Quem faz um blog fá-lo por gosto

quarta-feira, 25 de março de 2015

A Felicidade é uma caixinha mágica...

Em prime time, na caixinha mágica, na passada sexta-feira.

´Mãe, estamos na têvê'. Foto: A Família Numerosa.

Os meus filhos são a via verde para a minha, para a nossa felicidade. (andamos nisto juntos; somos bem mais do que a soma das partes). Os meus filhos são também certificados de aforro, poupanças com juros altíssimos, são depósitos a muito longo prazo de gargalhadas e corações cheios, a transbordar, sem penalizações por movimentações antecipadas.

Metáforas financeiras à parte - nestas o Banco de Portugal não mete o bedelho -, a verdade é que a felicidade, cá em casa, não tem nada a ver com dinheiro. Longe disso. O ditado popular diz que atrás de um filho vem o pão, mas nem só de pão vive o homem. E os meus filhos são um jackpot diário e eu não estou interessada em poupar, esbanjo tudo, como uma excêntrica, e tento dar ao próximo um pouco desta fortuna bem-aventurada.

Não chegámos a este ponto de onde se vê tudo com mais clareza e serenidade decifrando códigos misteriosos, resolvendo quebra-cabeças tortuosos, não seguimos mapas do tesouro. Aconteceu-nos. A felicidade é uma espécie de bola de neve; tem sido assim: uma avalanche.

Ela entranha-se. E há uma grande pitada de sorte cá em casa. A felicidade é, aliás, a melhor amiga da sorte - encontram-se geralmente à esquina da vida, no momento exacto, nem mais nem menos um segundo, nem mais nem menos um passinho à frente ou atrás. A nossa história está cheia de felizes acasos, o nosso percurso está minado de felicidade - e nós mortinhos para cairmos uma vez mais nesse poço dos milagres.

Mas nem sempre foi assim, e mais cedo ou mais tarde todos andamos, ou todos andámos para aqui às aranhas, a apalpar às cegas e aos tombos o terreno acidentado desta bola perdida no Universo, a procurar o lugar que nos pertence por direito, na esperança que isso nos traga um sentido e para que a vida não seja um mero virar as folhas do calendário.

Ser feliz a uma segunda-feira, de madrugada, sem saber o que é sono profundo há quatro meses? Sim, é possível! Foto: A Família Numerosa

Não há uma escala de felicidade, não é uma prova, não há vencedores ou vencidos, e é claro que há dias mais ou menos felizes (é não sejamos ingénuos; há dias tristes e são esses que fazem da felicidade uma sobremesa gulosa, que se pode comer fora de horas, a qualquer hora, aliás).

Digo-vos um segredo: eu sou daquelas que vê o copo meio vazio. Eu sou daquelas que canta os blues e também o fado. Sou daquelas que tem uma ruga entre as sobrancelhas desde miúda, porque franzir o sobrolho de constante preocupação. Sou daquelas que convictamente acredita que viemos programados para chorar.

A Isaura demorou muito a sorrir, a sorrir deliberadamente. Dois meses para aprender a sorrir, o dobro dos seus estarolas irmãos. Na altura, eu escrevi assim, no meu Facebook, com uma foto do seu primeiro sorriso (ou segundo, vá.. eu não ando sempre com o telemóvel à banda, só quase sempre):



Quase dois meses para sorrir. Sorrir a sério, sem ser aos anjos, a dormir, ou com os gases, para os mais cépticos desta coisa das criaturas aladas que protegem o menino e o borracho.


A felicidade dá trabalho. Nascemos e assim que somos cegados pela claridade da vida que ali se inicia choramos. Vimos programados para chorar... Em plenos pulmões, com as goelas, sem lagrimas até. 
Dois meses para aprender a sorrir. 

A felicidade dá trabalho, filha, mas depois aprende-se o ofício e entranha-se como uma teia fina à nossa pele, como um ninho e também como uma armadilha fatal. Sorri sempre minha filha. 
Ainda é só o começo.

Não só sou eu que a prego, não sou só eu que professo esta religião da Felicidade - a ONU marcou o dia 20 de Março como o Dia Internacional da Felicidade e nós fomos, em canal aberto, em prime time para todo o mundo lusófono, dizer o que nos faz felizes (e diz a crítica que nos saímos muito melhor que o gurú do auto-conhecimento e do Querido Mudei a Casa).

Não há receitas escritas num Pantagruel de felicidade, não há pronto a vestir nesta coisa de ser feliz: o que funciona comigo pode não funcionar com o meu vizinho do lado. Cá em casa a felicidade é barulhenta e desarrumada - ai que desarrumada estava a nossa casa -, mas se eu, neurótica da arrumação, cheguei lá, toca a experimentar fazer mais do que nos/ vos faz felizes.

