A nossa família tem nome de árvore, uma das mais importantes
de todas, que alimenta e alumia e que, também por isso, é das mais banais de
todas. Escrevo estas linhas numa casa que também ela tem nome de fruto, de uma
árvore mais exótica, sobretudo nos anos 40, quando, numa aldeia junto às Caldas
de São Pedro do Sul, nasceu uma quinta com vista para as serras da Arada e do São
Macário, com o nome de ‘Manga-Manga’.
Aqui na aldeia sou a neta do ‘tio’ Oliveira, o ‘Manga-Manga’.
Batem-me à porta, metem conversa sem pudores no café, como se me conhecessem
desde sempre, baralham-se no meu nome, confundem-me com a minha mãe e também
com a minha avó, fazem contas de cabeça aos anos que se passaram, às décadas em
que a casa ficou em suspenso, adormecida e à deriva à nossa espera, do pesar
que todos sentiram por esse luto prolongado, ficam de queixo escancarado pelas
semelhanças da minha filha mais velha com a sua avó, a minha mãe, relembra-se a
beleza do jardim de dálias, hortênsias e noveleiros, desfiam-se novelos de
histórias à desgarrada, por vezes emaranhados pela neblina da memória, ou
remendados ao sabor da inevitabilidade de quem conta um conto poder acrescentar
sempre um ponto sobre a personagem quase lendária que foi o meu avô.
Aquele foi o tempo dos grandes homens. O virar do século, as
suas revoluções, a queda dos reis e a ascensão de homens que se fizeram apenas
às suas custas. Foram incríveis odisseias, com todos os ingredientes da receita
dos imortais: a dureza dos campos, a solidão das cidades, as peregrinações para
novos mundos, um rol apaixonante de incríveis feitos e insólitas peripécias que
tantos romances e filmes de Hollywood inspiraram. Mas aqui a aldeia é pequena e
há uma muralha de serras e uma teia de rios a guardar esta história. Tudo ficou
encerrado numa casa abandonada, cujos portões estamos a abrir, de mansinho, com
um gangue de filhos atrás.
O meu avô nasceu um desgraçado. Algures nos registos da
igreja estará o seu assento de nascimento, com a sentença mais triste que
alguém pode ter: filho de pai incógnito. O pai não era incógnito, na verdade
era um patife endinheirado que, do alto do seu cavalo e do seu poder quase
feudal, se forçava junto das raparigas nas lides do campo. A minha bisavó,
contam-me os antigos, nunca mais foi a mesma desde que o bandido Marcelino a
apanhou a caminho do moinho e lhe fez um filho. Morreu cinco anos mais tarde,
com a pneumónica, mas todos me contam que morreu antes, no dia em que o meu avô
foi concebido.
A nossa família tem nome de árvore por obra e caridade de um
padre da aldeia que lhe juntou o apelido ao nome de Manuel. Nasceu simplesmente
Manuel. O padre vaticinou que seria Oliveira. A escolha revelou-se acertada. Se
há árvore mais próxima da imortalidade é ela, a Oliveira.
Seguiram-se as terríveis provações e a fome. E os
volte-faces do destino. A história de um miúdo franzino destemido de uma aldeia
perdida em Lafões, que estudou e trabalhou sem descanso, que se fez ao caminho,
por um itinerário sinuoso e por vezes labiríntico dos seus grandiosos e quase
desmedidos sonhos. Há breve passagem por Viseu, seguida por uma viagem de
barco, o sonho americano nunca cumprido acomodado na bagagem do porão. Chega-se
a um porto gigantesco em África numa cidade que conhecemos apenas de
fotografias a preto-e-branco. E é lá que a vida e a fortuna do destino se
cumpre, décadas de trabalho e a construção de um pequeno império de
estabelecimentos comerciais, nos quais o meu avô com nome de árvore plantava
sempre duas mangueiras como um totem ou amuleto de sorte. Assim nasceu o
‘Manga-Manga’. Assim foi exportado para a aldeia de São Félix em São Pedro do
Sul, muitas décadas mais tarde, para uma pequena quintinha de pedra.
Eu sou a que já nasceu num berço de metal precioso. Mas sou aquela
que veio com um bando de catraios agarrados às minhas saias resgatar do
esquecimento a casa do ‘Manga-Manga’. Sou a neta pródiga da cidade que voltou à
procura das suas raízes, a que revolve a terra, a que a semeia e aguarda sem
pressas para colher os frutos. Ao sabor das férias do Verão. Na casa velha da
aldeia onde tudo começou.
Socorro! A terra é conhecida por águas milagrosas mas vai ser preciso um milagre para deixarmos de usar água do velho poço! |
Para o casal de trintões que nós já somos, este é o paraíso.
Meio hectare de terra. Um pomar de laranjeiras histéricas de felicidade, que brotam
frutos suculentos desde a Primavera sem quaisquer sinais de cansaço, e uma
pereira centenária muito curvada e paciente que todas as manhãs solta peras
farinhentas para o chão.
Quatro filhos soltos por aí, uma família numerosa que
duplicou o seu tamanho sem aviso há um par de anos, crianças soltas com as
pernas esfoladas, os braços arranhados pelas silvas, as mãos tingidas de roxo
das amoras silvestres, os pés negros do pó. Uma casinha pequenina que se
desdobra miraculosamente e recebe amigos e família. “A casa não se quere grande
para ser igual a um ninho. O amor, na casa pequena, anda mais conchegadinho.”
