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O meu filho Bonsai e Imortal. António Peter Pan Ralha. Foto: A Família Numerosa |
Já
vos contei, já não sei há quantos milhares de caracteres atrás: tenho uma preferência
genética, inata, mística, perfeitamente chalupa por números ímpares.
É
essa tara, aprimorada por gerações e gerações de homens e mulheres resilientes,
excêntricos, brilhantes, trabalhadores incansáveis, sonhadores, lunáticos,
génios, altos, magros, gordos, morenos, loiros, com caracóis e cabelos
escorridos, num itinerário que vai de Freixo de Espada à Cinta a Vila Nova de
Mil Fontes, que passa por Arganil, Viseu e São Pedro do Sul e que chega depois
a Lisboa e por aqui fica à beira do Tejo, que me faz ter uns certos fornicoques
por ter um número certinho de filhos, divisível por dois (cinco parece-me tão
melhor que quatro; uma mão cheia de filhos parece-me cada vez mais o meu
destino).
Todo
este ritual dos ímpares não passa de um sintoma leve de um transtorno do
espectro obsessivo compulsivo. Corre na família em doses suaves e que não
exigem (para já) medicação.
Para já.
Mantenhamo-nos atentos.
Mas é graças a esta superstição, a esta crença tola sem fundamentos que me assegura que os números ímpares são
melhores que os pares, que anseio sempre a chegada dos anos ímpares na minha
vida, com fé que trarão sorte, conquistas, milagres à minha vida e à vida
daqueles que me são próximos.
Em 2015, o mito dos anos ímpares perfeitos, imaculados,
repletos de felicidade e alegria cai por terra. Não sei o que fazer com esta
reviravolta de eventos na minha vida.
Em
2015 tive que explicar aos meus filhos o que é a morte.
Porque
ela nos entrou pela casa a dentro, negra, triste, devastadora. Uma e outra e
outra vez. Três vezes no total. O número perfeito. Ímpar.
E agora o que faço eu
com os ímpares? Faço figas? Com dois dedos? Dois?
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Eternidade. Foto: A Família Numerosa |
Quando,
aos primeiros dias de Janeiro, o diagnóstico do cancro de pulmão em estágio IV
do meu sogro, me chegou ao telefone, pelas cunhas e amigos que
trago para a vida, estava de cuecas na casa-de-banho.
A
Isaura, num coma próprio de recém-nascido, dormia serena no berço, muito
pequenina, recusando-se a crescer nas doses que os percentis do boletim do bebé
exigiam. E eu, com a bênção de uma prorrogação do prazo delicioso em que os
filhos são apenas das mães, preparava-me, em pezinhos de lã, para entrar no
duche, nessa missão quase impossível, nos primeiros dias de vida do bebé fora
do ventre da mãe.
A
casa estava em silêncio absoluto: o João tinha saído muito pouco tempo antes,
para a ronda de entregas dos nossos filhos pelas escolas e creche, e a D.
Nargeeza estava num sofrimento silencioso e branco, diligente e incansável na
missão de estender roupa de um agregado de seis (outra vez um número par – sete
seria tão melhor) no estendal da varanda, sob um frio polar do Inverno rigoroso
que o ano ímpar de 2015 trouxe.
Desliguei
o telefone.
Fiquei imóvel a olhar para os arabescos monocromáticos do chão dos
lavabos. Depois, baixei o tampo da sanita e fiquei ali sentada, com as mãos a
tapar os olhos muito tempo.
Não chorei. Talvez fosse do frio, talvez fosse da pior
notícia possível, do prognóstico demolidor e desesperançado, talvez fosse porque senti a morte
muito perto de mim, apesar de me sentir imortal por ter acabado de parir o meu
quarto filho.
Assim
que tomei consciência que estava a tapar os olhos com medo da morte, de a
enfrentar, ergui-me, e empunhei-lhe, frente a frente, a sua maior inimiga: a
vida, a vida que eu tinha gerado e que dormia na divisão contígua, com a
protecção de todos os anjos, de todos os santos, de todos os deuses, de todas
as religiões.
Acto
contínuo, numa agitação que me revolvia as entranhas todas, a mandíbula a
tremer, as mãos em gelatina, dei um beijo ao anjo-da-guarda de prata por cima
da cabeceira da minha filha, pedi-lhe protecção e descernimento para o que teríamos todos que enfrentar, e voltei à casa-de-banho sem fazer qualquer barulho – nem
sequer a dobradiça da porta se atreveu a chiar.
