Quem faz um blog fá-lo por gosto

terça-feira, 19 de maio de 2015

O exame de Português - O que dizem os teus olhos, Carolina?


'Os teus olhos são vitrais que mudam de cor com o céu' FOTO: A Família Numerosa

O exame correu mal, diz ela de olhos muito brilhantes e subitamente raiados de vermelho. Quando está triste, ou quando está a um grau do ponto de ebulição são os olhos quem a denuncia. Sempre. Olhos azuis, olhos verdes, olhos transparecendo um azul das caraíbas pontilhados a amarelo. Ninguém sabe bem qual a cor daqueles olhos, mas não há mistério quanto a isto: eles nunca mentem. Os olhos da minha filha Carolina são o espelho da sua alma.

De manhã, bem cedo pela manhã, quis um pequeno-almoço continental - com ovos mexidos e salsichas. E eu lá vesti o avental e pus-me a cozinhar às sete da manhã. Fritos. Pelos filhos faço tudo. Até fritos às sete da manhã. Os vossos desejos são uma espécie de ordem.

Depois maldisse o vento que uivava na janela da cozinha: queria levar uma roupa nova como amuleto (eu faço a mesmíssima coisa com sapatos). Resmungou com tudo e com todos, com as bebés que tardavam a despertar, que ia chegar atrasada, que os trabalhadores do Metro eram cruéis por decretarem uma greve com tantos alunos submetidos a um exame nacional.

Chegámos meia hora antes da abertura da porta da escola. Havia mais trânsito do que o habitual, mas o João, cínico ainda brincou: 'Se o chão de abrisse aqui à nossa frente, podias ir em ritno de passeio até à escola e chegavas mais do que a tempo...'

Tanto queixume, tanto maxilar cerrado de ansiedade e esperámos meia hora pela abertura das portas. Enquanto estaciono o carro na esquina, o rádio – acedi tirar a minha TSF da antena por amor - passa uma música de que ela gosta muito. Ela já vê sinais em tudo como eu, diz: já estou mais calma; acho que vai correr bem.

O vento despenteava a multidão de miudagem mal agasalhada que se punha ao primeiro sol da manhã a aquecer os ossos. Envergonhada, pediu para acompanhá-la, como no primeiro dia de aulas, como um bebé due se agarra às saias da mãe cheio de medo. Acedi. É bom ter o meu bebé loiro de olhos azuis de volta: vai correr bem; é só um teste, nada mais do que isso. 

Há mais dois ou três pais a vigiar de longe a ansiedade daquelas meninas-mulher que naquele momento breve voltam ao nosso colo. Sou uma mãe porreiraça de saia de cabedal e stillettos pretos e deixam-me ficar junto delas até à porta se abrir.

O contínuo está com cancro, está-lhe na cara toda a doença, e resiste com uma dignidade e força incríveis, penso nisso enquanto comanda aquela tropa de miúdos para a chamada nas respectivas salas.

Alguns pais ficarão por ali à espera. No café, algures abrigados pela ventania. Mas eu tenho uma carrinha cheia de filhos para distribuir. Tenho matrículas e papéis para imprimir e preencher para o SASE: o meu dia não se faz de esperas, não hoje.

É só um teste.
Ter muitos filhos traz-nos estas certezas: não há mal que sempre dure. E para grandes males grandes remédios. E o que não tem remédio remediado está.

É só um teste.
Regresso à porta da escola depois de um dia de trabalho burocrático que venci em apenas hora e picos e já estão todos cá fora. O exame devia acabar daí a meia hora. Corre para mim: ‘correu-me mal, errei três perguntas!’. E os olhos quase lhe saltam de dor.

Nos últimos dias fui correctora de exames, tantas árvores abatidas para fazer livros de preparações para os exames, e mais essa no meu vasto currículo de competências. Digo: "Perdeste então nove pontos. Podes ainda ter 91 por cento, não estou certa?'
E tu, filha, não cabes em nenhum ranking e em nenhum exame de escolha múltipla de uma hora e meia. 