Façam o favor de ser felizes.

terça-feira, 24 de março de 2015

'As mães são as mais altas coisas que os filhos criam' - Herberto Hélder

'As mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos'. A minha mãe está em todo este blog. Ela é a mais alta coisa que eu criei. Foto: Manuel Oliveira 


No sorriso louco das mães batem as leves 
gotas de chuva. Nas amadas 
caras loucas batem e batem 
os dedos amarelos das candeias. 
Que balouçam. Que são puras. 
Gotas e candeias puras. E as mães 
aproximam-se soprando os dedos frios. 
Seu corpo move-se 
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões 
e órgãos mergulhados, 
e as calmas mães intrínsecas sentam-se 
nas cabeças filiais. 
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado 
vendo tudo, 
e queimando as imagens, alimentando as imagens 
enquanto o amor é cada vez mais forte. 
E bate-lhes nas caras, o amor leve. 
O amor feroz. 
E as mães são cada vez mais belas. 
Pensam os filhos que elas levitam. 
Flores violentas batem nas suas pálpebras. 
Elas respiram ao alto e em baixo. São 
silenciosas. 
E a sua cara está no meio das gotas particulares 
da chuva, 
em volta das candeias. No contínuo 
escorrer dos filhos. 
As mães são as mais altas coisas 
que os filhos criam, porque se colocam 
na combustão dos filhos, porque 
os filhos estão como invasores dentes-de-leão 
no terreno das mães. 
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos, 
e atiram-se, através deles, como jactos 
para fora da terra. 
E os filhos mergulham em escafandros no interior 
de muitas águas, 
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos 
e na agudeza de toda a sua vida. 
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa, 
e através dele a mãe mexe aqui e ali, 
nas chávenas e nos garfos. 
E através da mãe o filho pensa 
que nenhuma morte é possível e as águas 
estão ligadas entre si 
por meio da mão dele que toca a cara louca 
da mãe que toca a mão pressentida do filho. 
E por dentro do amor, até somente ser possível 
amar tudo, 
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor. 

Herberto Hélder, excerto do poema «Fonte», publicado em A Colher na Boca, 1961


Herberto Helder no incrível Projecto "Os Poetas"

sábado, 21 de março de 2015

O primeiro dia do resto da nossa vida

Tu e eu. Foto: A Família Numerosa.


Há nove anos um ponto de exclamação mudou toda a minha vida. Uma sinalefa semeada à visita 50.000 do meu blogue sombrio.
Ele era revisor tipográfico e pouco depois de o conhecer deixei-lhe este pedido, uma espécie de oração dos aflitos:

Revê a minha vida toda.
Suprime parágrafos inteiros se for preciso, elimina delírios que não acrescentam nada à história, semeia pontos finais que eu não tenho nenhuns em stock já não sei há quanto tempo, passa o cortador de vírgulas pelos campos floridos da minha história, põe-me os pontos nos ii, assinala a caneta encarnada, com pontos de exclamação, a mania inexplicável e analfabeta que tenho de escrever “trancinhas” com cedilha (e eu sei que gostas de reticências: na última página, na última frase, colado à última palavra, tens autorização da escritora para fazer uma orgia de três pontos colados uns aos outros e não vou queixar-me à editora, agrada-me a ideia de a história ficar em suspenso, de não acabar nunca, de ser interminável)

Dorme com este livro à cabeceira, não o revejas com pressas, não aguarda publicação, não vai nunca descansar a lombada nos escaparates das livrarias, nem será autografado numa qualquer edição da Feira do Livro – revê bem, porque só há uma edição, de autor, e tem capa de couro, como tu gostas, centenas e centenas de folhas cosidas umas às outras com linha branca, foi impresso em papel de 75 gramas por metro quadrado numa tipografia velhinha e farrusca da Mouraria, foi um homem sábio de olhos azuis, cabelos crespos muito brancos, gengivas cor-de-rosa e bata cinzenta pintalgada de negro, quem montou as letras de chumbo, com amor, num tabuleiro, e depois as forçou a abraçarem-se às folhas num beijo quente, e fez isso porque eu o mandei, porque eu quero que este livro possa ser lido com os olhos, quando há luz das lâmpadas ou do sol, ou pelo tacto, com as cabeças dos dedos, quando a noite cai e os dias começam.


E ele acedeu.
Com calma, com infinita paciência, com devoção e num acto de fé, sem quaisquer garantias mas com a força de todas as certezas, ele reviu tudo, como lhe pedi: passou o pente fino e deixou preso aos dentes e depois pela malha fina do coador, os despojos de dias tão tristes que vivi sem ele.

