Quem faz um blog fá-lo por gosto

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Só me arrependo dos filhos que não vou poder ter*


Antes e Depois.
A Fada dos Dentes e o aumento do custo de vida: cada dente uma nota de 5 euros. Sem recibo.

A Família Numerosa fez de mim uma Nadia Comaneci da ginástica orçamental, apesar do meu generoso perímetro abdominal e de anca poderem indiciar pouca ou nenhuma mestria para a arte. Quem vê coxas não vê encargos financeiros e, acreditem ou não, eu sempre sonhei ser como a Nadia. Venha de lá então a medalha Olímpica, o registo perfeito inscrito em todos os cartões: 10.0

Os meus filhos não reparam neste treino de alta competição diário e nem mesmo os mais velhos, que ainda viveram com vacas bem gorduchas e que, ao contrário de mim, são barras a Matemática, percebem que os pais passam a vida a fazer muitas contas à vida. 
E nunca são contas de somar ou as complexas multiplicações; são sempre ábacos com subtrações e muitas divisões. Mas, mesmo com o resto zero na conta, nunca passamos aos negativos. Nada mau.

Foi nessa qualidade, de mãe-galinha poupadinha, que ontem tive um encontro imediato com uma alma desalentada. Apetece-me até benzer-me ao recordar o episódio. Mas há-de haver, no final da história, um ensinamento, uma lição a reter. Em tudo há e, geralmente, até mais nas coisas desagradáveis do que naquelas que nos correm de feição.

Corria eu os varões de uma bendita loja de roupa em segunda mão, de onde sou habitué com cartão de fidelização e enorme capital de simpatia pelo enquadramento familiar insólito para os dias que correm, à procura de roupa de praia e de ginástica para a pré-adolescente a quem já empresto soutiens, enquanto o trio dos mais novos jogava às escondidas entre os charriots carregados de roupas de mil cores, feitios, tamanhos e marcas. A Isaura alinhava, era atirada do ovo para um lado e para o outro - a confusão habitual: chegámos e arrasámos!

De repente, a mulher, nos seus cinquenta, benzoca, aprumada, excelente genética ou gentil passagem das folhas do calendário na carcaça, porém, tal como eu, a vasculhar na promoção das duas peças a cinco euros, atirou: 'São três, é?' 

E eu a preparar a resposta-bomba com o sorrisinho cínico a pôr a descoberto o meu canino afiado : 'Não, são quatro. Falta a mais velha, para quem estou à procura de roupa para a colónia de férias, porque deu um pulo e nada lhe serve'. 

E eis que se segue aquilo que quase nunca acontece : 'Eu também tenho quatro...' Mas logo a seguir novo twist (guarda o canino no sítio dele e ampara rapidamente o queixo para ele não cair ao chão): '.... e se soubesse o que sei hoje não os teria tido!'

Tirei os olhos dos cabides para a fitar, para lhe ver bem o rosto. Acho que não cheguei a esfregá-los para aclarar a visão, mas à minha frente não estava uma bruxa com verrigas e nariz afilado. Estava uma pessoa normal, um bocado madame, um bocado dondoca no cenário errado, mas tinha até um ar simpático, afável, parecia até que a vida tinha sido generosa.

Começou o chorrilho do trabalho que eles dão, do quão mal agradecidos serão por tudo o que fizemos por eles, que depois estudam, vão para a faculdade e o país não lhes dá oportunidades, emigram, e lá fora também não há emprego, que é só chatices, preocupações, a páginas tantas desliguei e tentei imaginar-me a sentir todo aquele amargor.
E não consegui. 

Tentei imaginar: o que pode ter acontecido a esta mulher para ter o descaramento de me atirar uma coisa assim tão desgradável à cara?
E não consegui.

