Quem faz um blog fá-lo por gosto

quinta-feira, 16 de julho de 2015

As manas*

Aurora dá um 'quixixão' à Isaura nas Termas de São Pedro do Sul Foto: A Família Numerosa

Uma das maiores estupidezes que me passou pela cabeça quando, há pouco mais de um ano, soube que estava grávida foi que a Aurora odiaria este bebé, porque a sua vinda lhe viria roubar a mãe, o colo e o mimo que era todo seu por direito, durante muitos e bons anos.
No auge do meu pânico e delírio imaginei a nossa vida toda em pantanas, do avesso e também de pernas para o ar, por causa deste anjo, cujo único pecado foi chegar-nos de surpresa e sem aviso (como chegam a maioria das coisas boas, aliás...)
Mas, na altura, senti o chão a fugir-me debaixo dos pés. E dramatizei. Muito. 
Na bola de cristal do futuro a seis, vi filhos traumatizados pela confusão e a refugiarem-se, mais tarde, na adolescência, nas drogas e más companhias. Vaticinei misérias várias, como desemprego, filhos escanzelados e cheios de fome (e ranhosos também), e montanhas de contas em atraso por pagar. Suei as estopinhas a visualizar o meu corpo (de top model aahahah) todo disforme e rebentado com esta quarta gravidez e ainda previ meu casamento destruído por causa deste bebé-milagre.
Depois houve um momento de epifania, a estalada que alguém precisava de me dar para eu sair daquele transe maléfico (que, só quem teve a vida baralhada de um momento para o outro, pode entender o quão paralisante pode ser este turbilhão). Há neste livro aberto, nesta história interminável, uma pessoa anónima, que teve uma intervenção central e quase divina na minha, melhor: na nossa vida.
Vi-a uma única vez, e ela obrigou-me a gravar o seu número de telefone, acaso eu vacilasse de novo para dentro do vórtice de loucura.
Não mais a contactei. Temo até que, se a vir na rua, não a reconhecerei. 
No dia em que a Isaura nasceu, e apenas nesse dia e nunca mais, enviei-lhe uma mensagem a agradecer-lhe tudo o que fez por nós. Ela respondeu a dizer que se lembra muito da conversa que tivemos, combinada pelo destino. 
Pois bem, eu todos os dias me lembro dela.

Ela não fez nada de especial. Simplesmente apareceu no momento certo e no sítio certo. Ouviu-me, calada, a mil lamúrios, a um quinhão sem fim de preocupações.
Eu sempre guiei a minha vida por sinais, como quem vê o Norte num céu estrelado, em pistas espalhadas por Deus (ou pelo destino). Tenho esta pessoa, a sua aparição do nada, numa improvável sequência de acontecimentos, como a da queda de um anjo na minha vida.
(e foi a segunda vez que isto me aconteceu, mas eu casei com o anjo, que posso garantir que tem sexo, porque já fez três filhos!!!)
Ela também falou, para além de ouvir com uma paciência infinita: disse-me duas ou três coisas certeiras que eu precisava de escutar para me (re)organizar.
E, se calhar, tinha que as ouvir de um estranho para acreditar que era possível criar quatro filhos, dois dos quais seguidos, sem comprometer a felicidade da nossa família, bem pelo contrário: amplificando-a ainda mais, levando-a aos quatro cantos, como o estou para aqui a fazer com a ajuda das minhas amigas palavras.
(eu, que sempre dependi da bondade dos estranhos, como a Scarlett).
Uma das coisas que eu precisava de ouvir era esta: 'Elas vão ser as melhores amigas, você nem imagina como elas vão ser amigas.'
Tenho o meu coração cheio de gratidão pelas dádivas que já me foram dadas de bandeja na vida. Pelos meus Anjos da Guarda.


*Post repescado no Facebook d'A Família Numerosa

domingo, 12 de julho de 2015

O berço (de ouro) e os lençóis (mágicos)

O Bambi chegou ao sítio onde era esperado. Parece de propósito, mas não foi.

