Somos os tais. Amor de pais. A tattoo artist foi a Carolina. O António fotografou. FOTO: A Família Numerosa |
Somos os tais. Aqueles que viraram pais.
Vamo-nos encontrando por aí, esbarramos uns nos outros nas
mais variadas circunstâncias e lugares, dos mais banais até aos mais
improváveis, à primeira e à última hora do dia: à porta da escola, no café da
esquina, à cata da promoção das fraldas no hipermercado, no parque infantil do
jardim que também foi da nossa infância, nos itinerários que as revistas e os
portais da Internet desenham para fins-de-semana perfeitos, lúdicos,
educativos, feitos à medida dos sonhos dos nossos filhos, à noite, pela fresca,
faça chuva ou venha apenas o sereno connosco passear o cão que eles tanto
queriam, pelo qual fizeram tantas juras e promessas vãs, e agora quatro patas,
olhos doces, hálito de bode velho e sobrou para quem? Para os tais: nós, que
virámos pais.
E tudo isto porque queremos dar-lhes o mundo inteiro, e de
mão beijada; nem pode ser de outra forma, tudo merecem, não pode ser menos que
tudo, porque também nós queremos ser os melhores dentro dos tais, aqueles que
viraram pais.
Somos uma subespécie à margem, acima ou abaixo, nem sei bem.
Mas estamos à margem. E talvez estejamos num estado de consciência alterado,
uma espécie de seita. Sei que somos uma silenciosa maioria, subjugada por
pequenos humanos, adoráveis, irritantes, soberbos, pequenos ditadores sádicos,
por quem nos apaixonámos terrivelmente.
Sorrimos. A maioria do tempo sorrimos. Fomos feitos para
isto, às vezes duvidamos do talento que temos para a coisa, inseguranças
infundadas, porque não há fardo pesado de mais, não há sacrifício que não se
cumpra sem hesitações, não há empreitadas impossíveis porque eles são a nossa
continuidade, são o esforço, a vitória e a força de gerações e gerações até a
este momento, este preciso momento em que nos puseram o peso da eternidade em
cima de nós. Fomos investidos como os tais, aqueles que viraram pais, e essa é
a maior demanda das nossas vidas: é guerra e é paz.
Durante muito tempo encontrámo-nos no jardim, entre os
baloiços, a manta do piquenique, o escorrega, e as bicicletas com as rodinhas
de treino que nunca ensinaram ninguém a andar de velocípede.
Hoje tenho um novo ponto de encontro com os tais,
aqueles que viraram pais: esbarramos, invariavelmente, sem grande dignidade, a
pingar dos pés à cabeça, de chinelos, touca ridícula que arrepanha a testa
livrando-nos de umas quantas chicotadas do tempo na pele da face, perfumados
com um cheireite a lixívia que me lembra sempre as mãos da minha avó Tóia e me
traz à memória dias tão felizes de quando a minha infância não era tão
atarefada como a dos meus filhos – saía de manhã com a avó, e seguia de mão
dada com aquela mulher enorme numa rota que passava obrigatoriamente pela
padaria, com papos-secos com ‘maminhas’ nas pontas, pelo leite do dia nos
postos da Ucal, e por esta altura haveria já, na esquina do cinema King, um
carrinho a vender morangos e cerejas em cartuchos de papelão, pesados em
balanças que se penduravam lá do alto dos braços bem esticados ao céu, numa
dança de equilibrismo, ginástica e elasticidade com pesos e pesinhos de chumbo.
This must be underwater love. FOTO: A Família Numerosa |
Hoje em dia encontramo-nos todos no balneário infantil da
recém-inaugurada piscina do Areeiro.
Somos seres assexuados, desfilamos semi-tapados por toalhas
encharcadas, pais e mães, mudamos fraldas, secamos cabelos, tomamos duche
lado-a-lado, celulite na coxa, pneu da felicidade, às vezes damos dois
beijinhos quando há um reencontro longínquo, saudamo-nos com saudade,
combinamos almoços e jantares que, provavelmente nunca acontecerão, e lá vamos
para piscina dos pequeninos.
E mesmo que não haja nenhum glamour nas figuras que fazemos,
lado-a-lado, pés e mãos engelhados e o raio da touca que nos dá ares de
alienígena, este é o mergulho picado mais incrível das nossas vidas.
Somos os tais.
Somos os melhores pais.
E a vida segue leve e fresca como o corpo a boiar ao sabor
da lua cheia e das estrelas numa noite de Verão.
Gosto muito da limpidez e frescura da sua escrita. Do relato das suas origens... é sempre importante saber de onde vimos, ainda que nem sempre saibamos aonde vamos... É tudo bonito, tudo natural. Parabéns. Vou continuar a a acompanhar :)
ResponderEliminarOlá Rosário, muito obrigada! Um grande beijinho e boas férias, se for esse o caso!
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