Esta é a nossa história.
Eu escrevo-a e nós vivemo-la cada dia tão intensamente que parece que nos conhecemos há bem mais do que apenas nove anos; talvez seja mais há nove séculos, sinto-o assim, um amor que vem lá de longe, de muito longe.
Ele dá-me lenha para a fogueira dos próximos capítulos e foi ele quem me ensinou a escrever num blogue cheio de luz e não de sombras e becos sem saída.
Não foram precisas novas letras, inventar outros sinais de pontuação. Se é entre escrever e viver eu prefiro viver.
Mas, passados nove anos - quem diria? - eu consigo viver e escrever.

!


Para quem não acredita em coincidências. 

quinta-feira, 19 de março de 2015

Dia do Pai

A menina do seu pai. Ele vai-te proteger de tudo, filha. Para sempre. Foto: Ties

Vivi muitos Dias do Pai com o incómodo de quem anda como uma pedrita minúscula dentro do sapato, gravilha que não impede ninguém de caminhar a passos largos, mas que implica um ligeiro coxeio, primeiro coisa pequena e depois um crescendo que lateja cada vez mais, que não mata mas mói.

Lembro-me da primeira vez que disse ‘eu não tenho pai’, com vergonha e a voz afogada em lágrimas e soluços. Não era um segredo, era um assunto em que simplesmente não se tocava, para a vida se obrigar a continuar sem mais delongas. Mas agora eu estava na escola, saíra debaixo da saia da minha mãe e colo das minhas avós. O mundo abria-se e a redoma perfeita em que me tinham colocado por amor estilhaçou-se chegado o mês de Março e eu sem ter a quem entregar o cinzeiro de pasta de papel (que coisa tão politicamente incorrecta nos dias de hoje) que secava no pátio de uma escola do Estado Novo.

Esse momento rachou-me o coração; sinto até a fissura, como uma velha cicatriz de guerra, que caminha ao meu lado, como uma muleta odiada, há coisa de trinta anos. Até porque não era verdade o que eu disse. Era apenas mais simples explicá-lo assim e evitar conversas e outro tipo de comiserações.

Eu tive um pai. Tive o pai que ele conseguiu ser e isso incluiu falhas grosseiras e injustificáveis, ausências prolongadas e presenças intermitentes, uma boa dose de mágoas de parte a parte e uma pitada de crises existenciais quando chegou a idade do armário e eu tinha problemas que chegavam para atulhar um walk in closet, mas deixei tudo enfiado em sacos pretos do lixo, na esperança que o contentor fosse levado para bem longe pela madrugada fora.

Tive o pai que tinha que ter tido. E hoje não guardo ressentimento algum. Devo-lhe muito apesar da sua ausências, ou se calhar até por causa dela.

Há coisas de que não pude fugir, coisas da tradição e da genética: herdei-lhe um apelido maluco, para começar, e o tom de pele escuro. Mas depois trago-o entranhado em tudo o que faço, em tudo o que sou, de uma forma por vezes sobrenatural: na sensibilidade extrema que me enche de nódoas negras, no amor pelo belo e pelas artes, no refinado sentido de humor e na gargalhada estrondosa que, regra geral, faz sorrir também quem a ouve, no asco a injustiças, na protecção aos mais fracos, no achar que sou sempre o centro do mundo, e também na coxa grossa.

O meu pai errou muito. Mas sei que me amou, que me amava muito também, do seu jeito estranho, mas amava. Era a menina do meu pai. E hoje sou mãe e sei que não é fácil, que às vezes parece ser demais para aguentar. Não tento dourar a pílula e justificar o injustificável, mas há muito que perdoei. Não tenho qualquer revolta, nem nenhum travo a amargor: as coisas são como são e esta couraça que se grudou em mim como uma segunda pele, assenta-me como uma luva macia de pelica.

É que, perdoem o clichê, eu tirei esta vida para ser feliz. E isso dá trabalho, dá muito mais trabalho do que ser miserável, um pobre diabo curvado por queixas e azudemes do que poderia ter sido e não foi. Por vezes, ser feliz, ou continuar para lá a caminhar a passos largos, obriga a umas difíceis digestões de batráquios que encontramos em charcos para onde fomos parar depois de nos desviarmos de trilhos sombrios, cheios de silvas, que nos tentam travar a longa caminhada. E eu já digeri os difíceis Dias do Pai que fingia ignorar ou que rasgava do calendário.

Fiz as pazes há muito com o Dia do Pai, o Dia do Padrasto, como sempre fiz notar com cinismo – São José era o Padrasto e ser padrasto é um dos maiores actos de amor incondicional. Aí não há nenhuma genética a puxar os cordelinhos. Presencio-o esse amor abnegado e paciente desde que conheci o João e ele me aceitou tal como eu era, com tantas virtudes como defeitos e com uma filha loira de olhos azuis atrás.

