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terça-feira, 19 de maio de 2015

O exame de Português - O que dizem os teus olhos, Carolina?


'Os teus olhos são vitrais que mudam de cor com o céu' FOTO: A Família Numerosa

O exame correu mal, diz ela de olhos muito brilhantes e subitamente raiados de vermelho. Quando está triste, ou quando está a um grau do ponto de ebulição são os olhos quem a denuncia. Sempre. Olhos azuis, olhos verdes, olhos transparecendo um azul das caraíbas pontilhados a amarelo. Ninguém sabe bem qual a cor daqueles olhos, mas não há mistério quanto a isto: eles nunca mentem. Os olhos da minha filha Carolina são o espelho da sua alma.

De manhã, bem cedo pela manhã, quis um pequeno-almoço continental - com ovos mexidos e salsichas. E eu lá vesti o avental e pus-me a cozinhar às sete da manhã. Fritos. Pelos filhos faço tudo. Até fritos às sete da manhã. Os vossos desejos são uma espécie de ordem.

Depois maldisse o vento que uivava na janela da cozinha: queria levar uma roupa nova como amuleto (eu faço a mesmíssima coisa com sapatos). Resmungou com tudo e com todos, com as bebés que tardavam a despertar, que ia chegar atrasada, que os trabalhadores do Metro eram cruéis por decretarem uma greve com tantos alunos submetidos a um exame nacional.

Chegámos meia hora antes da abertura da porta da escola. Havia mais trânsito do que o habitual, mas o João, cínico ainda brincou: 'Se o chão de abrisse aqui à nossa frente, podias ir em ritno de passeio até à escola e chegavas mais do que a tempo...'

Tanto queixume, tanto maxilar cerrado de ansiedade e esperámos meia hora pela abertura das portas. Enquanto estaciono o carro na esquina, o rádio – acedi tirar a minha TSF da antena por amor - passa uma música de que ela gosta muito. Ela já vê sinais em tudo como eu, diz: já estou mais calma; acho que vai correr bem.

O vento despenteava a multidão de miudagem mal agasalhada que se punha ao primeiro sol da manhã a aquecer os ossos. Envergonhada, pediu para acompanhá-la, como no primeiro dia de aulas, como um bebé due se agarra às saias da mãe cheio de medo. Acedi. É bom ter o meu bebé loiro de olhos azuis de volta: vai correr bem; é só um teste, nada mais do que isso. 

Há mais dois ou três pais a vigiar de longe a ansiedade daquelas meninas-mulher que naquele momento breve voltam ao nosso colo. Sou uma mãe porreiraça de saia de cabedal e stillettos pretos e deixam-me ficar junto delas até à porta se abrir.

O contínuo está com cancro, está-lhe na cara toda a doença, e resiste com uma dignidade e força incríveis, penso nisso enquanto comanda aquela tropa de miúdos para a chamada nas respectivas salas.

Alguns pais ficarão por ali à espera. No café, algures abrigados pela ventania. Mas eu tenho uma carrinha cheia de filhos para distribuir. Tenho matrículas e papéis para imprimir e preencher para o SASE: o meu dia não se faz de esperas, não hoje.

É só um teste.
Ter muitos filhos traz-nos estas certezas: não há mal que sempre dure. E para grandes males grandes remédios. E o que não tem remédio remediado está.

É só um teste.
Regresso à porta da escola depois de um dia de trabalho burocrático que venci em apenas hora e picos e já estão todos cá fora. O exame devia acabar daí a meia hora. Corre para mim: ‘correu-me mal, errei três perguntas!’. E os olhos quase lhe saltam de dor.

Nos últimos dias fui correctora de exames, tantas árvores abatidas para fazer livros de preparações para os exames, e mais essa no meu vasto currículo de competências. Digo: "Perdeste então nove pontos. Podes ainda ter 91 por cento, não estou certa?'
E tu, filha, não cabes em nenhum ranking e em nenhum exame de escolha múltipla de uma hora e meia. 


E os olhos dela voltam a sorrir.

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