Quem faz um blog fá-lo por gosto

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O(s) meu(s) segundo(s) filho(s)

Amanhecer de dia 20 de Dezembro de 2008. Voltei a sorrir. Larguei o luto.
No outro dia o António fez sete anos.

O meu segundo filho, o meu único rapaz, é um anjo: vê-se de longe a sua aura, mas de perto desmascaram-no os filamentos de ouro fino das longas pestanas encaracoladas, que fazem brilhar ainda mais uns olhos que sorriem sempre. A pele muito branca e pálida, quase transparente, e a maneira desconcertante como espalha alegria e paz por onde quer que passe, denunciam que um querubim se fez menino nesta vida. 

O meu menino é um anjo, que expõe toda a beleza que a vida tem. É o ser mais consensual e doce que conheço. Faz umas pilantragens, arma umas confusões, mas é um ser único, capaz das coisas mais improváveis.

O feito mais incrível do António é ele ser quem é, tão leve, tão feliz, tão mágico, apesar dos pesares. 

Porque eu passei toda a gravidez do António de luto, a morrer de tristeza. 


Hoje, há oito anos, comecei a perder o meu segundo filho, o primeiro fruto desta incrível história de amor que aqui relato, quase toda ela luz e gargalhadas.

Tinha sido o nosso presente de Natal - eu estava finalmente grávida.

Contámos a toda a gente, foi um dos momentos mais felizes da minha vida: aquela tão esperada e desejada gravidez. 
Passáramos jantares de família de Domingo, durante meses e meses a fio, a escolher nomes estapafúrdios para o nosso primogénito, e finalmente acontecera, imediatamente após o momento de desalento e preocupação no qual eu tivera a coragem de questionar o meu médico se haveria algum problema, e sobre que opções teríamos ao dispor para concretizar este sonho que começava a tardar, o de termos o nosso primeiro filho em comum.

Flutuámos com a notícia, com o teste de gravidez que guardo numa caixa de latão dourada. Decidimos comemorar, a três: eu o João e a Carolina.
A vida, a nossa nova vida começava ali, depois de tanta tormenta, tanto sofrimento, tanta solidão que tínhamos enfrentado e enterrado quando o destino nos juntou, começava agora um novo capítulo, e era o mais feliz de todos: a nossa família, a nossa história interminável, estava prestes a começar.

A viagem seria curta, e o cenário escolhido era Óbidos e o seu castelo, uma escolha quase óbvia, quase cliché, para o conto de fadas que se seguiria nos próximos meses até ao Verão.
Fomos ao jardim da Estrela antes de seguir viagem. 
O chão junto ao portão da Basílica estava coberto de ouro. As folhas amarelas, quase fluorescentes, em forma de coração, da centenária Ginkgo, compunham um tapete triunfal e cinematográfico. A Carolina atirava-as ao ar, e andou naquilo, aos rodopios, um tempo sem fim, que ficou congelado numa parte demasiado dolorosa da memória.

Sem qualquer aviso, sem qualquer ai, sem uma dor, sem o grasnar lá do alto de uma ave de mau agoiro, sem o repique estridente do carrilhão de sinos da imponente basílica, eu comecei a perder o meu segundo filho por debaixo da chuva de folhas amarelas em forma de coração da Gingko do Jardim da Estrela. 
No nosso jardim. 
Onde nos conhecemos. 
Onde casámos. 
Onde achei que nunca mais poderia ir depois do que aconteceu há oito anos.

O médico, na primeira urgência para onde corremos, no Hospital onde a Carolina nasceu, disse - não consigo esquecer-me disto nunca: 'Descambou'.
A confirmação que a gravidez era 'não evolutiva' surgiu na urgência da Maternidade Alfredo da Costa, ao cair da noite de dia 31 de Dezembro.

Os primeiros bebés do ano nasciam.
O meu não nasceria.

Não conheço palavras - creio que estão por inventar; são mais esgares - para conseguir descrever o vazio do gabinete, e da imagem silenciosa, escura, vazia que o ecógrafo revelava. 
O meu coração partiu-se.
Senti o estalo, e a dor física, sufocante, generalizada, pelo corpo todo, em convulsão, a serpentear-se.

Quando a porta da urgência se abriu estavam as pessoas a quem devo o mundo: a Hermínia e a Teresa. Apararam-me. Nos meses que se seguiram foram elas que me ampararam.

Em casa, o Stucky, que vivia connosco no sofá da nossa casa de Santa Marta, tinha feito lentilhas para o jantar. Passou-me para a mão o Santo António que era da sua amada mãe, e entregou-me um caçador de pesadelos que trazia sempre consigo e que está sempre à minha cabeceira.

Passaram-se dias e dias.
A primeira noite foi a pior delas todas: o desgosto vinha às golfadas, marés vivas de dor latejante.

O médico falou de estatísticas absurdas, que a culpa não era de ninguém, que a Natureza era sábia, que tudo ficaria bem, que eu ia esquecer. Advertiu também que não era expectável conseguir engravidar até ao Verão.

Senti-me sozinha como nunca me senti.
Por vezes senti-me ridícula com as proporções daquele luto.
Senti-me por um fio, a enlouquecer.
Nunca senti uma dor tão grande.

Trouxe a mim toda a tristeza do mundo.
Acredito que o João tenha querido um bocadinho dela para si também, mas eu açambarquei-a toda para mim sem pensar em mais nada – era eu, a minha dor, o meu desespero e a minha desesperança. Queria-os todos para mim. Como um castigo, uma penitência.

E três meses depois estava grávida do António.
Não consegui ficar feliz: vivi permanentemente aterrorizada e a culpar-me ainda mais por não estar feliz, como era devido e merecido. Levei os nove meses de gravidez do António de luto carregado, a chorar diariamente pelo meu filho que não nasceu.