Mais uma vez as voltas, melhor, as piruetas acrobáticas que a vida dá. Os caminhos que andam separados, se calhar lado-a-lado mas sem nunca se cruzarem, até que, a certa altura, chegam ao mesmo tempo ao xis do mapa do tesouro, o local onde sempre foram esperados.
Os lençóis velhos de bebé vieram de férias para a casa de campo. Fizeram 300 quilómetros à boleia de uma carrinha de sete lugares com um problema de sobreaquecimento do motor para, por milagre, se virem emparelhar-se com o berço achado no Olx.
Fomos em procissão, num dia muito quente de Verão, buscar o berço para a menina Isaura, andava ela às voltas no meu ventre, pequenina, e andámos também nós em ésses à procura de uma quinta sublime, barricada por um bairro social às portas de Lisboa.
A empregada / caseira recebeu três notas de vinte euros e deixou um lamúrio sentido na passagem de testemunho daquela peça de mobiliário, há muito esquecida no sótão: 'Criei todos os netos da senhora nesta cama... Eles já são crescidos, andam a acabar os estudos, e depois devem querer coisas novas..."
Depois do queixume, a empregada / caseira deu a sua bênção de aprovação: "Deus abençoe a vossa menina!"
Esta é a história de como o berço dos oito netos da senhora veio embalar os sonhos da Isaura. E como, cumprindo o seu destino, veio encontrar, numa quinta às portas de São Pedro do Sul, uns lençóis velhos que sempre lhe estiveram destinados.
A bênção resultou.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

David Clifford

A última foto publicada pelo meu amigo David Clifford. Um dia de chuva não mata a Primavera

O tema é batido, é recorrente neste diário de bordo d’A Família Numerosa: volto uma e outra vez, tantas quanto forem necessárias, até já perder a conta, para falar do ofício da felicidade.

 Dá tanto trabalho ser feliz.

Gostava de conseguir desenhar num mapa, ou pelo menos num rascunho, todo o caminho que tive que percorrer para aqui chegar.

Por vezes tento aceder a partes já muito longínquas da memória para escrever numa cábula encriptada, à prova de todo o esquecimento, todas as peripécias em que me meti, todos os atalhos que encontrei, todos os buracos onde me enfiei e me esfolei forte e feio, todas as escapatórias impossíveis que planeei, em desespero, e que, por acaso, tiveram sucesso. Até agora tiveram sucesso. Tanta sorte. Tanta audácia, que anda sempre ao lado da sorte.

Gostava de conseguir fazer um desenho. Com cores garridas. Da minha pequenina Odisseia.

E neste processo de andar sempre em fuga, a recusar o caminho mais fácil, mas por vezes sem conseguir resistir-lhe, neste turbilhão de urgência e falta de fôlego, à procura do destino que era o meu por direito, mas cuja porta de entrada triunfal eu não conseguia encontrar, eu queria nunca esquecer todas as ajudas que eu tive para aqui chegar.

Algumas, muitas vezes, quando tudo me parecia perdido, eu fui sempre salva. Às vezes, à última da hora, quando estava por um fio. Outras, lentamente, com paciência. Umas vezes foi pelos amigos de sempre, aqueles, poucos, que ficarão até à velhice. Outras, foi por amigos improváveis, efémeros, mas eternos, personagens aparentemente secudárias e que, no entanto, mudaram o curso dos acontecimentos.


Este blog é luz pura, branca, morna: é tudo o que eu nunca supus que pudesse ser possível para esta vida. Mas como em todas as histórias que nos prendem desde o início até ao fim, para cada herói há um vilão. Do outro lado da felicidade está a tristeza. A escuridão é a luz virada do avesso.

Não há como fugir; esta é uma lei tão velha como o mundo. É por causa dela que o mundo não pára de girar. Lado a lado com este blog tão feliz está um outro, tão triste e negro. Esse diário dos dias tristes é, na verdade, a ponte de cordas sobre o precipício que eu atravessei, insensata e cheia de fé, até aqui, a este lugar tão alto, onde vejo tudo e sinto tudo à flor da pele, com vista sob o paraíso.

Hoje, aqui neste texto para memória futura, faço a fusão dos meus dois diários. Hoje não estou feliz, estou devastada, continuo destroçada pela notícia que me chegou há duas semanas e dois dias, pelo telefone. Mas escolho este blog cheio de luz para fazer o meu luto.