Está escrito num azulejo velho, embutido na parede da entrada. Era o mantra do
meu avô. Passou também a ser o meu.
As voltas que a vida dá. Do campo para a cidade e da cidade para o campo. Quase consigo sentir o orgulho dos meus avós nesta fotografia. |
A nossa aventura rural, de regresso ao passado e construção
de pontes do futuro junto às milenares Termas de São Pedro do Sul, começou há
um par de anos. Ainda éramos só quatro, um jovem casal e o seu casalinho de
filhos loiros. Tudo se tem feito com amor – não há outra forma de fazer bem as
coisas – e bem devagar. Electrificou-se a casa. Fez-se luz, mas,
inexplicavelmente, mudámos de século, e estamos na terra das águas com poderes
curativos que os Romanos descobriram, mas não há água canalizada nem saneamento
básico.
Racionamos recursos: há banhos rápidos e viagens à fonte mais
próxima para matar a sede com água potável. Ensinamos aos nossos quatro filhos
que a água não vem miraculosamente da torneira, tal como os ovos não nascem do
supermercado. Não trazemos televisão, nem acesso à Internet – e os miúdos
ressentem-se de saudades dessas coisas modernas que dão como adquiridas desde
que nasceram.
Escutamos a natureza: avançamos teorias e hipóteses sobre a
forma de reprodução dos caracóis, que têm um ninho junto ao poço, tememos, mas
ficamos deslumbrados pelos voos rasantes sobre as nossas cabeças das vespas
gigantes da terra, às quais chamam abigoiros. Analisamos girinos e ninfas de
libelinhas coloridas. Cavamos buracos e plantamos árvores e arbustos, à espera
que cresçam e envelheçam connosco.
Olha quem veio ajudar a estender a roupa na corda. |
Esta foi a última ceia desta libelinha. Poisou em todos nós, muito cansada, com as asas quase desfeitas. Depois poisou e pousou na cabeça de uma sardinha assada. |
Os dias passam devagar com as montanhas mágicas imóveis à
nossa frente, num quadro com uma moldura dourada imaginada de lembranças que
vamos construindo sob um sol escaldante de Verão. Cada folha do calendário é
uma aventura, uma descoberta. Esqueçam os postos do turismo, que nada sabem das
riquezas que a terra tem, e que encaminham os turistas e os emigrantes que
regressam à terra em Agosto para as modernas e indiferenciadas infra-estruturas,
para onde os fundos estruturais comunitários foram canalizados.
A terra tem rotundas e circulares absurdas, tem quatro
cadeias de supermercados, mas não tem água canalizada e saneamento. No Verão há
festas todos os dias e todas as noites, é um desfile de estrelas dos tops de
venda da indústria musical nacional, está marcada uma sunset party com a
presença badalada da rádio mais ouvida do país, e ainda há festas com estrelas
da música pimba que se atropelam umas às outras numa rivalidade de aldeias
vizinhas e de santos padroeiros. Mas quase ninguém sabe o que é e onde fica
Nodar. Ou que beleza esconde o Poço Negro ou Cabaços. O Vouga, o Sul, o Paiva, o
Paivô, o Zela – corremos atrás destes rios.
O itinerário das nossas férias faz-se dessa riqueza natural
única de Lafões. Faz-se de boca-a-boca, é esquadrinhado meticulosamente pelas
recordações das gentes da terra e por guias turísticos amarelecidos e não
reeditados. Vamos com calma e cuidado, mas sem medo: desbravamos locais onde a
natureza está praticamente intacta, chegamos a aldeias-fantasma de pedra, que
ali estão à espera para nos dar as boas-vindas. Assim se abrem paisagens e
territórios incríveis, para onde levamos atrelados quatro filhos, dois dos
quais bebés de colo.
De saída. Somos muitos e é uma logística lixada. Mas nunca paramos quietos. |
Os putos mais velhos resmungam, têm saudades da Playstation,
do Cartoon Network e do Panda. A mais velha, a entrar precocemente naquela que
adivinho que vá ser uma longa adolescência, telefona para os amigos para saber
quem foi expulso do concurso de talentos, e saca as novidades dos últimos
episódios da trama da novela.
Mas quero acreditar que estas serão as melhores férias de
Verão das suas vidas, aquelas que recordarão para sempre com saudade e
nostalgia, de coração cheio. Acredito que, no futuro, contarão a história do trisavô
‘Manga-Manga’ aos seus filhos, enquanto os empurram no baloiço que pendurámos no
ramo da laranjeira. Imagino-os a contar a história do gigantesco caramanchão de
glicínias que trouxeram ao colo num Verão e que plantaram com as suas mãos.
Vejo-os a regressar a Nodar, ao Poço Negro e ao Poço Azul, a Meitriz, a Pouves
e a Cabaços.
A minha família tem nome de árvore. E estas são as nossas
raízes. E estas são as nossas flores e os nossos frutos.
Obrigada ao Sapo, que me deu a possibilidade de escrever este conto de Verão. Aqui.