Quem faz um blog fá-lo por gosto

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Fumo branco! Habemus nomen!

A Aurora quer-vos contar um segredo: o sofrimento de ter uma irmã anónima acabou. Sim, acabou! A partir de hoje, não vamos mais ficar encabelados, deprimidos, corados e, sobretudo, mudos, quando, a torto e a direito, esquina sim, esquina não, todo e qualquer ser humano que se depara com a proeminente barriga pergunta, natural e inocentemente : 'E como se vai chamar o bebé?'

A minha irmã mais nova vai chamar-se Isaura.

(Como a minha bisavó paterna que, um dia, lá pelos anos 30 do século passado, pouco tempo antes de se apaixonar por um rapaz com um apelido esquisito nos corredores da Faculdade de Farmácia, picou o olho numa roseira de uma quinta senhorial do Barreiro, para onde ia ver os golfinhos a saltar felizes pelo Tejo. Mas isso há-de ser para outra história.)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Ontem à noite...

Não quero ir à escola. Eu tenho uma doenxa!!!

As noites têm sido chorosas, por tudo e por nada diz que nunca mais me faz olhos de bambi se não lhe fizer as vontades todas. Amua, choraminga, pede colo e mimo. Ontem à noite, lágrimas gordas, agarrado a um peluche da irmã mais nova:

- Mãe, amanhã não quero ir para o primeiro ano!!!
- Filho, mas porquê, meu anjo? Vais aprender as letras, a contar até a um milhão...

Com voz de falsete, e sotaque de ogre Shreck:

- É que eu tenho uma doenxa!!!


(ai)

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Mudam-se os tempos... mudam-se as mochilas do primeiro dia de aulas...

[Fixem o meu nome, parece ela dizer ao mundo]

Mudam-se os tempos mudam-se as mochilas e aquilo que lá vai dentro para o primeiro dia de aulas.

Hoje foi a vez da mais velha se estrear no sexto ano (este ano há exames nacionais outra vez...). Regresso às aulas molhado (e espero que seja como nos casamentos e que, pelo menos, abençoe todas as crianças neste novo ano lectivo que agora começa) e as mochilas dos meus filhos este ano têm menos cheirinho a novo.

Revimos na fila de trânsito interminável que, inexplicavelmente, se forma a qualquer hora da manhã ao longo da Avenida de Roma (e um percurso de dois minutos passa a demorar 15 ou mais apenas porque sim, sem qualquer explicação racional ou lógica), o que NÃO vai e NÃO pode acontecer este ano lectivo.

A lista de "nãos" que fui enumerando com a força anímica das férias a ser sugada pelas bátegas de chuva que caíam no pára-brisas (entretanto, a nossa carrinha de sete lugares, a única na qual poderemos seguir todos daqui a um par de meses entrou em negação com as partidas de mau-gosto de São Pedro e o pára-brisas deixou de funcionar) inclui:

"Não me vais trazer recados na caderneta dos professoras ou da DT; não vais arranjar sarilhos picuinhas com as tuas amigas e dramas imbecis; não me vais perder casacos, guarda-chuvas e equipamento da ginástica por puro desleixo; não me vais extraviar o cartão da escola à razão de três vezes por semana; não te vais atrever a andar com folhas do dossiê rasgadas, dobradas e escritas com uma letra garrafal inexplicável; não me vais esconder o lanche que não comeste na escrivaninha..."


E preparava-me para continuar na minha lista de nãos quando me lembrei da psicologia positiva, e tentei inverter o discurso e mudar de faixa ao mesmo tempo para não chegarmos atrasados para o primeiro dia de aulas. Respirei fundo e declarei: "Vais fazer tudo como deve ser, tenho a certeza. Este ano vai correr muito bem; vais entrar com o pé direito!"

Deixo-a à porta da escola - já não fico ali a dizer adeus e de lágrima ao canto do olho (essa lamechice acabou o ano passado; correria o risco de a envergonhar perante os pares, para mais com aquela manada de irmãos mais novos, que aos 10/ 11 anos têm sempre o condão de ser irritantes por mais adoráveis que sejam).