'Pai à vista!' Foto: Ties
Soube, aliás, que teria que lutar por este amor com quando, um par de dias depois de nos conhecermos, há quase nove anos, adoeci com uma febre inexplicável (o amor dará febre e vómitos?) e quando acordei, estremunhada, de madrugada, preocupada porque não tinha mudado a fralda ou dado o leite à minha filha, ele respondeu, da assoalhada ao lado, uma cozinha muito velha com o chão em xadrez carmim e bege, que tinha tratado dela muitas horas antes.

Hoje os meus filhos hão-de trazer desenhos, canecas, aventais, bases para os copos do melhor pai do mundo. O doce, presente, sensato e bonito pai (e padrasto também) dos meus filhos. É por ele que eu fiz as pazes com o Dia do Pai. Ele é o melhor pai que podia ser e, mesmo assim, não se resigna e vai mais além todos os dias.

Pazes feitas, siga para bingo, mas este ano o Dia do Pai dói-nos.

A vida, a nossa vida, não é feita em cinquenta sombras de rosa. Há fotografias de bebés, há filhos loiros e morenos, há reportagens na televisão e na imprensa com relatos idílicos, posts cheios de sol e luz celestial, há sorrisos e gargalhadas, famílias enormes e barulhentas em piqueniques fandangos e desarrumados no Jardim da Estrela, o nosso jardim de sempre e para sempre. Este é o retrato perfeito, sem mácula e também sem photoshop, que guardamos com toda a força do ser na moldura dourada da nossa memória. 

´'O meu pai é o melhor do mundo!!!' Foto: Ties
Depois há o que fica atrás da lente, que não ousamos escrever: a vida real, crua, tal como ela é. E há momentos em que a vida é insuportavelmente cruel. Porque, aconteça o que acontecer, ela continua. Nem uma alegria inebriante, nem a tristeza de uma perda irreparável a paralisam sequer por segundos.

Ela lá vai, segue segura. Ela assim continua, desde que de há três semanas para cá, perdi o meu pai ruivo, um pai que adoptei e que me adoptou, a quem roubei um apelido e o sonho de poder vir a ter um filho ruivo.


Durante o mês de Fevereiro, com a Isaura tão pequenina sempre ao meu lado, acompanhei, sobretudo com as minhas irmãs-cunhadas Rita e Joana, a última batalha do meu sogro António, numa guerra desigual contra um cancro batoteiro e devastador, que ele travou, olhos nos olhos, com uma incrível dignidade e com uma impressionante vontade de viver sempre mais um dia.

'O avô vai de barco Pirata para o céu com chapéu com uma flor. Eu vou lá atrás a mandar bolas de canhão'. Foto: A Família Numerosa.

Em jeito de confidência, ou em jeito de acto de contrição, não sei bem, disse-me, a olhar embevecido para a sua barulhenta família, que soprava as velas do segundo aniversário da sua adorada neta Alice: ‘Eu fiz tanta asneira na vida, mas no final estão todos bem; ficou tudo bem’.

Senti um arrepio a percorrer-me o corpo como a chicotada de um esticão eléctrico porque senti o meu próprio pai a sussurrar-me confidências através das palavras do meu sogro.

Tudo assim continuará, essa é a nossa promessa.
E esse é também o vosso legado, Pais.


Mensagem dos anjos e aviso muito sério à porta do velório do meu sogro. Foto: A Família Numerosa.

quarta-feira, 18 de março de 2015

Farrusca, the babysitter kitten

Não é só o Cenoura que é adorável com a pequena Isaura, parece dizer-nos a Farrusca. Foto: A Família Numerosa
Este é um post proibido a asmáticos. Este é também um post cheio de frio e cheio de ternura. Reza o mito urbano que os posts com gatinhos fazem furor na Internet. Os de bebés também têm algum sucesso, quanto sei.
Acho que vou rebentar a escala. Uma vez mais.

terça-feira, 17 de março de 2015

O Professor de Marketing -- isto não é um post comercial (mas estou babada com o convite da La Redoute)

Qual o segredo para ter uma família feliz? Andamos há muito a dizer que não há segredos ou fórmulas mágicas. Um dia de cada vez, bondade, sensatez e sermos fiéis a nós próprios. Coisas boas acontecerão. FOTO: A Família Numerosa.