Na primeira ecografia, a da confirmação da gravidez do António, surgi o primeiro sinal que ele era um anjo que vinha para me resgatar do pântano triste para onde eu me deixava arrastar. A data prevista do parto era o dia 31 de Dezembro, um ano depois do dia mais triste de toda a minha vida.
Mas eu não via isso como uma segunda possibilidade, um atalho para a felicidade imaginada e interrompida; interpretava-o como um presságio, como uma maldade do destino, a gozar sem vergonha com a minha cara e com o minha dor.

Todos os dias, de manhã, durante 39 semanas de gravidez, enfiava-me no carro e percorria a Almirante Reis pelo rio, até Belém, a ouvir a mesma música em repeat one, e todos os dias me concedia o direito de chorar, sem rédeas, até ao desligar do motor do carro junto aos jardins do Império.
Recompunha-me o suficiente, e fazia um esforço para esconder o desgosto que não diminuía com o crescente volume da minha barriga e da vida que gerava no meio de tantas lágrimas e tanto medo.

Inexplicavelmente pari a criança mais feliz do mundo.

A cinco dias do Natal, o António foi-me arrancado do ventre, no parto mais traumático e também mais libertador de todos. Houve complicações e durante horas acreditei que morreria. O tempo todo em que estive consciente, entre tremores violentos e maquinarias que berravam incessantemente, em alarme constante, lembro-me de me deter naquele pequenino sereno ao meu lado. Queria recordar tudo antes de partir. Não deixei que o João saísse da sala vigiada por um segundo – achei mesmo que morreria. Sei agora que me libertava de tudo pelo que tinha passado.

Mas o António - que se chama António nem sei bem porquê, porque nunca gostei deste nome - nasceu miraculosamente protegido de toda esta dor e terror que eu tinha de o perder também a ele.

E eu vivi, sobrevivi àquela madrugada de há oito anos, e à outra em que há sete anos o António nasceu.

Os dias passaram-se. 
A história continuou. Houve becos e houve reviravoltas. Houve dias muito felizes. Ficou tudo bem, como garantiu o médico da MAC naquela noite. Mas o tempo não perdoa nem acalma a perda: eu trago tudo isto tatuado, segue sempre comigo, está sempre comigo, geralmente só comigo, ainda me vergasta uma espécie de dor que é paralisante, que abre a velha e incurável ferida. 

Hoje soube que era a hora de falar sobre ele, sobre o meu filho que não nasceu. Ele faz parte da nossa história - e nunca, mas mesmo nunca será esquecido.


Eu sou a irmã mais velha, diz a Carolina.

No outro dia, o meu filho António fez sete anos.

Estava a levitar pelos disparates que inventa para me fazer rir, num bajulanço que é quase idolatria religiosa, e eu perguntei-lhe:

Meu amor, como é que tu és tão feliz?
Mostrou-me a língua, revirou os olhos, e bateu as pestanas. Desenhou-se uma cova na bochecha deliciosa.

Então, eu contei-lhe esta história:
Tu és o segundo filho, mas não és o segundo filho.
Quando tu vieste do céu para a minha barriga, a mãe tinha estado grávida, de um outro bebé, que não nasceu. A mãe estava muito feliz por tu vires, mas estava também estava muito triste pelo bebé que não tinha nascido. Eu acho que tu vieste para me fazer sorrir outra vez. Diz-me lá como é que tu nasceste tão feliz, quando a mãe estava tão tão triste?

É simples.
É que o(s) meu(s) segundo(s) filho(s) é (são) anjo(s).


E não há um dia dos últimos oito anos que eu agradeça por ter ambos na minha vida.

Meu amor, como é que tu és tão feliz?
Bom Ano para todos.

(David, Inês - Obrigada por me terem ajudado no dia 20 de Dezembro de 2008 e em todos os anos que já nos conhecemos)

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Pescada com Béchamel - um clássico na Família Cerelac

António, the Invizimalz Reindeer

O filão “Tenho quatro filhos: qual é o teu Super Poder?” é inesgotável e serve para tudo um pouco. Concedeu-me a benesse de poder ser uma pessoa mais feliz, mais segura, mais em paz. Este mergulho em apneia, sob o maravilhoso coral de recife que se apresenta diariamente no sorriso e nas birras das minhas crias, é tudo quanto quero levar deste ano terrível que quero enterrar durante o clarão do fogo de artifício e o barulho ensurdecedor dos tachos à janela.

O filão dos quatro filhos - e a blogosfera está cheia de pais e mães de quatro, com mais ou menos glamour, com mais ou menos humor, com mais ou menos da vida real, tal e qual como ela é - permite-me habitualmente feitos mais comezinhos, como a habilidade em pedir desconto de quantidade com um descaramento que já é quase naturalidade, ou dominar a arte do despacho-desespero, por entre os corredores dos hipermercados, farejando à distância as caixas prioritárias de pagamento.

Não são raras as vezes que tiro proveito do espanto generalizado e deslocamento da mandíbula inferior da população a contar alto e bom som, como uma aberração de circo, o número de crianças que arrasto agarradas às minhas saias. 

Já ouvi elogios e insultos. São maioritariamente elogios, palavras de incentivo, de apreço, que somos tão jovens, que eles são tão lindos, que o melhor do mundo se encerra no olhar de deslumbre das crianças. Provocamos sorrisos abertos e sinceros, é muito amor que nos atiram no desfile pela passadeira vermelha que se estende como se fôssemos heróis. Há admiração, no sentido de espanto da palavra, e depois há admiração, como se fôssemos heróis recebidos em todo o lado em apoteóse colectiva.

Também já ouvi que somos como os coelhos, ou como os ciganos, que temos muitos filhos mas depois deixamo-los entregues a si, isto porque ao quarto filho não se vai a correr para o hospital se a criança caiu, ou porque tem ranho no nariz, e porque os irmãos, os tios, os avós e os primos por vezes nos permitem ir, durante uns minutos, beber um café, fumar um cigarro, trocar um beijos como recém-namorados que acham todos os dias um incrível milagre.