Tentei rebater todo aquele desamor, todo aquele desencanto, mas não valia a pena. 
Não digo que a senhora fosse um caso perdido, mas o meu renovado eu não perde um segundinho da sua preciosa existência a teimar com quem tem verdades absolutas, quem diz que tudo viu, que tudo sabe. 
O meu alarme de más energias soou mudo mas bem alto, como só um apito de ultrassons pode incomodar um cão, mas antes de fugir dali, com uns calções catitas da Puma a preço de contrafacção da feira debaixo do braço, disse-lhe: 'Desejo-lhe o melhor. Mas eu só me arrependo dos filhos que não vou poder ter."

*Quando estava grávida da Aurora, o meu terceiro filho, um pai de quatro, o meu querido amigo António Granado, hoje avô, disse-me para não ter medo da empreitada que ali estava à beira de começar. Disse-me, e eu nunca me esqueci ou vou esquecer desta frase: 'Eu só me arrependo dos filhos que não tive".

Aurora


nome feminino
1.            claridade que precede o nascer do dia; madrugada; crepúsculo matutino
2.            figurado começo; princípio; origem

3.            figurado juventude
4.            a princesa carrancuda d'A Família Numerosa



quinta-feira, 4 de junho de 2015

O Livro

A Isaura ralha? Desculpa, filha, é uma tradição de família levar com essa a vida toda. Foto: A Família Numerosa

Há perguntas batidas na minha vida. E não é sequer de hoje. Tudo começou com o insólito apelido que trago no meu gigantesco nome, karma que também passei para os meus queridos filhos como uma cruz que é ao mesmo tempo um amuleto da sorte:
'E a menina ralha muito?' 'Não, geralmente sou um amor de pessoa... Só quando me perguntam isso é que me costumo passar da cabeça!', respondo eu com os olhos muito abertos, à beira de uma psicose induzida por uma pergunta que me persegue desde que me lembro de ser gente.

As pessoas não fazem por  mal, eu sei que não, é como o manual de procedimentos do empregado de café com aquelas do copo de água ou copo com água. E às vezes é até divertido. Há, por exemplo, a desconcertante resposta 'Não, é o quarto...' à inocente questão 'É o primeiro?'


Aí já sou mais condescendente e doce, acrescento até, com pena do ar de surpresa e pânico do meu interlocutor: 'Mas olhe, deixe-me que lhe diga que o quarto e último filho lembra muito o primeiro'.

A terceira pergunta mais recorrente da minha vida é: "E quando é que escreves um livro?"
Recentemente, com este blogue, aticei as feras, dizem-me, impacientes: "É desta que escreves um livro?" Não sei o que responder, como justificar esta preguiça, mas nunca me achei capaz de tamanha empreitada, nunca me propus também porque, se depois de quatro filhos, de algumas magnólias e cameleiras plantadas, se eu escrevo o livro o que é que depois me falta fazer?

Mais do que um exercício de transcendência, de como afinal é possível a felicidade produzir linhas direitinhas, cheias de alegria, de luz, este blogue tem uma única pretensão: fixar o momento para todo o sempre, deixá-lo sempre em suspenso, não é passado, não é presente, nem futuro; é uma espécie de coisa imaginada para o qual não foi criada ainda a palavra. Esta é a vida barulhenta, desarrumada, frenética e tão bonita que estamos a viver. Fora das palavras, dentro delas e também através delas. A vida que eu nem sabia, que eu nunca supus que pudesse ter.

E talvez, de certa forma, este blogue seja mais do que um livro. Ele é o registo da nossa história interminável.

Aqui, a minha querida Isaura, depois de meio ano neste mundo.




Mãe, ainda assim, vai lá preencher o meu livro do bebé, que ainda nada escreveste e eu já fiz imensas coisas nestes seis meses




terça-feira, 2 de junho de 2015

Somos os tais (uma espécie de underwater love)

Somos os tais. Amor de pais. A tattoo artist foi a Carolina. O António fotografou. FOTO: A Família Numerosa

Somos os tais. Aqueles que viraram pais.