Pela primeira vez não tive nada a ver com a roupa do primeiro dia de aulas da minha filha mais velha. Nunca teria escolhido a tee shirt pindérica da Violetta, as calças de ganga pingonas, os ténis da Nike. Ontem à noite pediu-me para lhe fazer caracóis e foi a minha única intervenção no seu primeiro dia de aulas do sexto ano de escolaridade. Dividi o couro cabeludo em madeixas, torci-as, e enrolei-as nuns papelotes improvisados com elásticos coloridos que lhe deram um colorido afro ao visual.Acho que anda com inveja dos caracóis da Aurora, tão gabados como a cor dos seus olhos. E, por isso, dormiu com a cabeça cheia de puxinhos a noite toda - já tem idade suficiente para saber que mulher bonita não tem frio, dores nos pés e passa por alguns desconfortos abnegadamente sem queixume - e hoje tinha o desejado penteado que seria o seu uau factor do primeiro dia de aulas. Deixou-me pôr-lhe uma fita no cabelo, concordou com a sugestão. Resumo-me à minha insignificância.

A semana passada também me deu dores de crescimento. Pediu, ainda que com jeitinho, para que parasse de lhe comprar roupa de criança, com folhinhos e rendinhas; que agora teria as bebés (a pequenina inclusa continua anónima) para acalmar os meus fervores de piroseira pura. Andámos depois à caça de uma saia de tule para usar com botas da tropa rosa shock (encontrámo-la a muito bom preço, ainda em saldos, na Vertbaudet) e o mais temido momento da compra do primeiro soutien está também ao virar da esquina, mas vai ficar para mais tarde, pois o meu pobre coração de mãe de quatro não aguenta isto tudo ao mesmo tempo.

Mas este ano as compras do regresso às aulas foram mesmo muito limitadas. Não gastei mais do que vinte euros nos dois filhos em escolaridade obrigatória. A Carolina nasceu em tempos de vacas gordas, foi filha única anos a fio, e é certamente quem mais está a estranhar esta nova realidade do estica, reutiliza, poupa, passa de irmão para irmão.

O meu querido António leva para o seu primeiro ano de doze de escolaridade uma mochila e estojos usados nos anos anteriores do pré-escolar; os lápis de cor eram da irmã; os de carvão também (o que não falta lá por casa são dezenas e dezenas de lápis e canetas), novo novo só mesmo o caderno diário (o dossiê e capa do colégio também eram da irmã, assim como o fato de treino e tee shirts da farda - eles ainda não lêem, por isso, ainda tenho uns meses para retirar o bordado 'Carolina Ralha' para 'António Ralha'), os lápis de cera e a borracha.

A Carolina continua a ter privilégios de primogénita mimada e a avó materna comprou-lhe mochila e estojo novos a fazer pendant. Há um dossiê, três canetas Bic básicas, dois lápis de carvão e uma borracha novos, mas lápis de cor, canetas de feltro, esquadros, réguas, compassos, transferidores é tudo reaproveitado do ano passado. Não aderimos ainda aos livros em segunda mão (para já) e, por mais apertado que esteja o orçamento, de uma coisa não abdicamos: fazemos as compras do regresso às aulas na papelaria do bairro; é lá que encomendamos os livros escolares com os mesmos dez por cento de desconto que as gigantescas cadeias revertem em talão ou em cartão. Gastamos mais um euro ou outro na meia dúzia de coisa que comprámos novas, mas temos ali uma amiga e garantimos dois postos de trabalho.

Mudam-se os tempos, mudam-se as mochilas... vamos lá ver que mais mudanças nos vão bater à porta...




segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O primeiro dia de aulas do meu rapaz

Mochila às costas, nervoso miudinho à flor da pele: 'Estou com dor de barriga, mãe!".
Não há nada que não se resolva com uma boa careta!

Senti logo ao acordar que, apesar da sua leveza do ser, aquela que o faz pairar sobre a vida com despreocupação, sorriso e covinha na bochecha permanentes, o meu loiro amanhecera nervoso, e que o regresso ao rotineiro tique-taque matinal, aquele em que eu ando de um lado para o outro como uma louca, em contra-relógio, segundos contados para dar comida aos gatos, fazer pequenos-almoços, ajudar a vestir, lavar os dentes, ajeitar os calções, saias e camisolas, desembaraçar cabelos fininhos loiros, pôr ordem a cabelos grossos também de cor dourada e enfeitar cabeleiras encaracoladas morenas - basicamente as minhas manhãs resumem-se num chorrilho de ordens - o apanhara noutra disposição menos zen do que é costume. 

Havia uma electricidade no ar e não era do miserável tempo de trovoada. Hoje o dia tinha qualquer coisa de bomba-relógio, prestes a rebentar. E ele sabia-o bem; pode parecer um totó despreocupado sempre na sua, mas intuição não lhe falta. 

"Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida, pequenote. É o teu primeiro dia de aulas." Diz-se-lhe isto e a ansiedade manifesta-se logo de imediato. Aprendeu com a irmã mais velha a roer as unhas e só de olhar para aquele sabugo até dói.