A vida corre suave quando temos quatro filhos.
Não há outra hipótese: é pura sobrevivência.
Demoramos mais tempo a sair de casa. Há mais barulho e muita confusão. Os nossos carros, umas latas velhas, metem nojo. Não damos para tudo, valores mais altos se levantam do que carros brilhantes de de alta cilindrada e é bem sabido - há um anúncio de detergente Skip que amo que já o diz - que a felicidade anda de mãos dadas com as nódoas e o surro atrás das orelhas. 

Os putos, os meus pelo menos, oscilam entre o anjo e a possessão demoníaca: há sítios que nos estão vedados, sabemos bem que há toda a uma vida de revista que fica apenas na revista. Mas somos tão mais leves e tão mais chegados ao que realmente importa. Temos uma pré-adolescente implicativa em mãos, mas ninguém cutuca ninguém no nosso lar por ninharias - temos expectativas ajustadas à realidade, o que é dos filmes fica nos filmes, e a realidade vai batendo a ficção aos pontos, também já sabemos disso.

Santa's Little Helper em versão Anjo de Natal

Ter quatro filhos fez de mim uma especialista instantânea em quase tudo, apesar de eu, grande parte das vezes, andar em navegação desgovernada, com o mapa ao contrário a tentar procurar o Norte. 

Eu não a pedi e não é justa a beatificação: não sou santa, tenho as minhas falhas de acrácter, e erro, faço más opções, digo parvoíces; às vezes faço burrada atrás de burrada, tropeço e até fico com falta de ar.

Por exemplo, mea culpa, mea maxima culpa: nunca fiz uma sopa de bebé na minha vida.

Não fiz, não quero fazer,não vou fazer e sou um pouco leviana nas introduções de alimentos. O meu departamento é a mama (há 13 meses and counting), e depois os assados, guisados - os salva-vidas de uma cozinheira de uma família de maiores proporções.

Não sei nada sobre sopas de bebé.
Também me recuso a lavar os dentes ao cão. Não dá!
Sempre que me perguntam, na qualidade e pedestal bem alto de mãe de quatro, a que idade introduzi o rodovalho, o espinafre ou o ruibarbo (isto vai complicando a cada filho que me nasce) explico que houve uma altura que a minha dispensa tinha como único conteúdo pacotes de Cerelac e boiões de pescada com béchamel da Nestlé, os favoritos da minha primogénita até quase aos seus três anos de idade, e que é melhor passar ao outro e não ao mesmo, porque não posso ajudar nesse departamento.

A minha mãe encarregou-se do cardápio de mistelas batidas da Carolina, e o senhor meu marido virou Masterchef dos seus três filhos - dominando a arte da batata doce, da beterraba e do chuchu.

Quando o João me conheceu eu era accionista da multinacional Nestlé e as acções eram potinhos de vidro que faziam plop e para os quais nem era preciso a ajuda de um homem para abrir.

Com a Isaura, voltámos pontualmente à pescada com béchamel. Coincidiu com o meu regresso ao trabalho a tempo inteiro e com o frenesim do dia-a-dia.

Nas vésperas de Natal comprámos um carregamento de novos boiões para fazer face à esquizofrenia do Natal e da antecipada falta de tempo que sermos os anfitriões e cozinheiros da Consoada e Almoço de Natal. Quando chegámos a casa tínhamos um presente da Nestlé: mais boiões (que entretanto já marcharam todos).

Não sei fazer sopas de bebé, mas no Natal cozinhei com o meu lindo marido um capão do qual só sobraram ossos.


Há anos e anos que nos dou o nome de “Família Cerelac" (para quem tenha Instagram é procurar a hashtag #familiacerelac). 


Vejam lá, querida Nestlé, se este post não saiu melhor que a encomenda? E se a Aurora não é um perfeita princesa Nestlé?
Obrigada pelos boiões. Obrigada por facilitarem a vida a muitos pais cansados :)
Boas entradas!

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

O fantástico e delicioso bolo do primeiro aniversário da Isaura

Hei! Eu também quero fazer anos! A bebé faz 1 ano mas eu faço 31 meses! E adoro a Minnie.

A Aurora sente-se baralhada, com esta catadupa de aniversários de Dezembro e ela, isolada, lá longe no morninho mês de Maio. Reclama que quer fazer anos também. E não se conforma de não ter sido concebida na Primavera (que tonta, é uma filha do Verão, e foi feita na ilha mágica de São Miguel)

Então, fizemos-lhe mais ou menos a vontade: foi ela que escolheu o tema do bolo de aniversário da irmã mais nova, que ainda tem pouco querer.

O repto de um bolo de Minnie foi transmitido à querida Isabel Choupina, dos 3 Docinhos (super-mãe de três filhos), que escravizamos (e adoptamos também) no longo mês de Dezembro que todos os anos atravessamos.

Os putos embirram com a pasta americana, e saiu esta Minnie absolutamente delciosa de Merengue de uma nacionalidade qualquer (creio que é italiano).

A Isaura fez um ano e a Aurora na verdade, nesse mesmo dia também fazia 31 meses.
E lá soprou as velas do bolo, toda contente.
Obrigada, Isabel!

Docuras da 3 Docinhos para a Família Numerosa.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

A Imaculada Carolina - a dúzia


8 de Dezembro de 2003 - 14h35 - Hospital Particular de Lisboa - nascia uma filha. E também uma mãe.

Uma dúzia de anos -- a medida, mais apropriada para os ovos, chegou-nos hoje cá a casa.
Sou mãe de uma rapariga (eu que me deixe de ilusões, que ela já não é uma menina) de doze anos.

Estou a envelhecer. E ela está a crescer esplendorosamente, a revelar-se em todo o seu impressionante potencial, do qual tenho uma ínfima quota-parte genética que às vezes se reflecte no azul translúcido dos seus olhos.