“Estás a conduzir? Pára o carro e liga-me.”
Quatro piscas, encostada à paragem do 44 na Avenida Rio de Janeiro.
“O David morreu.”

O meu amigo David Clifford morreu.

Este blog é luz, e o outro é a ausência dela. É, quanto muito, o diário de bordo da aventura à procura da felicidade, com uma miragem, com um vislumbre de claridade de vez em quando, como uma estrela do Norte, que consegue furar uma noite carregada de nuvens.

Hoje este blog cheio de luz veste-se de preto por um instante para vos contar a história de um personagem incrível da história da minha vida, um homem bondoso, um ser humano extraordinário, inesquecível, que detonou uma bomba na vida de tantos que lhe queriam bem, que o queriam tanto, com a sua inesperada partida.

Se eu conseguisse desenhar um mapa, se ao menos eu conseguisse parir um gatafunho qualquer que vos ilustrasse como este homem me empurrou quase à força para o trilho certo desta maratona. E fê-lo a cantar. Fê-lo a cantar ao meu lado. A cantar comigo. Fê-lo muitas vezes em inglês, a língua em que fica sempre tudo bem, em que se evitam equívocos e mal-entendidos. A língua que esconde menos que aquela em que tento explicar como me dói que a história continue e que ele não volte mais.


É tão raro encontrar a nossa voz-metade algures nesta vida.
Tive uns ameaços antes. E uns falso-alarme depois.
Mas o David era a minha voz-metade. 

Se eu fechar os olhos – agarro-me a este truque várias vezes ao dia – consigo ouvi-lo.
E se eu conseguisse rebobinar todos os momentos em que senti o coração a explodir de felicidade, tipo bomba-relógio, se os passasse em fast forward, gostava de me demorar e de mostrar a todo o mundo, aquele em que, um dia, cantámos uma grande canção juntos, e acabámos os últimos compassos abraçados, como que agradecendo a eternidade daquele momento.

Eu sempre guiei a minha vida por sinais.

Pode ser loucura pura, podem ser sinapses aleatórias, infundadas em evidências científicas, clarões, tempestades na minha cabeça, peças de um puzzle imaginado. Mas eu sempre me dei bem com esta maneira peculiar de tomar decisões importantes para a minha vida.

Devia ter estado mais atenta. Que me fique essa lição, de estar sempre atenta, de nunca me distrair. Nada mas mesmo nada acontece por acaso e eu devia saber isso melhor do que ninguém.

A música, a one hit da banda pop gótico, que passou na rádio. O orgulho desmedido de ouvir a minha filha mais velha a cantar para a escola toda com voz de anjo e dizer-lhe, no final do dueto que cantou com o amigo Bernardo: ‘Filha, tens tanta sorte de teres encontrado a tua voz-metade com onze anos. Eu só encontrei a minha já tu tinhas nascido.’

Eras tu, David. Eras tu. Era de ti que eu falava e nem disse à Carolina o teu nome.

A mensagem que ficou perdida e sem resposta no meio de spam:

‘Liga-me. Preciso do teu insight’.
A última coisa que lhe escrevi: ‘Não se esquece nunca com quem cantámos uma grande canção. You’re my immortal friend’.


Não te esqueço, David Clifford. 
Essa é a minha promessa. E fica por escrito. You’re my imortal friend. Fica em inglês também. Como tu gostavas.

Perdoa-me. 
Vou continuar a trabalhar sem parar, sem desculpas, para nunca me desviar para o caminho que, sem a tua ajuda, não teria encontrado. 
Tu és personagem principal de muitas vidas. Se alguém, com mais jeito que eu para o desenho, conseguisse fazer um mapa, veríamos como está tudo ligado, como conseguiste entrelaçar tantas coisas que estavam emaranhadas com nós cego, que ninguém tinha pachorra para desatar. 
Talvez tenha sido essa a tua missão, talvez seja esse o teu legado. 
Pelo caminho deslumbraste tudo, com o teu génio e com o teu trato irrepetível e único. 
Que bênção ter podido cantar contigo. Que bênção ter-te sempre na minha vida. 


Podem conhecer o trabalho fotográfico do David Cliffford.
Aqui 

Dentro em breve regressarei com mais novidades sobre o merecido tributo ao génio do meu amigo David.