E os olhos dela voltam a sorrir.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Morte aos bullies (ou a tareia que um comediante se achou no direito de dar a três jovens numa rede social perto de si)

A minha filha Carolina está em todo o lado, nas ruas, na Segunda Circular, a apanhar pêras. Mas quando fez esta campanha, no Verão do ano passado, a Carolina andava a levar pêras de um bullying refinadíssimo de uma catraia de dez anos na escola queque onde estuda. FOTO: Hermínia Saraiva

Chego tarde, chego sempre tarde às grandes polémicas: o dia começa cedo, tão cedo e com tão poucas horas de sono, e não posso chegar tarde a todos os sítios onde me esperam - é claro que alguma coisa tem que ficar para trás e, se assim tem que ser, que eu chegue apenas tarde às polémicas.
O dia todo é sempre a andar, ao estilo Concorde, asas abertas, nariz meio empinado para o céu (às vezes cabeça nas nuvens também), esta família é imponente e grandiosa, é de grandes voos e assemelha-se a uma máquina perfeita, que faz virar muitas cabeças de espanto. 

Mas depois ando tão envolvida nesta coisa de ser mãe que chego tarde às coisas terráqueas, àquelas sobre as quais se diz que marcam a actualidade, mas que a mim, que ando a velocidade suprassónica, me passam ao lado.

Ontem comprei uma polémica, coisa que há muito não fazia. E fui meter-me em polémicas logo no 13 de Maio, que não era dia para polémicas; era dia de sermos todos melhores pessoas e de percebermos a fragilidade e a inocência das crianças e como eventos extraordinários podem marcar uma criança para sempre. Os pastorinhos viram Nossa Senhora, reza o dogma, o mito. Infelizmente o13 de Maio de 2015 também lançou para a ribalta três crianças. Que não assistiram a nenhum milagre, não tiveram nenhuma visão. O 13 de Maio de 2015 violou três crianças. Uma e outra vez, repetidamente. Pelas redes sociais, pelos media, por todos nós.

A história é simples de contar, é quase banal nos dias que correm. Desta vez envolve um humorista da praça, que vestiu o manto não de santidade mas de justiceiro, inserindo um post na sua comunidade de perto de um milhão de seguidores, no qual denunciou uma barbaridade cometendo uma barbaridade. Uma barbaridade que se propagou como um incêndio de proporções dantescas, revelando o que de pior pode haver no ser humano.

O vídeo de violência gritante, que deixa qualquer um de nós com as entranhas revoltas - na véspera tinha estado a assistir a um documentário sobre os vinte anos após o genocídio do Ruanda e ainda estava com a natureza do mal na sua essência mais pura bem presente - lá segue o seu rumo viral, assim como o preâmbulo em que o humorista dos óculos azuis, embaixador anti-bullying, defensor dos fracos e dos oprimidos, se refere às infractoras, miúdas menores, de 'merdas de pessoas', sentenciando ainda do alto da sua toga de juiz que espera que com aquele post provem do seu veneno, vejam o que é bom para a tosse, levem umas chibatadas em público, pela Internet.

No seu post de indignação e de promoção à morte das bullies, o humorista nem sequer se apercebe que perpetua o ciclo de violência, que o amplifica a níveis inimagináveis, nem sequer pára para pensar que a vítima vai voltar a ser violada, agredida, quando, se calhar, já começara a sarar.

Mas seja feita a sua vontade, tanto na terra como no Facebook.

Voltámos à idade medieval, protegidos por um computador ligado à Internet, com forquilhas e tochas em riste na janela e no feed do nosso Facebook. É isto. Combate-se violência com violência e já não é olho por olho, dente por dente - é olho por empalamento em praça pública e, provavelmente, aqueles que passaram o vídeo horrendo da agressão e o textinho supimpa do humorista que o acompanhava, são os mesmos que estavam, há menos de uma semana, com pena do miúdo das orelhas grandes dos Ídolos da SIC, inflamando protestos, repassando petições e indignações variadas sobre a violação dos direitos de imagem e de personalidade das crianças e jovens.

Com a imagem da incrível manifestação de paz e amor que é a procissão das velas e tentando acreditar na humanidade dei comigo a pensar que, fosse este rectângulo um verdadeiro Estado de Direito, competeria a justiça à justiça e não a um post incendiário de um humorista. Se calhar sou só do contra, ou se calhar sou só um pouco mais sensata e dou por mim a pensar que se este fosse um Estado de Direito o humorista teria já um delegado do ministério público, a tratar de instruir um processo contra o serviço público de linchamento público prestado.

