Temos um encontro marcado daqui a 24 horas. E para esse não há Excel que nos valha. [Foto: Ties.pt] |
A folha de cálculo da Microsoft entrou na minha vida há
metade dela. Mudou o curso de muitos eventos que a partir desse momento se
seguiram, entre macros, worksheets,
tabelas, gráficos e funções mais avançadas. Desculpem o jeitinho dramático,
profundo, solene e grave, mas vem aí uma boa história.
Pessoalmente irrita-me que um aplicativo do Bill Gates para
fazer contas e cálculos me tenha eventualmente desviado daquele que eu estava
certa ser o meu grandioso destino (depois, mas muito depois, muitos, muitos
anos depois, veio o Powerpoint, ferramentazinha que me dá azia, mas com a qual
transformo slides em euros e talvez
até dominar o mundo, mas isso, meus caros, são outros quinhentos; fica para
depois), mas é mesmo assim a vida: eventos extraordinários, acontecimentos tão
improváveis que nenhum matemático se daria ao trabalho de resolver a complexa
equação, rotundas iluminadas que abrem inúmeros caminhos e possibilidades num
frenesi de carrossel e encruzilhadas onde, num instante, tudo muda. Para
sempre. Quer se siga em frente. Ou se volte para trás. Corte-se à direita ou para a esquerda.
Foi numa sala de informática nas catacumbas de uma escola
superior de comunicação social em Lisboa, com uma arquitectura muito catita
sobre a segunda circular mas nada funcional e acusticamente viável para quem lá
almejava aprender as artes de vender a banha da cobra (e eu queria fazer
anúncios; era isso que eu queria: fazer bonecos, grandes copys que ficassem no
colectivo para sempre e filmes de trinta segundos que rugiriam em Cannes) que
eu cliquei duas vezes com o rato sobre o ícone do Excel.
Nada seria como dantes.
Não tive computador em casa até ser adulta e vacinada. Lá em
casa sempre houve muitas máquinas de escrever, Olivetti de várias cores e
tamanhos, eléctricas, com memória e apagador automático, e armazenadas em
gavetas da sala encontrávamos bobines de Kores e papel químico. Mas a minha mãe
nunca atinou sequer com o VHS ou com o evento extraordinário que foi o controlo
remoto da televisão, quanto mais com um computador. Sobrevivi a tamanha
provação de uma forma despreocupada e feliz, uma suplèsse que a minha filha mais velha, de dez anos, não parece
capaz de superar, só porque o seu Magalhães Socrático já não corre à velocidade
que ela acha conveniente para ver filmes da Violetta no Youtube.
À parte as aulas de Introdução às Técnologias de Informação
do ensino secundário, onde aprendi MS/ DOS no papel – porque a escola não tinha
um único terminal –, mantive-me indiferente a este teclado sobre o qual martelo
estas palavras com demasiada força (talvez a força necessária para uma
Olivetti) até à minha entrada na Faculdade, sobre a segunda circular, em
Benfica (um território que eu, menina de Alvalade, filha de uma mãe solteira
sem carta de condução, achava que nem fazia parte de Lisboa).
Tenho poucas recordações dessa escola. Fiz o curso
desmotivada e ao pé-coxinho, aparecendo muito pouco por lá – ali na segunda
circular não havia nada para mim, ou para os meus sonhos de fazer arte no bloco
publicitário da novela. Foi pura desilusão. Mas devo-lhe a meia dúzia de amigos
para a vida que ali conheci.
O Excel foi um dos raros entusiasmos que aquelas salas me
concederam: macros, balanços de stocks, listagens infinitas com tudo o que me
apetecesse. Já vos disse anteriormente:
há um obsessivo-compulsivo assanhado em todos nós. Cada qual ameniza a sua
ansiedade com o melhor escape que está à mão e, nessa altura, o Excel foi minha
bizarra muleta, e isso foi um momento tão ou mais perturbador como aquele da
minha pré-adolescência em que a simpática psicóloga escolar, depois de uma
gigantesca bateria de testes psicotécnicos à extra-sensível e criativa ‘filha
do pintor’, sentencia, visivelmente perturbada, que os meus melhores valores dão
para profissões burocráticas, como contabilista, ou analista financeira e que
os meus piores resultados iam, precisamente, para as artes.
São estranhos os caminhos do destino. Sei-o bem agora. E
aceito-o com serenidade.
O meu percurso académico
apresentou-me a muitos outros perturbadores softwares
informáticos. O SPSS de tratamento estatístico de dados nunca me deu pele de
galinha; o Photoshop e o Quark ainda me fizeram olhinhos; houve um outro de
planeamento de campanhas publicitárias, com cálculos de OTS, Audiências e GRPs
que ainda me fez levantar o sobrolho de interesse, mas a verdade é que eu
entrei para o jornalismo, e toda a minha vida mudou, por causa do Excel.