Na minha primeira aula da faculdade, o adorável professor de Marketing (cujo nome não me recordo, que vergonha!) deu início às hostilidades, perguntando a cada um dos cerca de cem alunos que ali estavam alinhados cheios de sonhos e expectativas, bichos-carpinteiros e nervoso miudinho pela grande jornada que estava prestes a começar, por que raio ali estavam todos, com vista para a segunda circular, com ganas de aprender aquele ofício oculto da Publicidade e do Marketing.


Foi uma espécie de quebrar de gelo, de momento zero da vida académica depois das estúpidas praxes em que não pus os pés. Entre o terror, a timidez, a nervoseira, a gabarolice, os erros de casting e a total indiferença, um a um os companheiros daquela viagem, por enquanto perfeitos desconhecidos, mas cheios de boas intenções, simpatia e cadernos a cheirar a novo, revelaram-se o melhor que podiam ou sabiam ao responder àquela pergunta tão simples. E entre as frases feitas que o adorável professor de Marketing adorava (e usava amiúde como muletas do seu eloquente discurso aos pupilos), estava aquela de que só se tem uma tentativa para criar uma boa primeira impressão.

Alguns não tinham simplesmente o condão da oratória, outros responderam por monossílabos entredentes, um grupo de alunos foi politicamente correcto, houve naturalmente uma percentagem de lunáticos inconsequentes, coisa própria da idade, houve uns parvinhos, e dois ou três arrepiaram-nos e sacaram até palmas dos seus pares. Montou-se um circo. Ou uma feira de vaidades.

Sei que fiz uma espécie de brilharete quando chegou a minha vez, mesmo que tenha a perfeita noção, desde sempre, que sou muito melhor a escrever do que a falar, mesmo que a escrever pareça que estou a falar (confuso, não é?). Não consigo replicar o que debitei muito articuladamente, mas foi qualquer coisa assim, ou pelo menos assim o gravei efabulado na memória:

Eu fui para Publicidade e Marketing porque era o compromisso entre ter uma profissão e ser artista – e ter uma profissão era condição obrigatória para os filhos do artista boémio, que pelo seu (mau) exemplo destruiu qualquer hipótese de a sua descendência seguir as passadas de génio vagabundo do seu progenitor sem arriscar o degredo da desilusão de uma família inteira por mais um talento desperdiçado.

Fui para Publicidade e Marketing porque podia fazer uma série de outras coisas - e em todas seria boa, razoável, ou pelo menos acima da linha do sofrível –, mas escolhi a Publicidade porque gosto de fazer coisas bonitas, porque sou filha de um pintor e sei fazer bonecos, porque sonhava escrever poesia num slogan, mudar a vida de alguém com um copy bem esgalhado. Fui para Publicidade porque sou vaidosa, centrada e megalómana e é claro que fantasiava com a minha obra espalhada na rua, num outdoor que provocasse epifanias a condutores bloqueados no inferno do pára-arranca do trânsito, ou entrando em casa de todos, sem pedir licença, à hora do jantar, no bloco publicitário do telejornal ou da novela.

Fui para Publicidade e Marketing porque me atraía, sempre me atraiu, entender a psique dos consumidores naquele instante quase inconsciente que é o processo de decisão de uma compra – eu sempre quis ser mosca, entender o mundo todo a toda a hora.

Fui para Publicidade e Marketing também porque há marcas que trespassam a minha vida toda – mesmo antes de chegar à adolescência e morrer de desgosto por a minha mãe se recusar a comprar-me uns All Stars ou umas calças de ganga da Chevignon.

A La Redoute é uma dessas marcas: uma marca que entra cá em casa há quase três décadas, quando a venda por catálogo era vista com desconfiança e estava reservada a uma espécie de sociedade secreta, uma elite de destemidos que preferia arriscar uma troca ou devolução a uma procissão de lojas para a menina, para o menino, para o bebé, para a mãe, pai e avós. Nessa altura também não havia Internet e os computadores – por acaso havia um lá em casa, mas sei que éramos caso raro – tinham floppy disks e MS-DOS, pelo que compras à distância de um clique era apenas uma miragem, tipo ficção científica.

A chegada de um catálogo da LaRedoute a nossa casa era (é ainda) uma emoção descontrolada. Estranhamente, o meu avô Ralha era talvez o maior entusiasta, organizando a encomenda (creio que pagando-a também) e instigando os fervores consumistas da sua tribo e com uma especial predilecção por adquirir sapateiras para o seu roupeiro.

Sentávamo-nos à mesa redonda com o calhamaço (os primeiros catálogos para o mercado português eram pequenitos, como um teste de mercado), dobravam-se os cantinhos das páginas onde tínhamos morrido de amores por uma peça de roupa ou uma qualquer utilidade para o lar, e anotavam-se com muito cuidado as referências e preços na folha enviada para o efeito. Depois metia-se tudo no envelope RSF e vinha finalmente a espera e o crescendo de antecipação até à visita do carteiro que nunca bateu duas vezes, nem tão-pouco chegou entre as nove as dez cá no bairro de Alvalade.