Dá-me abadas à hora do jantar, quando se põe armada em sabichona a falar de Física e da génese do Universo (tenho que comprar menos revistas 'Quero Saber'), canta tão bem quanto eu, e atrevo-me a alvitrar que escreverá muito acima das minhas linhas, que teimam a sair cada vez mais tortas, apesar da formatação perfeita do monitor deste computador.

Muitas coisas têm falhado nestas últimas dúzias de dias do calendário que se esfumam muito rapidamente, à medida que os dias ficam mais curtos e mais frios.

A metáfora que me ocorre, nos últimos dias, é o de uma mão cheia de areia a escapulir-se-me inevitável e descontroladamente por entre os dedos. Nada de essencial falha - tenho o punho cerrado com força, e continuo determinada impossível missão de uma vida, que é garantir que os minúsculos grãos que fazem desta desta gigantesca charada uma história interminável se mantêm protegidos da força dos elementos, dos soluços do Universo, das emboscadas da vida. Mas, por vezes, deixo cair uma série de coisas pequenas, e já nem penso muito nessas falhas: sou, afinal, apenas humana, por mais super-poderes emprestados que traga pelos filhos que decidiram nascer (quase) todos em Dezembro (deliciosas criaturas, estes Sagitários).

Chega Dezembro e entro em piloto-automático, em modo sobrevivência, em alerta total. Fico de piquete, estou de banco permanentemente -- são quatro aniversários possíveis, em seis cá em casa: começa com a Isaura, no primeiro dia do último mês do ano, e uma semana depois, naquele que nunca deixou de ser feriado, o da Imaculada Conceição, o antigo dia da mãe, chega o aniversário da primogénita Carolina. Há agora uma pausa forçada (o meu sogro faria 66 anos no Domingo) até dia 19, o aniversário do pai, que há pelo menos meia dúzia de anos que não é convenientemente comemorado (há sete anos passámo-lo numa sala de partos, e acabámos de madrugada, numa cesariana de urgência), e no dia seguinte, a quatro dias do Natal, é a vez do António (no dia 30 será o super-tio Romão, outro irmão ruivo que ganhei na taluda).

Pelo meio da quadra e dos festejos deste lar, há muitas outras festas: da escola, do Piano, do ATL; há lanches, há cantigas, teatrinhos e outras coisas que me aquecem o coração e me extenuam até ao tutano. Há tudo isto e muito mais e é multiplicado por quatro.

Há também uma lista interminável de tarefas, de compras e presentes, e há muitos trabalhos de casa para os pais - mas, ao contrário do post de um outro (e muito mais famoso) pai de quatro, eu não me queixo da sina de improvisar enfeites de Natal dos mais inusitados materiais de desperdício, como rolos de papel higiénico, cápsulas de Nespresso, garrafas de plástico ou latas de Coca-Cola: ponho quanto sou no mínimo que faço, e isso inclui os sete instrumentos que tenho que tocar ao mesmo tempo na corda bamba, porque sou mãe, porque quero ser a mãe que tudo pode e que tudo consegue, sem mácula, sem falhas relevantes, com o cadastro limpo de falhas graves, e com direto a louvor no final da jornada.

Hoje não houve, porém, super-produção -- haverá uma festa disco para pré-adolescentes no Domingo que vem. O tio-avô Zé emprestou uma casa vazia, à espera de obras de remodelação, para a invasão de rapazes e raparigas que se despedem da sua infância sem olhar para trás, com narizes e dentes enormes, totalmente desproporcionados para aqueles corpos híbridos, em transformação.

Almoçámos vagarosamente com a família mais chegada.
A rapariga da dúzia de anos definiu expressamente que queria ir ao chinês -- teve desejo de Pato à Pequim.
Ainda pensei pedir o famoso e encantatório prato da 'Família Feliz', que desde a minha infância me delicia e povoa a imaginação com imagens idílicas, mas a família feliz estava à minha frente, e o prato, que mistura todas as proteínas e hidratos de carbono possíveis, é uma grande salganhada e posso deixar de o pedir por teimosia e sublimação

A miúda cresceu e no final da tarde arriscou até confessar-me que já lhe começaram as dores de crescimento: 'Pela primeira vez na vida, não estou a achar muita piada fazer anos - é uma seca crescer!"

Tem uma bicicleta linda, e os tios e os avós começaram este ano a dar-lhe dinheiro, porque se sentem perdidos, sem saber quem ela é, em quem se vai transformar.

Esqueci-me do bolo, fui a correr ao supermercado comprar um, e o António conseguiu partir o único dente definitivo que tinha, numa brincadeira parva.

Nem tudo foi mau: já de dente partido, tirámos as rodinhas auxiliares da bicicleta do António -- eventualmente poderia partir também uma perna, mas as probabilidades já eram menores e nós gostamos de arriscar o destino.

E ele começou instantaneamente a andar pelo empredado, onde também eu aprendi a andar em duas rodas há uns trinta anos, sem qualquer ajuda, num equilíbrio automático. Detém o recorde do Guiness de aprender a andar de bicicleta: foram cinco segundos. Um empurrão e nunca mais o vamos apanhar.

Com tantas falhas, foi um dia bom.
Há poucas coisas no mundo melhores do que andar de bicicleta.

É incrível ver como eles crescem sem podermos fazer nada para o impedir.
Não é uma seca crescer, filha. É duro, mas olha o caminho que já fizeste.