Logo pela manhã resmungou no banho (será que a fase 'Cascão' algum dia vai passar?), é uma trip de berros e choro com a qual ninguém merece começar o dia e, depois, enquanto lhe penteava a trunfa volumosa molhada, reclamou, alto e bom som, e a pedir mimo: "Mas quando é que me começam a cair os dentes?" 

(Também pede um milagre para que a cabeça lhe encolha um pouco para poder, como todos os amigos, passar pelas grades das escadas do recreio. Pobre filho, cabeçudo!)

É dura esta coisa de entrar um ano mais cedo para a escola. Desgraçadas das crianças do final de Dezembro; tardasse mais dez dias quentinho no ventre e carimbavam-lhe o passaporte para mais um ano de brincadeiras e infantilidades variadas. 

A sua revolta estomatológica é justificada. Entre os colegas anda tudo desdentado e encantado com a fada dos dentes. E há já quem tenha uma boca pequenita plantada de dentes enormes, desproporcionados, quase disformes.
Não há realmente justiça numa emancipação forçada, mas que tarda em materializar-se em queda de dentes... Então ele, que os traz partidos há tantos anos, e nem um a abanar para amostra! PObre menino de sua mãe.

Ir para a primeira classe (eu sei que agora se chama primeiro ano, mas há algo retro na 'primeira' e eu gosto do culto vintage) tem que se lhe diga, mesmo que se permaneça na mesma instituição e com quase o mesmo grupo de amigos que acompanha esta jornada de vida desde os oito meses de idade.

Em primeiro lugar há uma fronteira invisível no recreio. Agora, ele está do lado dos crescidos, território inexplorado, longe das caras que o acompanharam este tempo todo da sua primeira infância. Há caras novas também, o charme discreto do loiro terrorista das pestanas douradas, cicatriz na têmpora e dentes partidos vai ter que ser accionado rapidamente e em força para conquistar a Bárbara, que o vai acompanhar nos tempos livres nos próximos quatro anos, e sobretudo junto da Professora Elsa, que será a professora mais importante de toda a sua vida (mas ainda não lhe contei esse segredo)

Ele sabe-me nervosa também e tem gozado o prato sempre que pode. Sabe que é o meu menino de ouro, o meu único rapaz, e que a sua emancipação me dá dores de crescimento. Gozão como só ele consegue ser, junta as mãozinhas como se estivesse a rezar ao Santo António, faz os seus 'olhos de Bambi' doce - aqueles que quando me zango à séria e lhe dou uma palmada no rabo ele jura que nunca mais me fará - e imita o "Gumball", dos desenhos animados do Cartoon Network, suspirando: "Ahhhh, crescem tão depressaaaaa...."

Começou o pagode, agora não há nada a fazer, ele está a crescer e eu não posso tê-lo ao colo para sempre (até porque a barriga já vai para o sétimo mês de gravidez). 

Na semana passada, a de habituação ao lado do recreio dos crescidos, semana inteiramente dedicada a brincar, passou a ser caloiro franganote e foi, basicamente, 'praxado'.

Numa manobra básica para conquistar popularidade, ou numa tentativa de mera sobrevivência, levou a sua gigante colecção de Tazos e Invizimals,para o recreio. Ambas ficaram reduzidas a meia dúzia de cartas fatelas, rasgadas e dobradas, e Tazos riscados. "Eles precisavam das cartas para acabar a colecção", disse-me, crédulo, ou sabendo-a toda, mas fingindo que não, que não tinha sido afiambrado pelos crescidos, recebendo como troca umas migalhas de simpatia.

Sim, crescem mesmo depressa, e a partir daqui nada será como antes. 
E se, por um lado, tenho o coração encolhido, por outro, anseio pelas primeiras composições, pelas taralhoquices variadas que virão escritas - decerto - com uma caligrafia horrível de rapaz.

E ainda há uma semana era férias. 
A chuva e o regresso às aulas, ao trabalho e às rotinas enterraram esse assunto definitivamente. Suspiro.



quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Espalhem a notícia: há luz na casa do "Manga-Manga"!

Em 1948, o meu avô Oliveira regressa do Zaire, fortuna feita após décadas de trabalho árduo com vista para o maior rio e para o Porto de África, e constrói uma pequena casa na pequena aldeia onde nasceu, no Concelho de São Pedro do Sul. Com a enorme humildade com que levou toda a sua longa vida, manda embutir na fachada, junto à porta da entrada, este azulejo, como um mantra, uma lição para a vida e um recado para as gerações que se seguirão. Devemos-lhe tudo; ele é o nosso maior exemplo. Este post é sobre as férias d'A Família Numerosa na Casa do 'Manga-Manga', em São Félix, São Pedro do Sul.