Esta família era (e é) tão boa cliente da marca francesa que se instalou em Portugal, na cidade em que D. Dinis mandou plantar um pinhal, que até nos faziam chegar a casa os catálogos franceses, uma montra de produtos extraordinários e exclusivos à nossa disposição. Aí o ritual da compra incluía ver o câmbio do franco e treinar a matemática. A entrega era, naturalmente, um pouco mais demorada, mas valia a pena.

Devo à La Redoute o meu primeiro Babyliss e a loucura de uma pequenina máquina de costura que coseu grande parte dos retalhos da minha infância. O primeiro power suit que comprei, já estagiária jornalista, curiosamente a escrever sobre Publicidade e Marketing também veio do mítico catálogo. Entrevistei Luciano Benetton com ele no Chiado há tantos anos que até me dá vergonha de dizer. Há também umas sandálias que bateram muita manifestação da CGTP, quando o meu percurso de jornalista derivou para o jornalismo económico, e que morreram depois de uma greve geral algures no Chiado. E podia continuar, com a roupa de grávida, os conjuntos de recém-nascido do enxoval de cada um dos meus filhos, ou o carrinho das compras de oito rodas que galga escadas e buracos da calçada, e que a minha mãe utiliza de há uns vinte anos a esta parte…

É por isso quase comovente receber neste blogue um email da La Redoute a apresentar-me a sua nova colecção de Primavera para os miúdos. O Professor de Marketing se me visse hoje caía-lhe o queixo de espanto; soubesse ele o que eu já andei a fazer neste mundo das marcas, apesar de nunca ter feito aquele anúncio imaginado, que arrebataria todos os rugidos dos Leões em Cannes.

Somos velhas amigas, apetece-me isso à La Redoute, imaginando-lhe o sotaque parisiense: crescemos juntas, do envelope RSF para o número azul do call center, da operadora de telemarketing para a loja online, do catálogo em papel que adoro e vou sempre adorar para o prático window shopping no monitor do meu PC.

Fui para Publicidade e Marketing também por causa de marcas assim, que me lembram pessoas simpáticas, que evoluem e crescem comigo, e que sinto que vão estar sempre por aqui por este estranho mundo sempre em mudança.
Por isso, tirem o cavalinho da chuva se pensam que este é um post comercial. É o meu destino de marqueteira a cumprir-se. É um louvor público a uma marca que faz parte da história que vou contando por aqui e por ali.

Talvez seja também a minha primeira tentativa de ser um blogue de moda. Vamos ver se me safo.
Vou vestir os meus filhos de Primavera – e escolhi o dia perfeito. Talvez se opere um milagre tipo ‘dança da chuva’ ao contrário, e o astro-rei volte às nossas vidas, levando para longe o frio e a chuva.

Escolhi quatro looks da colecção da La Redoute, que até ao final do mês de Março oferece com descontos até aos 40 por cento e a preços muito simpáticos. 

Ora vejam lá se as manas quase-gémeas-com-19-meses-de-diferença, Aurora e Isaura, vão ficar de se comer, em pendant, com este conjunto intemporal de três peças (€29,99) :



A Carolina proibiu-me de comprar rendas e folhos, mas já estou a vê-la a ensaiar, no espelho da casa de banho, muitos milhares de selfies com beicinho bico de pato, com este vestido (€12,99), e em biquinhos dos pés com estas sabrinas de diva popstar (€13,99).
   

E porque o rapaz cá de casa provoca gargalhadas onde quer que vá, com a sua personalidade doce de doidivanas, a minha escolha para o António está nos antípodas das pirosas.Optei por umas vibrantes bermudas de muchacho louco (€14,99), que vou (des)combinar de forma feérica com tee-shirt de canídeo bem-posto (€7,49). Priceless!



Enquanto espero o carteiro e visualizo a sessão fotográfica que vou fazer, num relvado pontilhado de papoilas, margaças e pascoinhas (as imagens, essas privilegiadas, que nasceram em berço de ouro e valem mais do que mil palavras), vou continuar a pensar no professor de Marketing, para onde a vida ainda me há-de levar, e agradecer à La Redoute por ler este blog, por nos acarinhar e, sobretudo por ajudar a chamar a Primavera.