O tema do bullying é sensível nesta casa. Tenho uma filha linda, talentosa, especial, espalhada por cartazes outdoor de uma campanha da marca Portugal. Na publicidade a minha filha apanha pêras rocha, mas quando tirou aquelas fotos num pomar do Oeste a minha filha levava pêras do mais alto calibre de uma catraia de dez anos. Bullying refinado, bem pior que estaladas. Volto a repetir, de uma catraia de dez anos.

O que é que eu fiz? Fui à escola bater na miúda? Imprimi cartazes com a foto da menina e incitei à criação de milícias populares contra uma criança? Não. Fui adulta, envolvi a escola, as miúdas, os pais. Há cicatrizes e a minha filha embruteceu no processo. Tornou-se insegura, tímida, apesar de ter o seu lindo rosto impresso em grande formato pela Área Metropolitana de Lisboa e Porto.

No melhor pano cai a nódoa. Ontem à tarde, juntando-se à furiosa multidão, a Associação de Pais do Agrupamento da minha filha repassou o post da polémica, como exemplo que o bullying deve ser combatido, que o bullying não vencerá, que a solução é denunciar, sempre denunciar. A discussão vai acesa e não surpreendentemente a roçar o surreal no dito post dos pais justiceiros, e comigo a achar que vivo num paralelo diferente da esmagadora maioria da população, e que o ódio é ódio ainda que bem intencionado. 

Somos todos vítimas neste 13 de Maio. Vítimas de nós próprios. E somos todos culpados. Brutalmente culpados por não tentarmos ser melhores pessoas que os nossos instintos mais básicos. É isso que nos distingue dos animais, das bestas mais enraivecidas.

Deixo-vos link para a Convenção dos Direitos da Criança, assinada em 1990, e ratificada por Portugal nesse mesmo ano. Chamo atenção ao artigo 40º a todos quantos ontem o violaram, a todos quanto se acharam no direito de cometer esse crime. Se hoje a manchete dos jornais, se o post do Nilton fosse o espancamento das jovens por terem sido reconhecidas na rua, ou o suicídio do jovem pela humilhação a que foi sujeito, será que justiça tinha sido feita?

1 - Os Estados Partes reconhecem à criança suspeita, acusada ou que se reconheceu ter infringido a lei penal o direito a um tratamento capaz de favorecer o seu sentido de dignidade e valor, reforçar o seu respeito pelos direitos do homem e as liberdades fundamentais de terceiros e que tenha em conta a sua idade e a necessidade de facilitar a sua reintegração social e o assumir de um papel construtivo no seio da sociedade.
2 - Para esse efeito, e atendendo às disposições pertinentes dos instrumentos jurídicos internacionais, os Estados Partes garantem, nomeadamente, que:
a) Nenhuma criança seja suspeita, acusada ou reconhecida como tendo infringindo a lei penal por acções ou omissões que, no momento da sua prática, não eram proibidas pelo direito nacional ou internacional;
b) A criança suspeita ou acusada de ter infringido a lei penal tenha, no mínimo, direito às garantias seguintes:
i) Presumir-se inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida;
ii) A ser informada pronta é directamente das acusações formuladas contra si ou, se necessário, através de seus pais representantes legais, e beneficiar de assistência jurídica ou de outra assistência adequada para a preparação e apresentação da sua defesa;
iii) A sua causa ser examinada sem demora por uma autoridade competente, independente e imparcial ou por um tribunal, de forma equitativa nos termos da lei, na presença do seu defensor ou de outrem assegurando assistência adequada e, a menos que tal se mostre contrário ao interesse superior da criança, nomeadamente atendendo à sua idade ou situação, na presença de seus pais ou representantes legais;
iv) A não ser obrigada a testemunhar ou a confessar-se culpada; a interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e a obter a comparência e o interrogatório das testemunhas de defesa em condições de igualdade;
v) No caso de se considerar que infringiu a lei penal, a recorrer dessa decisão e das medidas impostas em sequência desta para uma autoridade superior, competente, independente e imparcial, ou uma autoridade judicial, nos termos da lei;
vi) A fazer-se assistir gratuitamente por um intérprete, se não compreender ou falar a língua utilizada;
vii) A ver plenamente respeitada a sua vida privada em todos os momentos do processo.
3 - Os Estados Partes procuram promover o estabelecimento de leis, processos, autoridades e instituições especificamente adequadas a crianças suspeitas, acusadas ou reconhecidas como tendo infringido a lei penal, e, nomeadamente:
a) O estabelecimento de uma idade mínima abaixo da qual se presume que as crianças não têm capacidade para infringir a lei penal;
b) Quando tal se mostre possível e desejável, a adopção de medidas relativas a essas crianças sem recurso ao processo judicial, assegurando-se o pleno respeito dos direitos do homem e das garantias previstas pela lei.
4 - Um conjunto de disposições relativas, nomeadamente, à assistência, orientação e controlo, conselhos, regime de prova, colocação familiar, programas de educação geral e profissional, bem como outras soluções alternativas às institucionais, serão previstas de forma a assegurar às crianças um tratamento adequado ao seu bem-estar e proporcionado à sua situação e à infracção.