Espalhem a notícia: há luz na casa do "Manga-Manga"!

Foi mais ou menos assim que o boato correu montes, espichou pelos fontanários, cirandou pelas águas frescas do Sul, do Vouga e do Paiva.

Vagueou bem cedo de madrugada pelos cafés, chegou a meio da manhã às tabernas, acompanhada por um bagaço e à boleia de uma nuvem de fumo negro do escape de uma Famel. Surgiu sem convite nas conversas banais, habitualmente acerca da meteorologia. Surpreendeu mais uns quantos à saída de um dia igual a tantos outros, de costas vergadas no lameiro, olhos postos no chão e na terra revolvida pela sachola tatuada nas palmas da mão.

Nas quintas, entre galinhas, vacas e pastos secos, cheios de cardos, cacarejou-se muito e ruminou-se mais um quanto sobre a segunda vida da casa do Senhor Oliveira do Entroncamento de São Félix. Muito preguiçosamente e ao sétimo dia, surgiu murmurada, depois de cumpridas muito religiosamente e com o sotaque colombiano do novo pároco, as Ave Marias e Padres-nossos redentores da missa do Domingo: há novamente luz na casa do “Manga Manga!”.
Ámen!

Compreende-se o entusiasmo com esta coisa da luz: a casa do “Manga-Manga”, no Entroncamento de São Félix, encruzilhada à beira da Estrada Nacional, onde os antigos ainda contam lendas sobre lobisomens e outras superstições, foi a primeira da aldeia a ter electricidade.

Em 1948, chegou àquele cruzamento um gigantesco caixote de madeira. Lá dentro estava um complexo gerador de electricidade, para o qual foi construído de propósito um anexo. Depois, fez-se luz. E mais caixotes de madeira chegaram: um frigorífico a petróleo, e um esquentador que prometia aquecer as águas e quem sabe os ânimos no gélido inverno de Lafões. E talvez seja por esta façanha pioneira que a casa do "Manga-Manga" consta do megalómano painel de azulejos que a pequena e rural freguesia de São Pedro do Sul tem à sua entrada. 

O mundo exangue, a sair da escuridão da Segunda Guerra Mundial e, quase ao mesmo tempo, o “Manga-Manga” regressava à pequenina terra que o viu nascer, no virar do século XIX para o XX, debaixo de muitos maus presságios, inúmeros agoiros e histórias tristes de miséria.

Ironicamente, o “Manga-Manga” conhecia bem de perto a natureza do mal que a Europa atravessava, devastada, numa segunda idade das trevas vivida em pleno século XX.

O “Manga-Manga” regressava agora à aldeia colada às Caldas de Lafões onde apareceu boiando uma imagem de São Pedro pelas águas do Sul, rebaptizando a terra, trazendo consigo o advento da electricidade, depois de muitas décadas de ausência. Ele chegava, triunfante e como uma atracção de circo, entre o espanto e o temor, depois de uma vida reescrita, década após década, com uma caligrafia muito bonita à beira da margem esquerda do rio Congo, e do maior e único Porto navegável de águas profundas da África Central.

Filho de um vil predador sexual que nunca ninguém ousou enfrentar, e de uma mulher muito simples e humilde que simplesmente desistiu de viver depois de lhe ter sido arrancada a pureza de forma animal num moinho, o “Manga-Manga” recusou ser vítima das circunstâncias e de uma qualquer maldição pela forma grotesca como foi gerado.

O meu avô tinha sonhos tão grandes como o rio Congo.

Se calhar eram até tão megalómanos como os do tirano rei Leopoldo da Bélgica que, de forma bárbara, se tornou dono e senhor de uma região com mais de dois milhões de quilómetros quadrados no coração da África, cometendo, impune, um dos maiores crimes contra a Humanidade da História: o genocídio de cinco milhões de congoleses, a escravidão e subjugação de um povo, o saque dos seus recursos, borracha e marfim, que tantos palácios luxuosos erigiram em Bruxelas, a ouro manchado de muito sangue.

Ao contrário do soberano da Bélgica, sanguinário sem precedentes a quem a História não fez e provavelmente nem fará o julgamento devido, amaldiçoando-o para todo o sempre, homem vil que nem sequer se dignou na sua vida de pura maldadea pôr um pé no "seu"  Congo, o “Manga-Manga” tinha um coração tão grande como os seus sonhos, tão doce como uma manga madura. “N’Tima Manga” lhe chamavam os nativos – o coração da Manga, em kikongo, o dialecto do país.