E isso também foi há metade da minha vida atrás. É assustador
constatar que o dia em que eu pisei numa redacção já foi há 18 anos – poderia
ter nascido outra vez, já teria atingido a maioridade e teria direito de voto.
A minha posição na hierarquia da redacção era igualmente bizarra. Estava no final da cadeia da alimentação mas mesmo assim deu-me
direito a um epíteto: era e fui largos anos da minha vida a ‘menina das
Bolsas’. Quatro páginas diárias estavam à minha responsabilidade; às quais
acresciam outras quatro semanais, num suplemento que fechava a desoras nas
madrugadas de sexta-feira.
Todas aquelas páginas impressas em papel de má qualidade se
faziam em Excel. Eu chegava a meio da tarde a um sítio até então ausente e
desconhecido da minha geografia de lisboeta, na Quinta do Lambert, e corria
macros com dados do mercado em contínuo e das cotações dos fundos, que vinham
em disquete de baixa densidade por estafeta da Bolsa de Valores de Lisboa. Havia um único terminal com Internet em toda a redacção e estava dentro de um aquário, como uma Mona Lisa no Louvre. E era eu quem lá mais passava tempo. A viajar através da Yahoo.
Eu chegava e introduzia o Nasdaq, o Ibex, o Dow, o Cac à unha dos ruidosos telexes
azuis que saiam do terminal da Reuters e, pelas 18h00, ligava o teletexto da
televisão do bar, onde se transacciona whiskey em copos discretos de papel,
para ver o fecho da bolsa suíça. Calculava a capitalização bolsista nacional, registava
a evolução semanal e anual do escudo face ao dólar e face à libra. Depois, de
tudo tratado no Excel, mandava dezenas de ficheiros para a rede e seguia para o departamento dos
gráficos, abria-se o Quark, anos mais tarde o Indesign e paginava-se tudo, ficando apenas à espera do
comentário da bolsa e dos câmbios lá para o início da noite.
Hoje, a 24 horas de nascer a
minha quarta filha, tenho o Excel aberto e toda a vida da minha família
numerosa na última semana e nos próximos dias está discriminada em células
digitais, à falta de papel quadriculado, régua e esquadro.
Como qualquer plano
perfeito, tem que ter a humildade de estar aberto a alterações constantes, a qualquer
hora do dia ou da noite, um baralha tudo e volta a dar, toca a encaixar de novo
as peças do puzzle esquizofrénico. Não previ pois que o António, que nunca está
doente, apanhasse uma amigdalite, e logo de seguida a ‘quinta doença’, ou que a Aurora
também decidisse que era uma boa altura para trazer para casa uma virose de nome
surreal – síndroma de pés-mão-boca.
É a minha quarta gravidez e,
se bem que não tenho a presunção de tudo saber sobre os mistérios da
maternidade, não estava também previsto no Excel o insólito acontecimento de
ter uma subida de leite mesmo antes de ter um bebé ao colo para alimentar.
Justiça seja feita; algumas coisas correram conforme o planeado: consegui fazer a árvore de Natal, no roupeiro dos miúdos estão conjuntos de roupa completos para todos os dias da próxima semana, incluindo cuecas e meias, acumulei na despensa leite, comida de gato e papas lácteas dignas de um bunker de sobrevivência, pintei o cabelo, fui à depilação e até arranjei tempo para dormir um bocadinho – privilégio que sei que vai estar em suspenso nos próximos meses.
Justiça seja feita; algumas coisas correram conforme o planeado: consegui fazer a árvore de Natal, no roupeiro dos miúdos estão conjuntos de roupa completos para todos os dias da próxima semana, incluindo cuecas e meias, acumulei na despensa leite, comida de gato e papas lácteas dignas de um bunker de sobrevivência, pintei o cabelo, fui à depilação e até arranjei tempo para dormir um bocadinho – privilégio que sei que vai estar em suspenso nos próximos meses.
A partir de amanhã, o Excel da Família Numerosa
prevê a que horas é que se tem que acordar e porque ordem, o que cada um toma
de pequeno-almoço, incluindo os animais, o conteúdo de cada uma das mochilas da
minha prole, as datas e horas dos testes de avaliação do final do primeiro
período, aparentemente todos marcados para esta semana, os imperdíveis ensaios
de hip hop e do coro da mais velha,
que será estrela da festa de Natal com a sua voz cristalina e jeito
desengonçado, as aulas de judo e de dança e as visitas de estudo a Monsanto do
rapaz do meio, que também tem que fazer uma figura de barro para o Presépio da
escola, as rotinas e manhas para adormecer a pequenina Aurora…
E, para cada um dos itens, o
meu Excel determina a respectiva delegação de competências, distribuindo o mal
pelas aldeias durante a minha ausência na maternidade. Detalhe a detalhe, preto
no branco, a quem confio toda esta complexa logística que é a minha vida. A vida que eu não trocava por nada, a vida que, se calhar, comecei a construir
quando cliquei duas vezes sobre o ícone do Excel pela primeira vez, há metade
da minha vida atrás.