'Os teus olhos são vitrais que mudam de cor com o céu' FOTO: A Família Numerosa |
O exame correu mal, diz ela de olhos muito brilhantes e
subitamente raiados de vermelho. Quando está triste, ou quando está a um grau
do ponto de ebulição são os olhos quem a denuncia. Sempre. Olhos azuis, olhos
verdes, olhos transparecendo um azul das caraíbas pontilhados a amarelo.
Ninguém sabe bem qual a cor daqueles olhos, mas não há mistério quanto a isto: eles
nunca mentem. Os olhos da minha filha Carolina são o espelho da sua alma.
De manhã, bem cedo pela manhã, quis um pequeno-almoço
continental - com ovos mexidos e salsichas. E eu lá vesti o avental e pus-me a cozinhar às sete da manhã. Fritos. Pelos filhos faço tudo. Até fritos às sete da manhã. Os vossos desejos são uma espécie de ordem.
Depois maldisse o vento que uivava na
janela da cozinha: queria levar uma roupa nova como amuleto (eu faço a
mesmíssima coisa com sapatos). Resmungou com tudo e com todos, com as bebés que tardavam a despertar, que ia chegar atrasada, que os trabalhadores do Metro eram cruéis por decretarem uma greve com tantos alunos submetidos a um exame nacional.
Chegámos meia hora antes da abertura da porta da escola. Havia mais trânsito do que o habitual, mas o João, cínico ainda brincou: 'Se o chão de abrisse aqui à nossa frente, podias ir em ritno de passeio até à escola e chegavas mais do que a tempo...'
Tanto queixume, tanto maxilar cerrado de ansiedade e esperámos meia hora pela abertura das portas. Enquanto estaciono o carro na esquina, o rádio – acedi tirar a minha TSF da antena por amor - passa uma música de que ela gosta muito. Ela já vê sinais em tudo como eu, diz: já estou mais calma; acho que vai correr bem.
O vento despenteava a multidão de miudagem mal agasalhada que se punha ao primeiro sol da manhã a aquecer os ossos. Envergonhada, pediu para acompanhá-la, como no primeiro dia
de aulas, como um bebé due se agarra às saias da mãe cheio de medo. Acedi. É bom ter o meu bebé loiro de olhos azuis de volta: vai correr bem; é só um teste, nada mais do que
isso.
Há mais dois ou três pais a vigiar de longe a ansiedade
daquelas meninas-mulher que naquele momento breve voltam ao nosso colo. Sou uma
mãe porreiraça de saia de cabedal e stillettos pretos e deixam-me ficar junto
delas até à porta se abrir.
O contínuo está com cancro, está-lhe na cara toda a doença, e resiste com uma dignidade e força incríveis, penso nisso enquanto comanda
aquela tropa de miúdos para a chamada nas respectivas salas.
Alguns pais ficarão por ali à espera. No café, algures
abrigados pela ventania. Mas eu tenho uma carrinha cheia de filhos para
distribuir. Tenho matrículas e papéis para imprimir e preencher para o SASE: o
meu dia não se faz de esperas, não hoje.
É só um teste.
Ter muitos filhos traz-nos estas certezas: não há mal que
sempre dure. E para grandes males grandes remédios. E o que não tem remédio
remediado está.
É só um teste.
Regresso à porta da escola depois de um dia de trabalho burocrático
que venci em apenas hora e picos e já estão todos cá fora. O exame devia acabar
daí a meia hora. Corre para mim: ‘correu-me mal, errei três perguntas!’. E os olhos quase lhe saltam de dor.
Nos últimos dias fui correctora de exames, tantas árvores
abatidas para fazer livros de preparações para os exames, e mais essa no meu
vasto currículo de competências. Digo: "Perdeste então nove pontos. Podes ainda ter
91 por cento, não estou certa?'
E tu, filha, não cabes em nenhum ranking e em nenhum exame de escolha múltipla
de uma hora e meia.
E os olhos dela voltam a sorrir.
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