terça-feira, 12 de maio de 2015

Cocóóóó!!!!


Verão 2014, Pouves, São Pedro do Sul. Com ou sem mosca? A realidade é mesmo assim, imperfeita, mas a Aurora mantém sempre a pose. Foto: A Família Numerosa

Eu julgava que ia ser imune a estas ridicularias, quase frígida em relação ao orgulho desmedido e desproporcionado dos feitos básicos dos meus filhos: 'Ahhhhh, comeu a primeira sopa? E então, qual é a dificuldade: está tudo parvo ou quê??? Tivesse comido o seu primeiro Beluga ainda percebia a menção honrosa, digna de registo no livro do bebé, de uma conversa de almoço de domingo... Agora, uma sopa sem sal e sem grande sabor, espalhada por todos os centímetros quadrados da superfície da pele e roupa do bebé, honestamente não via como isso provocaria em mim um efeito electrizante ao do amor, aquele que nos pode pôr patetas a este ponto.

Achei-me superior, meia emproada e com algum orgulho nisso, uma mãe-rainha que lá do alto do trono guardaria o peito inchado e emproado para as grandes façanhas da sua prole, para as suas grandes vitórias que alterariam o curso do mundo.
E depois explodiu-me a realidade em frente aos olhos.
Saiu-me o tiro pela culatra: sou do piorio, não me canso de fazer figuras tristes, escorro baba e não trago babete ao pescoço, transpiro orgulho por tudo, mesmo tudo o que eles fazem, e não há Rexona que me valha!!! E já seria dose cavalar com a pacata média de 1,3 filhos por cada português. Mas trago este fado às costas: multiplico por quatro a mãezite aguda!!!

Acho - mas não posso jurar - que aquilo que nunca me apanharão a fazer na vida é a cantar - e muito menos comprar - as músicas do Carica, a Xana Toc-Toc, e o Panda: cá em casa levam essencialmente com Bach, Chopin, Mozart e Satie, que é música para todos os ouvidos, de todas as idades, que não implica coreografias imbecis e pais a descerem a sua idade mental para lá do que eu acho aconselhável sem danos neurológicos permanentes.

Mas a Aurora fez hoje o seu primeiro cócó. E eu já não posso garantir estar nas minhas plenas capacidades (sei lá eu bem quando foi que os meus dois primeiros filhos fizeram cócó??? Temo que talvez todas as teorias como os primeiros filhos são uns privilegiados estejam rotundamente erradas... Não me lembro de patavinas destes feitos fisiológicos fantásticos dos dois primeiros!)

Sentámo-la na sanita (nada de redutores, ao terceiro e ao quarto filho, lamento mas já não há cá maricagens dessas) e ela, imitando os elementos minoritários do sexo masculino cá de casa, pediu um livro, para a concentração que o momento exigia. O livro era o das aventuras de uma zebra chamada Luís que andava na selva (infelizmente, ou felizmente até, não era uma tradução do pai, dava logo azo a dizer que era uma tradução de me***) e, de repente, sem ninguém prever, plof, um cheirete que nada tinha a ver com rosas ou pó de talco do ambientador automático. Ficámos todos doidos de alegria, dentro da pequenina casa-de-banho, todos enfiados, contorcidos, a dançar uma espécie de dança da chuva índia, perante o ar seráfico da Aurora que não se apercebeu do porquê do escarceu.

Queria também dizer que a Isaura ontem comeu mais do que todos os irmãos juntos. Mas até parece mal, num post de cócó, não parece?

[e se este blog tiver a longevidade interminável que eu gostava que tivesse, os meus filhos vão me odiar tanto!]

sexta-feira, 8 de maio de 2015

A filha 'Test Drive'


Mãe, faz o test drive à vontade, que eu tenho o cinto de segurança apertado. FOTO: A Família Numerosa.