Vamo-nos encontrando por aí, esbarramos uns nos outros nas mais variadas circunstâncias e lugares, dos mais banais até aos mais improváveis, à primeira e à última hora do dia: à porta da escola, no café da esquina, à cata da promoção das fraldas no hipermercado, no parque infantil do jardim que também foi da nossa infância, nos itinerários que as revistas e os portais da Internet desenham para fins-de-semana perfeitos, lúdicos, educativos, feitos à medida dos sonhos dos nossos filhos, à noite, pela fresca, faça chuva ou venha apenas o sereno connosco passear o cão que eles tanto queriam, pelo qual fizeram tantas juras e promessas vãs, e agora quatro patas, olhos doces, hálito de bode velho e sobrou para quem? Para os tais: nós, que virámos pais.

E tudo isto porque queremos dar-lhes o mundo inteiro, e de mão beijada; nem pode ser de outra forma, tudo merecem, não pode ser menos que tudo, porque também nós queremos ser os melhores dentro dos tais, aqueles que viraram pais.

Somos uma subespécie à margem, acima ou abaixo, nem sei bem. Mas estamos à margem. E talvez estejamos num estado de consciência alterado, uma espécie de seita. Sei que somos uma silenciosa maioria, subjugada por pequenos humanos, adoráveis, irritantes, soberbos, pequenos ditadores sádicos, por quem nos apaixonámos terrivelmente.

Sorrimos. A maioria do tempo sorrimos. Fomos feitos para isto, às vezes duvidamos do talento que temos para a coisa, inseguranças infundadas, porque não há fardo pesado de mais, não há sacrifício que não se cumpra sem hesitações, não há empreitadas impossíveis porque eles são a nossa continuidade, são o esforço, a vitória e a força de gerações e gerações até a este momento, este preciso momento em que nos puseram o peso da eternidade em cima de nós. Fomos investidos como os tais, aqueles que viraram pais, e essa é a maior demanda das nossas vidas: é guerra e é paz.

Durante muito tempo encontrámo-nos no jardim, entre os baloiços, a manta do piquenique, o escorrega, e as bicicletas com as rodinhas de treino que nunca ensinaram ninguém a andar de velocípede.

Hoje tenho um novo ponto de encontro com os tais, aqueles que viraram pais: esbarramos, invariavelmente, sem grande dignidade, a pingar dos pés à cabeça, de chinelos, touca ridícula que arrepanha a testa livrando-nos de umas quantas chicotadas do tempo na pele da face, perfumados com um cheireite a lixívia que me lembra sempre as mãos da minha avó Tóia e me traz à memória dias tão felizes de quando a minha infância não era tão atarefada como a dos meus filhos – saía de manhã com a avó, e seguia de mão dada com aquela mulher enorme numa rota que passava obrigatoriamente pela padaria, com papos-secos com ‘maminhas’ nas pontas, pelo leite do dia nos postos da Ucal, e por esta altura haveria já, na esquina do cinema King, um carrinho a vender morangos e cerejas em cartuchos de papelão, pesados em balanças que se penduravam lá do alto dos braços bem esticados ao céu, numa dança de equilibrismo, ginástica e elasticidade com pesos e pesinhos de chumbo.

This must be underwater love. FOTO: A Família Numerosa

Hoje em dia encontramo-nos todos no balneário infantil da recém-inaugurada piscina do Areeiro.
Somos seres assexuados, desfilamos semi-tapados por toalhas encharcadas, pais e mães, mudamos fraldas, secamos cabelos, tomamos duche lado-a-lado, celulite na coxa, pneu da felicidade, às vezes damos dois beijinhos quando há um reencontro longínquo, saudamo-nos com saudade, combinamos almoços e jantares que, provavelmente nunca acontecerão, e lá vamos para piscina dos pequeninos.
E mesmo que não haja nenhum glamour nas figuras que fazemos, lado-a-lado, pés e mãos engelhados e o raio da touca que nos dá ares de alienígena, este é o mergulho picado mais incrível das nossas vidas.

Somos os tais.
Somos os melhores pais.


E a vida segue leve e fresca como o corpo a boiar ao sabor da lua cheia e das estrelas numa noite de Verão.