Verão de 2014, na nossa primeira casa de bonecas, na Av. EUA

Natal 2014, na nossa casa de Santa Marta

Páscoa de 2005 - a destruir à socapa uma paleta de maquilhagem

Natal de 2006 - em Santa Marta e uma boina de artista

8 de Dezembro de 2007 - no café da D. Beatriz, em Santa Marta, com o nosso Idea já escavacado lá atrás

Natal de 2008 - à espera do António e com o mural das fadas que eu lhe estava a pintar no quarto da casa nova da Almirante Reis

Agosto de 2009, em Évora, o primeiro Verão do António (na camisola lia-se 'Eu sou a irmã mais velha')

Agosto de 2010, no Parque Terra Nostra, nas Furnas

Agosto de 2011 - em Óbidos, com o Avô Tójão

Outubro de 2012 - Na Mata de Alvalade



Dezembro de 2013 - A brincar com as folhas de Gingko no Jardim da Estrela

Verão de 2014

Inverno de 2014, com uma das criações feitas pela sua mãe

Primavera 2015 - com humores e fazendo bocas.
O cabelo encolheu e ela cresceu sem parar. Setembro de 2015 com o emplastro.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Zázá [ou o difícil ofício de ser feliz]


Hoje é dia de festa e só tenho direito a uma foto manhosa, de esguelha, e ainda por cima despenteada?
FOTO: A Família Numerosa.
Zázá,

Rebobino 365 dias, e ando aqui às voltas, um pouco perdida, um pouco zonza, numa contabilidade absurda que não encontra meios para medir - nem tem pouco  palavras para traduzir - esta coisa mágica e relativa que é o tempo.

Estou cansada de verdades, de certezas. Já não arrisco absolutos, filha. Disse tantos disparates na minha vida; coro de vergonha com tanta fanfarronice. 

Imagina que, há 12 anos, quando vi a tua irmã Carolina pela primeira vez, de raspão, estava a tua avó ao meu lado e em meu socorro sem saber para onde se virar - para a filha ou para a neta, ambas em perigo -, e soltou-se-me o absurdo pela boca fora: eu disse que nunca amaria um filho como aquele pequeno ser azulado, que acabara mudar toda a minha vida, elevando-me a esse estado sobrenatural e de consciência alterada, que é ser mãe, a toda a hora, e para todo o sempre.

Não é verdade, bem-amada, minha querida Zázá.
É possível amar todos, às golfadas, e na mesmíssima proporção (a tua irmã Carolina dirá que o António é o favorito e, mais cedo ou mais tarde, também há-de vir marrar contigo, que és pequenina e terás sempre essa aura a perseguir-te).

Também, tal e qual como me avisaram que aconteceria - e eu descrente, num espectáculo de abelha-mestra com um xaile de fado, obstinada na minha certeza que o meu palácio de cristal era afinal um castelo de cartas e que tudo se ia desmoronar -, a tua irmã Aurora não tem cicatrizes e traumas permanentes (claro que sofreu nas primeiras semanas) e vocês são, realmente, as melhores amigas (o meu coração por vezes não aguenta, tenho a certeza absoluta que às vezes pára de bater quando secretamente vos espio, na vossa cumplicidade).

Tu, Zázá, és a bênção inesperada: és o ponto de viragem nas nossas vidas - creio que atingi a idade adulta quando soube que vinhas, aliás, quando aceitei que vinhas, e me rendi sem condições à evidência que não posso controlar tudo, a toda a hora.

Hoje, eu e o teu pai (que não é dado a estas coisas das cartas de amor públicas - mas não duvides nunca do seu amor) sabemos da infalibilidade de todas certezas, da fragilidade da vida e dos imperativos categóricos que trazemos entranhados no código genético. Estamos lúcidos como nunca estivemos, com os pés bem agarrados à terra e a cabeça sempre na lua, bem lá do alto, a vigiar os teus sonhos e os dos teus irmãos, a sondar (em vão) perigos que estão sempre à espreita.

Hoje, eu e o teu pai somos felizes como nunca previmos.
Essa é a lei mais universal de todas: o curso dos acontecimentos segue implacável, de mãos dadas com o tempo, desatinados, às vezes voam outras vezes destroem tudo e todos à sua passagem, outras vezes arrastam-se, preguiçosos, e, ocasionalmente, acontece o extraordinário e conseguimos pará-los, abruptamente, interrompemos a sua correria e ficamos deslumbrados com os fragmentos destes dias felizes.

Andámos a trilhar o difícil caminho da felicidade, Zázá. Foi isso que andámos a fazer contigo nestes 365 dias. Parabéns, filha.

1/12/2014 -- 08h30 - Também ponho uma foto-baleia.
Foto: A Família Numerosa


[E agora vou arrumar a culpa de estar a trabalhar neste dia, de te ter levado para a creche, sem um bolo, de não te ter comprado um presente, e de, à hora em que nasceste, estar fechada num carro, num monta-cargas, a caminho da garagem]

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Louvor - uma espécie de bem haja

Texto originalmente publicado na Visão

Trio-maravilha. Foto: A Família Numerosa

Bem haja.

Desde pequena que esta expressão beirã faz parte do meu dicionário genético, do meu léxico sentimental — património que espero ter passado pelo cordão umbilical aos meus quatro filhos.
Quem a usava amiúde — e não ‘a miúda’, como erradamente todos cantavam na épica canção dos Xutos e Pontapés, hoje uma peça de arqueologia musical, onde ficamos a saber que, de Bragança a Lisboa, eram dez horas de distância num tempo em que Portugal não era trespassado por auto-estradas e SCUT — era o meu avô materno, nascido no virar do século passado numa aldeia longínqua de Lafões.

Muitas coisas se têm vindo a perder no tempo.
Há cada vez menos bem no mundo, e talvez por isso o ‘obrigada’, uma palavra bem mais agressiva e carregada do popularizado conceito de dívida, se tenha substituído a este desejo utópico de que a bondade andasse por aí à solta, com todas as benfeitorias do mundo que os homens (também) são capazes (quando andam para aí virados).

A palavra louvor, por exemplo, caiu em desuso.
Usamos cada vez menos palavras para nos exprimirmos e para dizermos de nossa justiça, apesar de termos quase sempre uma palavra a dizer sobre tudo e em toda a parte (olhem para mim aqui, por exemplo).