A Carolina é a minha filha 'test drive'.

A brilhante analogia não é minha: eu queixava-me da água na barba que ela, inexplicavelmente, me começara a dar de há um ano para cá, à conversa com uma amiga que levou com um rosário de ais só por ter tido a má sorte de me perguntar como estavam as coisas com a mais velha:

‘Ai, o que me haveria de calhar, ai que adolescência tão longa, ai, que ninguém merece, ai, logo agora quando eu ando para aqui num difícil equilibrismo em cima da corda bamba, a fazer acrobacias circenses com um bebé no colo, uma recém-nascida pendurada na mama e um puto charila com défice de concentração para acalmar e apoiar na complexa missão de aprender a ler e a escrever...’

E a minha amiga-guru Raquel Brinca alertou-me do alto da sua sabedoria serena: 'Cuidado, vai com calma, ela é a tua filha 'test drive''.

Junho de 2014 - A Carolina faz o 'test drive' de pegar ao colo na irmã Aurora. Saiu-se muito bem. Foto: A Família Numerosa
Franzi o sobrolho e, passado um segundo ou dois, abanei a cabeça para cima e para baixo em sinal afirmativo.
Depois comecei a gingar o pescoço para um lado e para o outro, em negação, cheiinha de culpa: ando aqui preocupada com os filhos-sanduíche, os entalados e nem parei para fazer essa óbvia reflexão. É com o filho mais velho que testamos tudo; é com a Carolina que pomos à prova que tipo de pais estamos e queremos ser. E, por vezes, mudamos de estratégia abruptamente, travamos a fundo, guinamos o volante, inversão de marcha, tracção às quatro rodas. E quando a viagem não nos leva ao destino que esperávamos, e pomos em causa o que achávamos serem verdades absolutas da parentalidade, lá está o filho 'test drive' no banco de trás, como um 'crash test dummy'.

Andamos aos apalpões, às cegas, a jogar ao quarto escuro com os filhos. É divertido, claro que é; é viciante o abismo de seguir em frente sem ter bem a certeza do que se encontrará no segundo a seguir: prego a fundo e depois venha o teste dos travões.

Mas às vezes atropelamos, amassamos, mandamos uma cotovelada ou um encontrão ao filho 'test drive'. Sem querer, sem maldade: são mesmo assim as regras do jogo. E o primeiro filho é o que sai com mais nódoas negras. Não há sistema de segurança que nos valha. No banco da frente ou no banco de trás: vamos testando tudo, ligando os faróis, tocando a buzina, vamo-nos habituando a conduzir os filhos. 

Andamos nisto sem mapa ou bussola. Com o filho mais velho é sempre uma primeira vez e vamos pela intuição. Navegar é preciso, mesmo que às vezes seja à deriva. à tentativa e ao erro.

Depois acontece o triste espectáculo de engatarmos a mesma mudança e cairmos no ridículo. Damos uma de saudosistas. Na verdade, nem é isso: estamos tão à rasca, sem saber o que fazer, para que lado virar o leme, que encarnamos os nossos pais (eles são o nosso maior exemplo, mesmo que o psicoterapeuta os culpe por todos os danos colaterais do seu amor).

E então, e sempre por oposição, sacamos da nossa infância, douramos a pílula e temos alucinações colectivas – que outra explicação se pode dar para justificar como éramos uns santinhos, meninas e meninos obedientes e cheias de respeito pelos mais velhos?

Enunciamos chorrilhos de lamúrias que jurámos nunca pronunciar: de como era difícil a vida, que não comíamos bolachas todos os dias, que a televisão só começava ao final da tarde e dava uns desenhos animados marados, que comíamos fígado e mão de vaca, ah e geralmente também nos dá para dizer que só tínhamos um par de sapatos.

Mãe, a avó disse-me que nunca comeste mão de vaca na vida! Foto: A Família Numerosa

A minha filha ‘test drive’ é uma boa miúda, e eu tenho que ir com calma, relaxar; a pressão nunca fez bem a ninguém a não ser à panela quando coze leguminosas, e que eu saiba, até mesmo a panela explode de vez em quando, entornando o caldo em proporções nunca antes imaginadas.