Nem um pio, tudo mudo e em câmera lenta.
Abri
a torneira do duche e pus-me debaixo do chuveiro muito quente que, rapidamente,
encheu a pequena divisão de um nevoeiro denso e morno, onde, submersa, tentava desenhar um plano para dizer o indizível:
‘João, o teu pai está a
morrer. Vai ser muito rápido; temos muito pouco tempo.”
Não
sei bem quanto tempo estive naquilo. Debaixo da água quente chorei. Gostei
sempre de chorar dentro do duche, ou sob a chuva torrencial.
Saí da banheira com a pele muito vermelha e engelhada, como uma velhinha, e tive que voltar a
sentar-me. Desta vez na borda da banheira. Senti todas as forças do meu corpo
a serem-me retiradas e tive que me sentar de novo.
Quando
consegui regressar à realidade, que estava, de um momento para o outro, em pantanas, levantei-me, desembaciei
o espelho, que por pouco tempo me devolveu o meu reflexo, para voltar a ficar completamente
baço, e decidi, num impulso que mais pareceu um choque eléctrico, que nada
diria, que fingiria que o telefone não tinha tocado, que guardaria para mim que
o nosso pai estava a morrer e que ia ser muito rápido.
Nesse
dia, horas mais tarde, visitei o meu sogro no Hospital de Santa Marta.
A nossa primeira casa foi na Rua de Santa Marta - foi lá que vivi as dores de crescimento, sozinha, com a minha filha Carolina, e foi lá que o João me apareceu, primeiro empoleirado pela janela de um computador da maçã, e depois, largando-me um maço de cigarros à porta, de madrugada, e fugindo sem eu ter tempo para lhe agradecer, ou lhe ver o rosto. Foi lá que juntámos os trapos, sem hesitações, no próprio dia em que nos conhecemos finalmente em carne e osso, e foi por lá que começámos esta viagem juntos, até ao infinito.
Choramos também pelas casas onde deixámos pedaços de nós.
Fiquei amiga de Santa Marta, a padroeira das donas de casa, e atribuo-lhe muitas das bênçãos que a vida me concedeu naquela rua enterrada sobre o Marquês de Pombal.
Da minha primeira casa guardo tudo entalhado na escultura da memória: uma casa muito velha, pequenina, que tinha uma sala laranja, uma cozinha vermelho sangue, um quarto cor-de-rosa com gatinhos, e o chão de todas as assoalhadas inclinado, como que tombando de cansaço, para gáudio dos gatos, que tinham sempre diversão garantida, pois era raro uma bola manter-se imóvel no mesmo sítio.
Voltei a Santa Marta pelas piores razões.
E supliquei-lhe tempo, apenas mais tempo.
Demorei-me na visita.
Peguei-lhe na mão e ouvi tudo com paciência. Comecei a
memorizar todas as sardas do seu rosto e dos braços muito magros, os sulcos
fundos de todas as rugas, todos os trejeitos e expressões catitas que usava.
Disse mil disparates, quando estou nervosa falo pelos cotovelos e por todas as outras arestas corporais. Fi-lo rir o tempo todo, com tanta fanfarronice nervosa.
Saí destroçada, e à saída, tive
um número exacto de passos, a percorrer pelos corredores, até à saída, para me
recompor. O segredo era meu. Só meu. Um dia que fosse que eu o pudesse guardá-lo só para
mim, seria um dia um pouco melhor para todos nós.
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"As pessoas crescidas têm sempre necessidades de explicações... Nunca compreendem nada sozinha". O Principezinho pelo António. |
Envelheci.
Ou
talvez tenha crescido.
Fui
egoísta também.
Todas
as mães são egoístas de vez em quando: pensei no meu clã e quis proteger acima
de tudo e todos o meu clã, as minhas pessoas. E por isso mantive o segredo. Engoli-o por amor e
cobardia.
Sofri
por saber, por ser a primeira a saber que a minha bebé, tão pequenina, acabada de nascer, não iria conhecer o seu avô, que a Aurora
não teria qualquer recordação e que a Carolina e o António perderiam cedo demais os mimos que só um avô pode e sabe dar.
Precisávamos todos de mais tempo. E o meu sogro lutou com todas as suas forças por mais tempo.