O dizer de nossa justiça é cada vez mais um dedo apontado, os pratos da balança num equilíbrio instável e volúvel: os livros de reclamações são sempre demasiado pequenos para todo o queixume que anda afiado na ponta da língua, da caneta, ou do dedo a fazer festinhas nos cristais líquidos de um ecrã sensível do nosso telefone, e as caixas de comentários dos blogues e do Facebook acumulam todo o fel e a face mais badalhoca da humanidade.

Agora, quantos de nós se dedicaram nos últimos tempos à prática do louvor? Quantos de nós deixaram um elogio escrito num livro impresso e encadernado para o efeito que não sai da gaveta ou da prateleira, ou mesmo tímida e anonimamente, algures, por aí, na grande e vasta rede, onde neste momento se cruzaram com este texto?

Bem haja, dizia o meu avô.
É uma maneira de estar e de ser. Que anda de braços dados com o louvor, com o reconhecimento. Anda pelas ruas da amargura, e eu estou longe de os praticar com a dose diária recomendada para a qual a OMS devia alertar, deixando as salsichas em paz.
É impressionante como é tão fácil demolir e tão difícil elogiar: sobe uma timidez grotesca para assumir frontal e inequivocamente o que está bem sem um rubor nas maçãs do rosto, ou um desconforto titubeante que nos dá vontade de fugir ou escondermo-nos atrás de algo a roer uma unha.
E, depois, ainda vem o passo a seguir, a tarefa ainda mais difícil: retribuir ao próximo — que até pode ser o mesmo — na mesma conta, peso e medida. Com um bem-haja, com um louvor público afixado na parede.
Pediram-me para ser especialista de assuntos de ‘Família’ e na minha família usamos palavras e expressões esquisitas, que caíram em desuso, como o bem-haja. E cada vez mais usamos a prática do louvor.

Vocês são maravilhosos, filhos! Desculpem os vossos pais que não vos dizem isso todos os dias. Foto: A Família Numerosa.


Temos muito que dar graças.
Vamos a isso:

Na apresentação aos pais e encarregados de educação no início do ano lectivo, o director de turma da minha filha mais velha, um aparentemente indiferenciado professor da temível disciplina de Físico-Química, leccionada numa escola pública do centro de Lisboa com nome de rainha inglesa com vários milhões de intervenção de uma coisa duvidosa chamada Parque Escolar, desarmou-nos a todos, praticando essa coisa estranha do louvor.
“Os vossos filhos são espectaculares”, disse. “Nunca apanhei na minha vida uma turma tão excepcional”, acrescentou. E nós, pais e mães, claro, desconfortáveis na nossa pele, uma espécie de urticária a alastrar, entre o ardor e a comichão insuportável; uma espécie de culpa, uma espécie de descrença.
Mas então não são umas pestes? Uns mal-educados? Uns pré-adolescentes insuportáveis que ninguém consegue controlar e ter mão? Uma geração de arrogantes autocentrados?
E o professor de Fisico-Química, recém-colocado num concurso que, neste ano de eleições, não deu barraca, continuou com a sua lenga-lenga do bem, com um sorriso franco e aberto, deambulando pelas filas de carteiras da sala de aula, esbracejando: “Que miúdos fantásticos! Vocês, pais, estão de parabéns.”
Desde quando nos esquecemos disto?
Qual foi o momento em que passámos do oito para o oitenta? Desde quando é que deixámos de nos maravilhar com toda e qualquer gracinha dos nossos filhos, que durante um enorme período de estado de graça foram sempre os mais lindos, os mais talentosos, os mais precoces e os mais especiais? Por que raio deixamos nós, pais, de nos deslumbrar com os filhos a certa altura da sua infância, e lhes passamos a cobrar uma perfeição absurda, à prova de erro, negando-lhes parte da sua humanidade e, ainda mais triste, amputando-lhes parte da sua infância?


Qual é a maior façanha do professor de Fisico-Química?
A mim fez-me corar de vergonha, revolver em fracções de segundo a minha consciência, que ficou subitamente pesada por todas as vezes em que cuspi, sem hesitar, “És sempre a mesma coisa” à mínima falha, e nos momentos em que ela foi sublime (e, caramba, já o foi vezes sem conta nos doze anos de vida que vai completar daqui a um par de semanas) ter  raras vezes disparado com a mesma força: “Carolina, tu és uma miúda espectacular; és a melhor filha do mundo.”
Mas o maior contributo do professor de Físico-Química não é para os pais — e temo até que alguns, perdidos na sua vidinha, nem tenham ouvido o alarme que ele subtilmente fez soar em surdina.
Este professor vai mudar o curso de muitas vidas; e vê-se que já o fez antes, que já leva um certo jeitinho, que se revela pelo brilho nos olhos e os braços agitados por estar a mudar a ordem pré-estabelecida da história das vidas nos nossos filhos, que ainda não estão contaminados pelo culto do bota-abaixo — as suas defesas ainda são altas; têm um escudo fortíssimo.
Eis que, de repente, os miúdos estão sentados nas carteiras, numa disciplina nova e com fama de diabólica quando, de repente, um professor indiferenciado lhes diz, sem rodeios, e com toda a lata do mundo, o que é óbvio, e que nós todos nos esquecemos — por pudor, por cansaço, por uma ditadura das notas e dos rankings, por mero descuido — de repetir todos os dias: “Vocês são uns miúdos fantásticos!”
Desde quando nos esquecemos que isso basta para mudar a maneira como eles encaram o mundo e como se encaram a si próprios?
A turma da minha filha mais velha — tenho a certeza — vai ter resultados extraordinários este ano. Vão ser miúdos incrivelmente mais felizes e muito mais seguros de si. E isso vai reflectir-se nas pautas.
E é tudo por causa do professor de Físico-Química, que se chama José Andrade.
Este é o meu louvor público. O meu bem-haja.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O Feminismo Tramou as Mulheres (Mas eu não me posso queixar)

(Obrigada ao Sapo 24, que novamente me deixou dizer de minha justiça)
Artigo originalmente publicado AQUI

Ouvi isto, desde sempre, fulgurosamente apregoado pela minha mãe, que decidiu estar desconfortavelmente inquieta nos antípodas da sua beleza renascentista, esculpida a cinzel em porcelana fina. Ela queimou soutiens, cobriu as suas longas pernas com roupas que transformavam instantaneamente qualquer saco de batata em alta costura, renunciou ao rouge e ao baton, prendeu as madeixas de ouro do cabelo num carrapito de velha. Libertou-se das cintas e dos espartilhos, mas enclausurou na solitária qualquer vestígio da sua feminilidade. Mais do que exigir igualdade, lutou pelo respeito que lhe era devido. Que é devido a todos os seres humanos, independentemente da raça, do credo e do sexo com que nasceram.