São só onze anos de idade, a vida toda à espera, e está bem que é a primeira vez a haver negativas nesta casa, a haver mentiras descaradas e com a perna mais curta que a minha, a haver portas fechadas, pudores e segredinho. Mas nada disso é o suficiente para vaticinar um futuro sombrio, um cadastro eterno a perseguir a filha 'test drive': são infracções ridículas face ao que ainda está para vir, face ao que todos nós, pais, fizemos, se formos a desembaciar bem a parede de vidro da memória.

Ela tem muitos primeiros. Mas só nos lembramos dos maus com o filho 'test drive' quando a amiga nos pergunta: 'como vai a mais velha?'. Primeiras vezes que foram só dela e também nossos, que ela nos entregou sem lhe termos pedido nada. Lembras-te? Foram dela os primeiros cincos nas pautas dos exames nacionais, a melhor aluna da escola, foram dela as primeiras lágrimas de orgulho, a pele a eriçar, quando ela começou a cantar com voz de anjo em frente a toda uma escola, sem lhe tremer a voz ou sem fechar os olhos de medo.

A excelência às vezes chateia, às vezes revolta, queremos ser iguais, deixar de sobressair. 
Eu sei bem, filha, como é, desculpa se só cobro nada mais do que a perfeição. Ao contrário do que eu te disse outro dia ao jantar não tem mal nenhum deixar cair o extra de extraordinário e ser vulgar, normalzinho, nem que seja só para perceber que não há nada tão bom como ser o primeiro.


E tu serás sempre a primeira (mesmo que estejas a meio de uma tabela, serás sempre a primeira). Isso ninguém, mas mesmo ninguém te tira, minha primeira filha.


segunda-feira, 4 de maio de 2015

Socorro, a minha filha tem um blog!*

'Continuas chamando-me assim: bebé!!!' [Ups, a mãe apanhou-me, mas eu vou vestir o tutu, pegar no bebé e chamar o cão, para o triple play de fofura, para ver se me safo desta!!!]


A realidade supera a ficção, dá-lhe uma tareia daquelas que não são feias, são só ridículas e indignas: daquelas que não metem sangue e suor, apenas arranhões e puxões de cabelos.

Está de chuva! Ai, como está de chuva. 
E consigo piorar a meteorologia do meu estado de espírito sofrendo sempre um bocadinho mais do que era preciso – tenho tanto fado em mim que às vezes até dói como o fardo pesado do xaile tecido de ais da fadista.

Deixem-me andar aqui às voltas, como o carrossel que a vida é.

As famílias numerosas têm sofás grandes. 
As mães e os pais das famílias numerosas sabem que um sofá grande é um bem de primeira necessidade, mas não têm, cumulativamente, liquidez para comprar um modelo topo de gama, com o tecido macio, ou a pele de pêssego da Alcântara, nem a ingenuidade de pensar que, com quatro crianças, três gatos de garras afiadas e um cão dorminhoco esse seja um investimento sensato, com dividendos incluídos (quando formos velhos logo compraremos cadeirões de pele ou chaise longues de veludo ou brocado. Ou não…)

As mães e os pais das famílias numerosas gostam de dormir no sofá grande, no gigantesco porta-aviões que todas as noites duplica de tamanho, porque, lá está: os filhotes das famílias numerosas seguem as pisadas dos pais e também têm um amor pelo objecto fetiche que domina toda a casa. E é justo que lá caibam. Para além disso, um sofá-cama tem algo de mágico (na verdade, temos dois sofás-cama; não lhes resistimos)

A verdade verdadinha é que as mães e os pais das famílias numerosas andam exaustos. E mal se encostam no sofá, mesmo que este não se trate de um portento do conforto, caem para o lado, desligam a ficha, over and out: resistem a pouco mais do que cinco minutos de um qualquer canal televisivo a roncar.

E porque o sono é coisa valiosa e rara para as mães e para os pais das famílias numerosas e também porque há dias em que convencer a tropa a ir para a cama dá cabo dos nervos e paciência dos chefes do batalhão, às vezes enraízam-se maus hábitos, ou melhor, instalam-se rotinas doces, de sofás-cama abertos, cheios de filhos de pijama e pezinhos gordos alinhados em escadinha.

Actualmente as mais novas adormecem no sofá com os pais, num cosleep de ternura e cafunés. Ao fim-de-semana costuma ser uma pijama party em família para não haver queixumes que as bebés têm mais direitos e mais amor.