Aguentei-me
firme no meu voto de silêncio durante algumas semanas, mesmo quando era por
demais visível que o relógio não parava, que não cedia às nossas preces, e que o
sofrimento era já demasiado para suportar e ignorar.
Voltei
ao egoísmo: quis estar no maior número de momentos possível ao seu lado. Fomos
juntos comprar caril, paparis e água de coco ao Martim Moniz, e também fizemos
uma viagem insana, em caravana familiar, para comer um bitoque às Caldas da
Rainha.
Em
casa, já muito próximo do fim, tentei estar sempre lá, segura, forte, doce,
quis mostrar-lhe o quanto estava grata por ter sido responsável por ter trazido ao mundo o meu melhor amigo, o meu
companheiro de vida. Devo-lhe isso. Devo toda a minha família ao patriarca Leiria.
Pouco
tempo depois, do topo do Miradouro do Centro Comercial Martim Moniz, com a
Praça decorada para receber o Ano Novo Chinês, dragões e lanternas, olhei para um
céu azul de Fevereiro, e aceitei esta verdade: aquele podia ser um bom dia para
morrer. A morte vinha em ambiente de festa e trazia um raro dia quente de um Inverno rigoroso.
Pudemos
despedir-nos nesse dia do Dragão; ele deu-nos mais umas horas poucas.Tivemos
mais esse dia e apenas esse. No último momento, na última madrugada, respondi às duas mensagens que me enviou, e disse-lhe apenas que o
amávamos, que a Isaura estava a dormir ao meu colo, e que o amava também, que
estaríamos todos consigo à primeira hora da visita.
Não
faltei à promessa. Mas ele já partira e estava em paz.
As
crianças têm um faro específico, um radar que capta que algo está errado, e foi em Janeiro deste ano que eu
emancipei a minha filha Carolina, porque não fazia qualquer sentido esconder o
que até uma criança de onze anos conseguia ver, sem margem para
dúvidas ou milagres.
Uma
tarde muito fria, em que a deixei especada à minha espera, à porta da escola,
porque um tratamento de radioterapia do avô se tinha atrasado, respondi directamente à pergunta ‘O avô vai morrer?” Saía
fumo da boca no momento em que eu lhe disse, pigarreando, para aclarar a voz, que
me tremia pela brutalidade que iria dali a instantes proferir: ‘Filha, sim, não te vou mentir. O avô está a morrer."
E continuei, sem dó: "Tens que ser muito forte, pelo avô, e tens que me ajudar. Temos
muito pouco tempo. Tens que dizer-lhe que gostas muito dele todas a vezes
que estivermos juntos, e vamos proteger o António, porque ele não percebe
que o avô está a morrer; ele não sabe ainda o que é a morte.”
No
habitáculo do nosso velhinho Fiat chorámos. Senti-me quase a desabar pelo que
acabara de fazer à minha filha mais velha, mas não nos demos ao luxo de perder muito
tempo em lamúrias: o avô sofria e tínhamos o dever de nos manter fortes por ele. O tempo corria contra nós e ainda não baixáramos os braços e
continuávamos a dar luta. Teríamos muito tempo para fazer luto e pouco tempo para celebrar a vida junto do avô. Fizemos as opções. Engolimos juntas a dor.
Liguei
a ignição e seguimos viagem para visitá-lo.
O
António agarrou-se à Playstation, a Aurora brincou com a prima Alice e a
Carolina ficou comigo, junto ao avô Tójão, a segurar-lhe a mão. Sem lhe tremer
a voz, sem os olhos brilhantes, esteve ali, frente a frente com a certeza absoluta da morte. O amor pode tudo e foi nesse momento que a minha frágil e doce filha Carolina
revelou ser já a mulher que eu sempre soube que seria.
Foi
bem cedo pela manhã que soube que o Tójão partira.
Mais uma vez o telefone, a dar-me murros no peito. Mais
uma vez, o João a distribuir filhos pelas respectivas escolas, no eixo
Avenida EUA, Avenida de Roma e Avenida Almirante Reis e, mais uma vez, eu ali, sozinha em
casa, em silêncio, com a bebé embalada por uma chucha encharcada em Aero Om.
Chovia.
Choveu o tempo todo nesse dia.
O
João chegou e nem sei como lhe dei a notícia. Também não sei como dei a notícia
ao António e à Carolina.
