o António estava com um à-vontade quase sobrenatural, mudando de pose e expressão facial/ corporal a cada disparo), gargalhadas que fizeram doer a barriga (e até já havia piolhos nas cabeças dos putos e nós ali, todos juntinhos, de encontro a uma parede, mesmo a pedi-las) e, no final, o António já queria que a jornalista - instantanemeamente baptizada de 'tia' (tão betos estes meus filhos...) - fosse viver cá para casa, com os seus dois filhos, cedendo para o efeito o quarto dos seus pais (antevê-se um regabofe de amigos no nosso T3+1 daqui a uns anos, com esta facilidade social da peste loira).

Nesta família numerosa não há timidezes fotográficas, porque a vida é demasiado curta para aparecermos de trombas, ou com vergonha da papada do pescoço (a Carolina ficou descontente a páginas-tantas por não ter soltado o cabelo). Aqui estamos nós, para a posteridade, sem tirar nem pôr: rimos alto, roçamos diariamente o caos, a nossa vida é uma montanha-russa.

[É claro que a Aurora, manteve a compostura - nem outra coisa se esperava da minha (ainda) pequenina]

Caretas à parte, o assunto é muito sério.
Temos três filhos. O quarto vai a meio da sua viagem e encontro marcado para aquele que será o primeiro açoite da vida no traseiro.

Disse isto na entrevista, mas não passou, muitas outras histórias, menos cor-de-rosa, tiveram que ser contadas na reportagem: sentimo-nos ridículos por ser endeusados, por nos colocarem o epíteto de 'corajosos', por termos a módica quantidade de quatro filhos.
Parece-me sempre ridículo, despropositado, desproporcionado o espanto e o deslumbramento. Ao João, que tem cinco irmãos e sete tios, ainda mais.
Mas desde quando quatro é ter muitos filhos?
A partir do momento em que temos o dobro  de filhos da média nacional é, de facto, preocupante.
Questiono-me muito sobre o porquê deste deserto de crianças no país. Há, obviamente, situações limite e com a taxa de desemprego jovem nos píncaros onde se mantém será difícil inverter urgentemente a pirâmide demográfica - aquelas coisas que estudávamos no ciclo a Geografia e achávamos que não iam servir para nada explodem-nos assim, na cara, já adultos.
Mas olho ao meu redor, para os meus amigos e para os meus colegas, e a explicação é outra: há estabilidade, há emprego, e eu não tenho o direito de criticar seja quem for das suas escolhas ou opções, mas a explicação é outra no mundo por onde me passeio diariamente.

Abdicámos e abdicamos de muitas coisas para erguer esta família?
Claro que sim!
Só na mensalidade das creches dos pequenos era um city break pela Europa a dois. Imagino-nos românticos, de mãos dadas, ao pôr do sol, por Paris; aos saldos, em Londres, pela Oxford Street, a mandar moedas de cêntimo, e a pedir desejos idiotas, enquanto nos lambuzamos com gelados, na Fontana de Trevi, em Roma...

Mas mudávamos alguma coisa? Não!
A casa está sempre desarrumada, brinquedos que nascem de geração espontânea, tralha por todo o lado, os gatos arranham o sofá barato e o cão às vezes faz xixi à entrada da casa, estragando os bonitos tacos de pinho do hall. Não há gelados italianos, mas os da Olá são porreiros também. Não mudávamos mesmo nada. As viagens ficarão para quando esta malta estiver crescidinha, e aí vamos recuperar o tempo perdido (nem que seja de autocaravana em regime hippie)


Fazemos alguns malabarismos?
Sim!
A ginástica não é o meu forte (nem dos meus filhos, tadinhos, tão desengonçados), mas o pai sabe fazer girar três bolas ao ar e especializámo-nos noutras atracções circenses mais mundanas: jantamos menos vezes fora (e quando o fazemos é num tasco), não vamos de férias para hotéis, ou vivendas alugadas com piscinas, mas temos casas de família nas beiras e nos Açores. Não temos cartões de crédito, abdicámos do seguro de saúde (lálálá, e agora estou grávida e tenho uma cesariana para pagar se me quiser dar ao luxo de ter mais conforto e o meu médico à frente da marquesa), tudo lá em casa é em segunda mão (do carrinho de bebé à máquina do café; da carrinha de sete lugares ao vestido deslumbrante da bebé, comprado por 0,50 cêntimos nos saldos da Humana For People do Intendente), mas pinto o cabelo de três em três semanas no salão (70 por cento de mais de 60 centímetros de cabelo branco assim obrigam). E Aurora usa fraldas caras, da Dodot; há coisas em que, por enquanto, ainda não precisamos de abdicar.

Falta-nos alguma coisa?
Não!
Temos quatro filhos porque temos a sorte de ter bons empregos, com flexibilidade, e uma família que nos acode logo se algo falha, ou à mínima ameaça.

Temos muita sorte?
Sim!
Nascemos com o cú virado para a lua.

Fizemos estes filhos por gosto. Somos uns felizardos. Não é um acto de bravura; é todos os dias um acto de amor.

[Reportagem aqui: http://www.noticiasmagazine.pt/2014/quem-faz-um-filho-fa-lo-porque-2/]