Estávamos então os quatro, cada pai com sua bebé, num primeiro sono velado pelos programas surreais do canal A&E, esponjados no sofá-cama piroso, cor-de-rosa shock, quando, pelas duas da manhã, a mais pequenina deu os primeiros sinais de fome. Esse costuma ser o momento da romaria para os respectivos colchões e lençóis brancos, bordados há muitas décadas pela senhora minha mãe.

O ritual é sempre o mesmo: a Isaura começa lentamente a espreguiçar-se, a virar a cabeça de um lado para o outro, a fazer barulhinhos fofos tipo ultrassom, eu acordo, depois acordo o João, ele, acto contínuo, leva a Aurora inerte para a cama de grades, e depois vem buscar a pequenita mamífera, enquanto eu bebo um copo de leite na cozinha. Piloto automático. Todos os dias.

Mas desta vez liguei o telefone para ver as horas. E o mosaico do Windows Phone avisava-me que a minha grande amiga, acabada de ser mãe, me tinha enviado uma mensagem. Imaginei uma foto doce da minha sobrinha Sofia a fazer carinhas fofas de recém-nascido e não resisti espreitar.

Isto contado é melhor que vivido ainda com os olhos inchados e colados das ramelas.

Lá no Hospital, com a recém-nascida a dormir e uma subida de leite a aboborar, a minha amiga Mónica apanhou um susto, com um perfil de Facebook público cheio de fotos da minha filha mais velha. Fez uma captura de ecrã. Enviou-me: ‘Tens conhecimento disto?’

Não, não tinha. Fiquei congelada. O leite coalhou-me no estômago.

O perfil de Facebook autorizado pelos pais estava há muito de castigo, pelas más notas, pelas insolências e arrogância permanentes. Ingenuidade a nossa achar que o castigo seria acatado humilde e diligentemente até depois dos exames nacionais que estão à distância de duas semanas, e que uma lição baixaria sob a sua cabeça loira com a pontaria de uma indesejada caganita de pássaro.

Toddlers & Tiaras [e contas secretas de Facebook e Instagram]

Talvez seja o desenrascanço português, a mera chico-espertice, o achar que o pai natal não existe e que, por isso, os pais não têm super-poderes. Ou talvez seja, nada mais do que a adolescência em efervescência. Pois é, minha menina, mas as mães são criaturas sobrenaturais. Mesmo que tenham que ter ajuda de outras mães, acabadas de parir, pela madrugada fora, a partir de um internamento de um hospital, as mães são implacáveis [Obrigada, Mónica!]. 
Que te sirva de lição! [Não servirá... E o pior está ainda para vir...]

Foi simples e, durante um par de meses, rendeu: criou-se outro perfil, com outro nome artístico, com outro email, e se o smartphone foi confiscado, o obsoleto Magalhães desenrascou o aperto.

Não mais preguei olho – apesar de a Isaura hoje até ter dormido quatro horinhas na sua cama, feito inédito (a vida, sempre gozona...)

Tudo público, tudo com georreferenciação, fotos dela, fotos da escola, fotos dela, fotos das amigas, fotos dela com as amigas, com os irmãos, com o cão, com o gato, a ir de férias, no jardim, no recreio, hashtags, violetas, muita ingenuidade, chain letters, páginas de fãs, e frases de auto ajuda da Chiado editora trocadas com as amigas já dentro dos lençóis para não serem catadas. E o horror total, o de ter dado vagamente a sua morada a uma suposta menina com o sugestivo nick de ‘Panca Dele’.

Hoje já descobri uma conta de Instagram.
Já mudei definições de privacidade e alterei passwords. Já chorei a rir e tive dores de barriga de medo.

E agora? Eu que tenho este blogue-diário e a página de Facebook das nossas peripécias, como lhe posso fazer ver que isto é coisa séria e até perigosa?


*Ela tem mesmo um blog, do meu conhecimento, e com o meu apoio. É - e se quiser será - uma grande escritora.


domingo, 3 de maio de 2015

Dia da Mãe , Dia da Tia

'Sou mãe. Qual é o teu super-poder?' (ps- super-mom in love with wonder dad).
O colar é lindo da Peace's Closet. No kryptonite allowed in this house.

Voltou a acontecer - ontem ao final do dia (meu Deus e que dia maravilhoso, com direito ida em família à piscina, almoço de cachupada em família, seguido de um pezinho na praia, com mergulhos, perninhas de bebé croquete e escaldão no nariz), lá passeava eu a minha calma displicente, driblando a barulheira infernal que quatro putos conseguem fazer, quando uma alma caridosa me alertou, de forma muito simpática e sem ferir quaisquer susceptibilidades, ou duvidando da minha sanidade mental, que hoje seria Dia da Mãe.