Com
a Isaura colada a mim, arranjei forças e presença de espírito para vasculhar os arquivos de um disco rígido a rebentar de ficheiros JPEG, escolher e revelar fotografias de
dias felizes do meu sogro ao lado dos seus cinco filhos, ao lado dos seus queridos
netos. Comprei molduras e cestos de flores com cores alegres.
Espalhei fotos,
flores e velas, no altar.
Gostava
que alguém tivesse feito isto por mim quando o meu pai morreu.
Foi o meu
tributo.
Contra
todas as minhas ideias pré-concebidas e convicções inabaláveis sobre parentalidade e o tipo de mãe que quero ser, os meus filhos estiveram
presentes no velório do seu avô. Estiveram no velório a celebrar a sua vida.
Nunca digas nunca na
tua vida.
Acontecerão coisas extremas que nos obrigarão a reagir no momento.
Não há certos nem errados; as coisas são o que são: todos tentamos fazer o
melhor: às vezes acerta-se e outras vezes acerta-se ao lado. Mas acerta-se
sempre em algum lado.
Levei os meus filhos para o velório do avô.
Todos
juntos, os meus filhos e os meus sobrinhos, quiseram estar uma última vez com o avô. Todos lhe levaram um desenho. Todos lhe quiseram beijar o rosto.
Não aceitaram um não como resposta – quiseram, exigiram estar presentes naquela despedida.
Lá chegados choraram, riram, jogaram às apanhadas aos pés das santas, dos anjos e do morto. Guardarei para sempre a imagem do António a jogar Playstation às voltas do caixão e, subitamente a parar, por breves instantes, para afagar os cabelos ruivos grisalhos do seu avô, voltando de seguida às teias do Spiderman e a outra dimensão.
Sem pesadelos. Sem traumas. Com tristeza natural encararam a morte, despediram-se do avô e arrumaram o assunto muito bem arrumadinho.
Deram-nos
uma lição de vida.
As criancinhas explicaram aos adultos o que é isto da morte.
Há
duas semanas o telefone tocou pela hora do jantar, e o meu irmão Leonardo deu-me
a triste e incompreensível notícia que um bom amigo e um homem bom acabara de morrer.
O
que se faz quando um amigo que nunca vimos a fazer nada mais do que sorrir
morre? (de que se ri tanto o gajo, porra, lembro-me de pensar quando o conheci
há 18 anos)
Rimos?
Fazemos das tripas coração para sorrir?
Fui
esconder-me para a cozinha, sem saber o que fazer, sem descortinar como poderia reagir.
A
Carolina ouviu-me a chorar, sentada de costas para a porta, em cima de um banco de
madeira, o pensamento perdido nos labirínticos
favos da arquitectura modernista da varanda, e a pensar que 2015 nunca mais acaba - que o quero enterrar também.
A minha filha mais velha foi à casa de banho, tirou a escova da gaveta, regressou à cozinha sem dizer palavra, e pôs-se a pentear-me o
cabelo. Eu continuei de costas voltadas com as lágrimas a correrem sem tino. Depois de muito escovar, agarrou num elástico e entrançou todo o meu enorme cabelo com paciência e mestria.
Eu
mantive-me em silêncio. Ela também. Ocasionalmente dizia: 'Já passou, não fiques assim".
Assim que me atou o desgosto em forma de trança, preparou-me uma chávena de leite com groselha e preparou pratinho com um pão barrado com Nutella e polvilhado de
confettis de muitas cores.
'É
para te sentires melhor, mamã.'
Quando
eu recebi o telefonema a anunciar-me que 2015 me roubava mais uma pessoa, a
terceira, estava a arrumar papéis com purpurinas: piroseiras das meninas lá de casa. Tinha
as mãos cheias de brilhos e quando comecei a chorar esfreguei a cara e todo o
meu rosto se iluminou.
Quando
me levantei do banco da cozinha, tinha um copo de leite cor-de-rosa na mão, um pão
barrado com nutella e confettis, e o meu rosto cintilava. Eu estava viva. Tudo pulsava dentro da mim e dentro da minha casa.
Quando
me consegui levantar do banco de madeira da cozinha estava mais pobre.
Mas também estava mais rica: uma
vez mais, os meus filhos deram-me uma lição de vida. Sobre a morte.