NR: O nome do professor era Madeira Correia. Como me pude esquecer? Dêem-me desconto (na roupa e não só): são quatro epidurais e muitos anos sem dormir as horas que devia. Obrigada, Professor!

sábado, 14 de março de 2015

Dia Internacional do Pi


3,1415926 - diz que é isto,, abreviado a apenas a sete casas decimais.  Foto: A Família Numerosa

Hoje é o teu dia, gato Pi. (Deve haver uma equação que explique o ângulo perfeito dos teus bigodes)

sexta-feira, 13 de março de 2015

Amor de cão



Já vos falei do único ruivo cá de casa, olhos doces, quatro patas, barriga sardenta, barbichas adoráveis, algum mau hálito e uma incrível propensão para sopas e descanso.

O Cenoura está connosco há quatro anos e antes disso esteve um bom par de anos à nossa espera e à guarda da União Zoófila -- até que todos os caminhos nos levaram até ele, numa tórrida tarde de Agosto cheia de felizes acasos que nos guiaram certinhos àquela box.

Tinha que ser assim. E a nós não nos podia ter saído melhor cão na lotaria.
Acho que acabo de desistir de o demover de dormir nos sofás e em todas as camas cá de casa. Rendo-me. Como é que depois podia ter fotos como estas, para toda a eternidade e mais além?



Adoptem. Não comprem,
A recompensa será um amor de cão :)



 Fichas de cães maravilhosospara adopção e à guarda da UZ aqui.


quinta-feira, 12 de março de 2015

Primavera



Chegou o temível mês de Março, aquele em que as abelhinhas andam loucas aos pólens, em que a Natureza acorda cheia de pica, depois do longo e gélido sono do Inverno, em que as vendas de anti-histamínico disparam nas farmácias.
O mês em que fazemos bebés.
Há um ano vinhas de surpresa com a força da Primavera.
Agora estás aqui, feita raio de sol, o centro do nosso mundo, da nossa família.

Fotos: A Família Numerosa num baratucho Nokia Lumia. O modelo é que faz milagres.


segunda-feira, 9 de março de 2015

I'm not a morning person

Isaura: Oi? Foto: A Família Numerosa


Anos a fio a odiar as manhãs. Feito gato laranja gorducho devorador de lasanhas, eu passei décadas da minha vida sem carburar como deve de ser durante as primeiras horas do dia. 
Esta aversão matinal transcendia o mau acordar. Porque, na realidade, sempre tive bons acordares - o despertador toca e eu pareço impulsionda da cama por uma daquelas molas celebrizadas nos desenhos animados.

Depois do calvário do meu percurso no ensino superior, que se iniciava no alto de uma colina de Benfica logo pelas oito da manhã (e que, por isso, muito sofreu por esta minha incapacidade física de funcionar de manhã) levei uma década boa de jornalista, com o dia a começar preguiçoso e tardiamente, respeitando o meu ritmo biológico e os meus sonos de beleza.


E depois aconteceu-me isto: as manhãs passaram a ser os momentos mais preciosos de todos.
Primeiro, aquele momento de paz e luz antes de o dia começar. Deixo-me invadir por aquele silêncio, mesmo que a gata Farrusca já me esteja a pressionar como uma sombra por uma saquera da Whiskas.

E depois começa o dua com os caracóis desalinhados da Aurora; os olhos inchadíssimos e azuis da Carolina em piloto-automático a passear-se com uma malga de cereais. Há as caretas mimosas e o bajulanço do António a pedir-me mais cinco minutos e abraços. Os primeiros sorrisos da Isaura ou os barulhinhos que faz quando está quase quase a despertar. Eu de pés descalços - sempre de pés descalços - a dar os bons dias ao João, com o romrom da máquina do café em surdina.

Acordo com as galinhas.
E agora sou um misto de mãe galinha e galo vaidoso, grato por cada alvorada.

Aurora: Ela berra mas eu não desfaço a pose. Foto: A Família Numerosa

quinta-feira, 5 de março de 2015

Isaura


[Vou-me habituando a esta coisa de me ter metamorfoseado numa estranha espécie de marsupial maneta, que se propõe a encarar a vida tal e qual como ela sempre foi com um bebé colado ao regaço e com um único braço e mão operacional. A minha mãe, noto agora, arranjou sempre alcunhas de insectos para os meus filhos: à primeira neta chamou-lhe ‘carochinha’. O António, pela sua doçura e amor cego pela sua mãe, ficou o ‘melga’. A Aurora, de tão moreninha que nasceu, ganhou o petit nom de 'cucaracha', nome doce para barata-tonta que é o meu raiozinho de sol. A pequena Isaura já não teve direito a falinhas-mansas da sua avó. É o 'carrapato'.]


Morrer de amor. Logo à primeira hora da manhã. Foto: A Família Numerosa

Estou há 90 dias num ciclo vicioso de amor.
Por vezes, caio em mim e espanta-me todo este deslumbramento.  