Isto há-de melhorar. Espero...
Já perguntei ao meu médico de família se existe a possibilidade de estarmos a assistir aos primeiros sinais de alarme de uma demência a instalar-se calmamente na ternura dos meus trintas, se não será melhor enfiar a moleirinha no tubo da TAC, fazendo figas para que tudo esteja direitinho. 

Ele ri-se e garante-me que não há razões para receios, que ando trocada por estar sob o efeito de drogas poderosíssimas: tresando a oxitocina - a hormona do amor - e, de par de horas em par de horas, ponho a mama ao léu, e lá me ponho a fazer prova de esguicho, a bombar prolactina onde quer que esteja. 

Ainda há a questão do sono, ou melhor da falta dele, daquele retemperador, o profundo, esse que é já uma lembrança longínqua da qual tenho saudade infinita, que já me aparece à frente dos olhos como um delírio febril, uma miragem depois de uma longa e doce tortura de sono. Podia ainda acrescentar o mito das anestesias epidurais sobre a memória. sobre mecanismos tão simples como aceder de forma ordeira ao reservatório das palavras e vocábulos para depois construir frases com sentido. 

Às vezes falha tudo: aniversários, efemérides, compromissos (e também sou perita em overbookings não deliberados as minhas desculpas desde já a quem já sofreu na pele o meu despassaranço). O modo sobrevivência não liga a convenções sociais deste tipo. Andamos a mínimos olímpicos, mas estamos nas olimpíadas: isso já ninguém nos tira.

Foi por isso que nem estranhei descobrir, a poucas horas da celebração, que era Dia da Mãe e eu nada tinha para sacar da cartola. Sem drama algum, desta vez, porque todos os dias da minha vida são Dias da Mãe, e todos os santos dias recebo presentes dos meus filhos (eles podem não saber disso, mas um dos meus super-poderes de mãe é uma visão que vê o invisível). 

Depois de dez mil tentativas esta é a melhor foto do Dia da Mãe. Há sempre alguém com cara de parvo. Há sempre alguém de olhos fechados. Há sempre alguém fora de foco.

E também talvez porque venho de uma família reaccionária de direita e porque dia em que passei de menina-tonta a mulher-mãe foi naquele feriado de Dezembro, o da Padroeira de Portugal, o do antigo Dia da Mãe antes de as convenções consumistas o terem reagendado para Maio. 

Também porque sim, só porque sim, porque também tenho um certo prazer em ser do contra, de defender o indefensável, hoje pode ter sido Dia da Mãe, mas cá em casa também foi Dia da Tia.

Ser tia é uma bênção maior. É poder nunca dizer que não. É conceder todos os desejos e as loucuras que só uma criança poderia conceber. É estragar de mimos, é ter compaixão e paciência infinitas. 

É injusto para os filhos o amor que os pais têm aos sobrinhos. Ontem fomos à praia, fizemos pizza, comemos pipocas, bebemos groselha, pintámos os lábios de chocolate, fizemos penteados, pinturas de festa, até as nails fizemos, e depois ainda desencantámos dos baús os, fatos de princesa e de fada. Foi assim até ao adormecer, todos extenuados de amor. Só pelos filhos e só pelos sobrinhos eu me proponho a dispender de forças para tamanhas super-produções.

Acordei cedo ainda assim, na ressaca de uma festa pijama de primos. A casa toda em silêncio, aquela paz a que eu assisto deliciada com medo da sua fragilidade. Cheguei à sala, um sofá-cama cheio de primos destapados, semeados desordeiramente por entre almofadas e peluches. A máquina do café bufava, os gatos roçavam-se por entre as minhas pernas suplicando a sua saqueta Whiskas diária, quando uma voz fininha disse: 'tiaaaaa'.

Há muito tempo que a primeira palavra do dia não era mãe.
Hoje também por isso foi Dia das Tias.

Apresso este post porque quero voar até a uma Maternidade de Lisboa beijar uma mãe, uma amiga de sempre e para sempre.
E fazer juras de amor eterno a uma sobrinha pequenina, rechonchuda, perfeita, linda: a Sofia.

PS - A minha mãe é a mais linda!