Não sei, não tive tempo de lhe perguntar que fascínio era aquele que tinha com as mangas, se era alguma referência à muito pequena cidade de Manga-Manga, na Província de Katanga, perdida lá no coração febril de África, de onde nem o Google a consegue resgatar.

No império que construiu - e que depois perdeu na independência do Congo Belga, na década de 60, tendo chegado há uns meses uma ridícula indemnização da República Democrática do Congo pela 'zairinização' do trabalho de uma vida inteira -, o meu avô plantava sempre um par de mangueiras. Nos anuários de negócios dos portugueses em África deixou-me para memória futura os seus anúncios: “Manga-Manga – Commerce Générale”. Nas arcas de madeiras exóticas africanas da casa da minha mãe estarão também estão guardadas as coloridas capulanas com o seu logótipo e aquelas duas árvores do seu fruto favorito.


“A Casa do Manga-Manga, no Entroncamento de São Félix voltou a ter luz!”

A notícia correu aos sete ventos e animou as gentes numa excitação apenas comparável ao nascimento de uma criança nas aldeias desertas. Até no Fujaco se falou disso, aldeia preservada de xisto, perdida no tempo, num outro tempo, meia dúzia de habitantes eremitados em casas frescas de pedra.

Não se falou de outra coisa durante uns tempos: a neta e os bisnetos do “Manga-Manga” voltaram à terra, ligaram as luzes, e com a ligação à rede vieram as recordações do gerador e da sua luz incandescente, da grafonola portátil, do frigorífico a petróleo, dos jardins de dálias e rosas, do mau-feitio da minha avó, do coração inesgotável do meu avô, do nascimento do meu tio Zé, e de como a cozinheira o ressuscitou, emergindo-o em água fria e água quente até àquele bebé de cinco quilos soltar à força o seu primeiro grito de vida.

Seguiram-se muitas visitas de cortesia de perfeitos desconhecidos, trazendo consigo cestos de fruta e outras coisas tão boas que a aquela terra dá a quem se lhe verga. Chegaram invariavelmente de faces rosadas, abelhudos, sem um pingo de vergonha: quiseram espreitar, saber se mantínhamos o frigorífico (pois claro que sim) e se o gerador ainda funcionava (temos ali o manual de instruções, havemos de experimentar um dia). Espantaram-se, decerto, com a simplicidade da nossa estada e do facto de não termos televisão e maples catitas.Apontámos sempre para o azulejo da fachada: “A casa quer-se pequenina para ser igual a um ninho. O amor na casa pequena anda sempre aconchegandinho.”

Sei, sem ingenuidades ou fervores românticos, que a vida da aldeia é feita de intriga baixa, de invejas comezinhas. E compreendo-o, digo-o sem qualquer rancor ou sobranceria: a vida da aldeia é de uma dureza sem precedentes e isso deixa cicatrizes no coração, não sou ninguém para o julgar.

Creio que demos muito material para aquecer o Inverno rigoroso, melhor do que o enredo da novela que há-de estrear para a semana.

Mas, acima de tudo, vi aquela gente, família e parentes que acabei de conhecer, genuinamente feliz de poder abrir uma vez mais o baú das suas memórias, reviver desventuras e tempos difíceis. Ouvi, grata, todos elogios rasgados ao homem que foi o meu avô, um herói da terra, o nosso herói.

Sei também que foi sentida a gratidão que exprimiram por aquela segunda vida dada à casa do “Manga-Manga”, suspensa no tempo, num luto prolongado, desde que ele foi a enterrar um pouco mais acima, no cemitério da terra. Com o nosso regresso, o meu avô Oliveira, o “Manga-Manga”, voltou a viver, apesar de estar sepultado há mais de duas décadas e meia. Esta é a história de um grande homem, um homem que foi importante na sua aldeia, um exemplo de superação, força de vontade, e uma inteligência apenas comparável à sua bondade.

Sim, realmente, fez-se luz, deu-se à luz qualquer coisa estas férias: o burburinho e o frenesi não foram desproporcionados.


[Sim, depois, todos, sem excepção, também quiseram sentenciar à morte os dois cedros monumentais que o “Manga-Manga” plantou à porta de casa. Faziam filinha e alinhavam argumentos para o abate das árvores que a mim me lembram as mangueiras que nunca vi se não em fotografias a preto e branco.]