Vivi todos os dias deste trimestre como se tudo fosse uma primeira vez, como se o universo me concedesse de novo a benesse irrepetível e emocionante de uma estreia. É bem pior que isso, sei-o bem agora: não é a primeira vez… é a última. E há toda uma fatalidade arrebatadora nessa certeza.  

Ainda há pouco vivi todo este algodão-doce cor-de-rosa, não seria suposto trazer em mim pelo menos uma ténue recordação? Tenho dois bebés em casa – e isso sim é uma novidade. São 19 meses de diferença, ano e meio. E vou na quarta repetição, devia estar já de barriga cheia, até um pouco enfartada a pedir um anti-ácido. Encho-me de espanto. E fico aterrada no segundo seguinte. E depois penso, penso muito sobre que amor é este que apanhou desprevenida na curva apertasda que nem vi a chegar ao meu caminho: O que fiz eu para merecer tanto desta vida?

O último filho é em tudo igual ao primeiro. Descompensei-me toda: como mal, muito mal, não durmo - fico com insónias, do assombro de ter achado este tesouro, da vertigem de ter na mão a chave de toda a felicidade do mundo. Oscilo entre fervorosos estados de humor que se passeiam, frenéticos, em filinha indiana, pelas 24 horas do meu dia: vou do frenesi desenfreado ao êxtase num minuto, passo demoradamente por uma paz absoluta e branca que quase me cega de tanta claridade que me leva ao coração, mas, de um momento para o outro, agita-se tudo e deixo-me levar por um turbilhão de momentos de terror, pânico e exaustão.

Às vezes sinto que me falta o ar. Pelo devir. Pela fragilidade deste castelo de cartas perfeito, construído com enormes fundações numa nuvem farfalhuda com vista para os sonhos mais lindos de todo o mundo e de toda a gente. Sei, estou perfeitamente ciente que, de um momento para o outro, tudo se poderá agitar. E do castelo de cartas pode um dia apenas restar um baralho com que se volta a jogar às cegas. É tão imprevisível quanto isto. Mas, por enquanto, vou fazendo uns truques e – confesso – trago muitas cartas na manga para o que der e vier. Tudo o que me tem vindo a acontecer é pura magia. E eu já tenho os quatro ases na mão - são os meus filhos.

Estou apaixonada. Estou viciada na minha filha Isaura.
Estava no bloco operatório gélido do Hospital da Luz, a sofrer na pele todas os efeitos secundários possíveis e algum dia descritos para uma epidural, quando o chefe de serviço da Anestesia, que assistia à temível quarta cesariana (que afinal correu às mil maravilhas), me dobrou as costas e as empurrou para a frente, para que pudesse assistir a minha última filha a sair do meu ventre. Foi a primeira vez que um médico me deu essa oportunidade. Foi também a última.

Pouco importa que o momento National Geographic, da vida a acontecer ao segundo, tenha tido como efeito uma gigantesca quebra de tensão que fez disparar todos os avisos sonoros da maquinaria que me monitorizava. Vi sangue, vi o meu corpo todo exposto, com pinças e tesouras espetadas como uma almofada de alfinetes. E vi-a a ela. Ela deu o seu primeiro grito, respirou ar pela primeira vez e eu, acto contínuo, senti-me a afogar.

Foi o momento mais violento da minha vida.

A Isaura é o meu último milagre: o meu corpo dividiu-se em quatro e doravante carrego a graça de morrer todos os dias de amor.

O tempo de repente passou por mim.
Tenho o corpo todo tatuado por marcas de amor, podia até fazer uma cronologia, um itinerário a cada ruga, estria, cabelo branco, demorar-me em cada uma destas amolgadelas. O tempo passou por mim, mas, para já, eu levo a melhor. Trago a força dos sonhos que a vida há-de trazer aos meus filhos. 

Descompensei-me toda com este amor com quatro lados todos iguais, mas sinto-me capaz de feitos nunca imaginados. Posso mover montanhas com o meu dedo mindinho e com os outros nove que restam limpar rabos, fazer poesia, assoar ranhocas, e fazer do mundo um melhor lugar. Por causa deles e por eles.

Estou chocada por a vida me ter dado tanto. Agradecida a toda a hora. Por esta família que tão serenamente construo com o meu melhor amigo, com o amor da minha vida.

E depois há este cheirinho de bebé… Que inebria tudo e a quebra todos, que vicia, que é até altamente contagioso.

A minha mãe, como vos disse, chama a Isaura de carrapato.
Mas se calhar sou eu a lapa.

'A Isaura é tão linda que até me apetece desmaiar'. Assim fala o meu António. FOTO: A Família Numerosa.


Post escrito com a mama de fora, e apenas dois dedos da mão direita.