Foi feminista fervilhante no tempo da antiga senhora. Não foi fácil. Nunca o é para as mulheres. Muito menos para as incrivelmente bonitas. Mas depois o feminismo tramou-a, saiu-lhe o tiro pela culatra.


Nunca a minha mãe se serviu da sua beleza botticelliana.
Desprezou-a, viu-a sempre como um defeito, pior: uma deficiência, uma maldição que perseguia sempre, e que lhe dificultava o já de si árduo caminho de ser levada a sério.
Por mérito braçal, de jornadas de trabalho intermináveis em África — reza a lenda que Hergé se cruzou com o meu avô Manga-Manga no Congo e assim nasceu o imortal ‘Oliveira da Figueira’ —, a minha mãe cresceu numa gigantesca casa em Viseu no seu Rossio, com cortinas de brocado, móveis de madeiras perfumadas, cheios de torcidos, rococós e embutidos, tapetes da Pérsia e de Arraiolos, pratas e mármores, e um reboliço de criadas que se viam aflitas para lidar com os pioneiros electrodomésticos que vieram revolucionar a vida como hoje a conhecemos: frigoríficos, rádios e televisões.


A minha mãe tocava piano e falava francês. Na parte mais infeliz da sua vida, foi sendo expulsa de vários colégios católicos. Era uma miúda de África: apanhava cobras e largava-as aos pés das freiras, levando-as à loucura, e suportando depois castigos medievais que se seguiam com a coragem de um soldado.
Enquanto fazia todos os possíveis para ser excomungada (ou pelo menos regada em água benta), a minha mãe privou com a ‘fina flor do entulho’ da sociedade portuguesa. Sem brasões, sem linhagens reais, ou apelidos difíceis de pronunciar, a minha mãe estava a ser educada para cumprir a santíssima trindade: esposa exemplar, exímia dona-de-casa, excelsa figura maternal.
Mas não era esse o seu destino.


Teve sorte em ter um pai velho, um homem do início do século, mas mais jovem do que muitos que para aí andam no século XXI, na sua compreensão e humanismo. O meu avô foi pai pela primeira vez aos 48 anos — esteve ocupado a construir um império nas décadas anteriores —, e julgara ter estado a fazer o melhor pelo futuro da adorada primogénita, entregando a sua educação aos melhores e mais caros colégios da altura.

Rapidamente concedeu que a fibra da filha era outra, e que o mundo era composto de mudança: se ela queria fazer diferente, tentar outro papel, restava-lhe a ele apoiar a sua marcha solitária, tratá-la exactamente da mesma forma que aos dois filhos homens.


Ser uma grande mulher não tem a ver com carreiras brilhantes, e feitos que mudam o curso do mundo.No decurso desta história, a feminista desiludida de que vos falo, e que é por acaso minha mãe, deixou dois cursos superiores de Medicina e Farmácia a meio, para cuidar dos filhos. Não foi a mulher-bibelô que podia ter sido: era tão linda, que podia ter ‘casado bem’ (expressão que hoje ainda se usa tanto por aí). Rebelde com causas, casou com um artista, o meu pai, uma alma livre e por demais desprendida destas coisas de que se faz o dia-a-dia, como pagar contas e ter comida no prato e roupa lavada. A minha mãe foi, por isso, obrigada a mutar-se em mulher-amazona, criando dois filhos totalmente sozinha.


Fez um brilhante trabalho: devemos-lhe tudo o que somos, e a nossa fibra é a dela, corre-nos no sangue. Esta é a grandeza dessa mulher a que chamo mãe, que nunca se arrependeu da escolha que foi obrigada a fazer. Por amor. Pôs o feminismo na gaveta. Haverá alguma coisa mais poderosa do que uma escolha de amor?


Eu, desde pequena, que digo que quero ser mãe e dona-de-casa.
Digo isto e todos acham que estou a gozar.
A minha mãe tem razão: o feminismo lixou as mulheres, incluindo aquelas que, como eu, queriam ser mães e donas-de-casa, e que renunciariam sem hesitações ao seu lugar no exigente e canibal mercado de trabalho. O feminismo também devia ser isso.
A minha mãe soube-me sempre capaz de feitos incríveis (todos nós somos: basta termos quem acredite e nos garanta que sim), confiou na (sua) genética e na força do cromossoma xis. Dobrou quase totalmente o meu âmago astrológico de caranguejo, de querer viver todos os segundos da minha vida para a família e para a construção e desconstrução de um ninho, desistiu a certa altura de tentar impedir-me de me embonecar toda, usar saltos altos e decotes grandes (e não nasci esculpida pelo mesmo mestre que ela),mas ainda trago algum ressentimento e muita incompreensão pela sua recusa em comprar-me uma máquina de costura quando era miúda e desejava a Singer mais do que a Barbie, e de ter esperado até aos meus 30 anos para me ensinar a fazer crochet (o meu e seu poderoso e altamente adictivo ansiolítico natural).


Fez tudo para matar a Fada do Lar que há em mim. Não conseguiu totalmente, mas o feminismo também já me lixou a mim também.


O destino trocou-me as voltas. Parece que corre na família este desaire.
É certo que ao menos vivo o sonho de ser mãe — e tenho o privilégio de ser mãe a multiplicar por quatro (muito perto daquele sonho de infância cor-de-rosa). Só que trabalho que me desunho (e por acaso desunho mesmo; parti há instantes uma unha a escrever este texto, que já vai longuíssimo), dentro e fora de casa, e às vezes não há como evitar: falto às reuniões da escola (nem sequer sou a encarregada de educação, já para reduzir as minhas falhas e ansiedade a níveis suportáveis), e já houve dias da Mãe e festas de Natal em que não apareci. Quase nunca fico com as crianças em casa quando têm febre e só querem a mãe, e por vezes chego tarde a casa, e cansada, depois de as rotinas de amor já terem sido executadas magistralmente sem eu lá estar para, pelo menos, assistir.
Mas já não me consumo com esta inevitabilidade de não conseguir estar em dois sítios ao mesmo tempo e de grande parte das vezes ter de fazer a escolha errada: a escolha do trabalho em vez da família. Sinto uma picada de dor fininha, mas já não me flagelo pelas minhas ausências, que tento que sejam as mínimas e as indispensáveis.


Tenho uma família muito grande para os parâmetros actuais, e não quero que nada lhes falte. Por isso não paro, estou sempre inquieta, ou não fosse, ao que dizem, neta do ‘Oliveira da Figueira’ do Tintim.


A minha mãe fez de mim uma líder.
Estou (por agora) incansável. Atrevo-me até a dizer invencível.
Mas tenho um trunfo que a minha mãe não teve: eu não faço esta viagem sozinha, não travo esta batalha de ser uma mulher e ter sucesso sozinha.
Ao meu lado (e não atrás, não é uma mera inversão do género do provérbio tristonho do ‘Atrás de um grande homem está uma grande mulher’) tenho um homem que não ‘ajuda lá em casa’ (outra frase feita do feminismo que entalou a grande maioria das mulheres).
Tenho ao meu lado um marido esculpido a cinzel (tem o nariz mais perfeito do mundo — quem dera que os nossos filhos tenham o teu nariz) que faz, que faz inclusive mais do que eu, que ando sempre de um lado para o outro a sirigaitar em tantos palcos, arenas e ringues.
Sou uma grande mulher por causa deste grande homem, que me facilita tudo, e nada me cobra. Construo com ele a família numerosa com que sempre sonhei (até tenho dois filhos loiros e uma tem olhos azuis; é tudo como nas revistas), e que me elevou ao ponto alto de onde escrevo estas linhas. Ele fica na sombra porque quer — não gosta mesmo de holofotes.
Para mim ele é uma sombra fresca, é a minha sombra, inseparável, é o meu refúgio de paz. Este homem que tive a sorte de encontrar é único no mundo; é a generosidade revestida de pele e ossos. Eu tenho um homem que me deixa ser uma mulher de sucesso, sem culpas, sem acertos de contas, sem se sentir emasculado ou diminuído.


Vivo com um feminista ferrenho. Este é o homem que casou comigo e que, para espanto de todos, adoptou o meu último apelido no seu nome, em último lugar, e depois fez aplicar a mesma regra no nome dos nossos filhos, na simples constatação de que as mulheres também podem passar o seu nome pelas gerações; não é território só dos homens.
Não minto também se vos disser que não sei há quanto tempo não ponho roupa a lavar, ou no estendal, que há anos que não tenho nada a ver com o caixote dos gatos, e que o cão também nem se lembra do que é ir comigo à rua, ou que mesmo as minhas adoradas orquídeas, aquelas que coleccionava mesmo antes de ser mãe, é ele quem cuida delas (deixo-o ser desarrumado à vontade, acho que já não refilo tanto com a bagunça: pelo menos faço um esforço para não me tirar do sério). Nunca me falou com maus modos (e todos temos dias maus — eu não posso dizer o mesmo, infelizmente já fui parva com quem só me fez bem ao longo de quase dez anos) e só muito de vez em quando os nossos quatro filhos o tiram do sério.


Sei que não inverteremos nunca os papéis. Ele é das pessoas mais brilhantes e inteligentes que conheço, mas não tem absolutamente nada a provar a ninguém e o feminismo não o pôs entre a espada e a parede. Eu visto as calças (na verdade esta também é uma imagem parva porque eu quase nunca visto calças) e ele, que também trabalha que se farta a partir de casa, na profissão mais solitária do mundo, a de tradutor e revisor, cuida da família, esse território outrora exclusivo das mulheres.


Sejamos justos: o feminismo afinal não me tramou assim tanto.Agora tenho duas gigantescas missões — garantir que as minhas três filhas se sentem, como eu, capazes de ser e fazer o que bem lhes passar pela moleirinha, mas, mais importante ainda, educar o meu filho a ser tão feminista quanto o pai.



Nota final muito importante: Na empresa onde trabalho no ofício cada vez mais difícil da comunicação e da assessoria de imprensa, há quatro colaboradores com quatro filhos. Há pelo menos um com três, e dezenas com o casalinho ‘piroso’. Neste momento estão três bebés para nascer até ao final do ano: um verdadeiro baby boom. Somos uma empresa líder de mercado, posição que conquistámos e garantimos, pela excelência dos serviços prestados pelos melhores profissionais. Eu e os meus colegas temos um dos trabalhos mais exigentes e stressantes à face da terra, e ainda assim esta empresa regista uma taxa de natalidade muitíssimo superior à da média nacional. Alguma coisa corre verdadeiramente bem por aqui. O que é essencial quando falamos de igualdade e oportunidades. Devo também ao meu patrão e à segurança social portuguesa a possibilidade de, por duas vezes, ter podido tirar oito meses de licença de maternidade, uma pausa longa e importante no ritmo frenético, e que me permitiu ter a certeza que nasci mesmo para ser mãe e dona-de-casa.

x