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domingo, 14 de fevereiro de 2016

O quinto Orçamento do Estado ao qual vamos sobreviver...


IRS, IMT, IMI, IVA, ISP, IS: é a lócura!!! Mas ninguém taxa o amor multiplicado por seis cá de casa. Foto: Pau Storch

Dupliquei o tamanho da minha família — passando de dois para quatro filhos — durante a estadia da troika em Portugal.


No dia em que soube que estava grávida pela terceira vez, da minha filha Aurora (que ganhou este nome porque o futuro parecia sombrio, sem ponta de luz ao fundo do túnel no qual estava encurralada toda uma Nação), Pedro Passos Coelho anunciava, em conferência de imprensa, o aumento da TSU para os trabalhadores, para poder baixá-la para os patrões. Está inscrito no livro do bebé da minha filha: “Chorei a noite toda com medo do devir.”


A medida não vingou — milhares de portugueses foram para a rua protestar e, da nossa parte, até o cão vira-latas que resgatámos do abrigo desfilou —, mas o clima de inquietação manteve-se, vindo depois a confirmar-se o pior, com o “enorme aumento de impostos” de Vítor Gaspar, que nos pôs a todos a receber subsídio de férias e de Natal em duodécimos, mascarando assim o facto cristalino de que acabáramos de ter confiscados mais de dois salários, em impostos directos e indirectos.


Esta artimanha foi prática recorrente do anterior Governo: atirava-se para a praça pública ou para os media, em jeito de fuga de informação, uma medida estapafúrdia, para, depois, face ao clamor generalizado, se recuar ligeirissimamente, fazendo passar uma solução em tudo semelhante no seu impacto para os portugueses. A TSU e a sobretaxa de IRS abriram apenas quatro anos de hostilidades às quais os portugueses foram sujeitos..


Foi então ao nosso terceiro filho que tudo mudou — entrámos lá em casa em modo de sobrevivência. Primeiro chorei, aflita (permiti-me essa fraqueza momentânea) e, depois, enfrentei o touro pelos cornos. Não podia ser de outra forma.

Filha da Troika? Por aqui enfrentou-se a austeridade pelos cornos! FOTO: Pau Storch

Não cheguei a vender o ouro das avós, nas lojas de penhores que abriram nesse ano, a cada esquina (e que depois desapareceram como magia, quando já não havia mais anéis), mas recorri várias vezes ao OLX para vender uma série de parafernálias inúteis que tinha cá por casa, para compensar o défice estrutural que me foi imposto pelo Governo, com a sua dose cavalar de austeridade. Também comprei muita coisa que me fazia falta ao desbarato naquele site. E desmultipliquei-me em canais de Facebook de trocas, cupões e outras dicas de poupança.


Foi pelas minhas ausências prolongadas do café e da mercearia do bairro que vi pequenos negócios de família fecharem as suas portas, engrossando as estatísticas do desemprego. Por oposição, engrossei os lucros das grandes cadeias de distribuição, com as suas promoções imperdíveis de fraldas, de leite, do básico dos básicos. Essas cadeias, por sua vez, fizeram repercutir todos os 50 por cento em cartão de que usufruí nos produtores e fornecedores, na grande maioria das vezes esmagando-os. Também me passaram a cobrar os sacos e a impedir-me de pagar com cartão em compras inferiores a vinte euros.


Os meus filhos deixaram de ter pediatra privado — regressei ao serviço nacional de saúde, do qual me tinha afastado escudada por um seguro de saúde privado pago pela entidade empregadora, mas deixou de haver pão para as franquias altíssimas do mesmo. Encontrei uma equipa inexcedível — e também ela ceifada por cortes cegos — na Unidade de Saúde Familiar do Parque, em Lisboa, que devia ser notícia e exemplo da excelência nos cuidados de saúde primários em Portugal. Ali apercebi-me do verdadeiro significado do “médico de família”, pelo qual estou grata.


A minha mãe faz pelo menos três coisas impossíveis até ao pequeno-almoço. Esticar o orçamento e estas pinturas catitas incluídas. OTO: Pau Storch


A mais velha foi para a escola pública, intervencionada pelos milhões sem fim da Parque Escolar e, para além dos quadros interactivos e instalações luxuosas a lembrar um colégio privado, nunca teve professores por colocar, apesar de ter tido alguns das AECs dos tempos livres, pagos abaixo dos três euros à hora e a recibos verdes. Não obstante, numa interrupção lectiva da Páscoa, foi sugerida uma visita de estudo a Londres de uma semana, com o valor estimado de mil euros — dois salários mínimos nacionais. Outras realidades…

Fui também salva por uma notável IPSS, localizada há mais de cem anos num multicultural bairro de Lisboa, que garantiu resposta social para os meus filhos mais novos. A mensalidade de três creches equivale a uma renda de um T1 em Lisboa, sendo apenas suportável porque a avó desta família ofereceu uma casa sua, que ficou vaga pela Lei das Rendas, prescindindo desse rendimento para si. Se não fossem os avós deste país, não sei o que seria da minha geração…


Quando, ao terceiro filho, entrámos, modesta e timidamente, no lote das famílias numerosas, decidi, sem grande fé, submeter os papéis na segurança social para o abono de família. Tenho a cronologia de todas as maldades dos sucessivos Governos constitucionais bem guardada, para memória futura. Devemos a José Sócrates, e ao seu PEC III, o roubo do abono de família a milhares de crianças.

Para minha surpresa, ao terceiro filho, passei de imediato para o segundo escalão da segurança social. Queria isto dizer que estava oficialmente pobre, porque, em Portugal, só os pobres têm direito a abono de família, uma coisa verdadeiramente inexplicável e insólita num país com um Inverno demográfico de proporções glaciares, e sem oferta universal de cuidados na primeira infância (creches e berçários).

Cortes, impostos, taxas e taxinhas: Cortem-lhes a cabeça! Foto: Pau Storch
O quarto filho veio de surpresa um ano depois. Num acto de fé, agarrámo-nos ao provérbio que diz que “atrás de um filho vem o pão”. É certo que nunca mais houve contas de somar: apenas subtracções e divisões passaram a constar no meu léxico familiar. Nada nos faltou, porém: a economia do terceiro filho adensa-se ao quarto, e creio que seja assim a cada filho que a vida nos traz a mais dos nossos planos iniciais.


Passei a dominar com mestria todas as burocracias e caminhos labirínticos dos diversos serviços públicos — escolas, hospitais, segurança social, finanças e o que mais tiver de ser — e, tal e qual um douto catedrático da escola da vida, dou explicações à maioria dos meus amigos (e agora aqui nesta oportunidade que a Visão me deu), que têm uma iliteracia dos seus direitos e obrigações fiscais e laborais idêntica à minha antes de ter estes filhos todos.


SASE, IRS, IMI, IVA, IUC, IS, TSU: tantas siglas que passaram a fazer parte da minha vida!


A apresentação do Orçamento do Estado passou a ser, por força das circunstâncias, um momento-chave da nossa família: analisamo-lo pela lupa dos media, ao detalhe, e tentamos prever o seu impacto nas nossas vidas no ano que se seguirá.


O ano passado, a novidade era o quociente familiar. Ouvi: “Ah, agora é que vais receber dinheiro à grande do Fisco!” Os jornais não explicam as coisas como deve ser, e as pessoas acham que o Estado, o Fisco ou a segurança social dão o que quer que seja (roupa, livros, despensa cheia) a uma família com muitos filhos. E apesar de ter só quatro, a estatística revela-me que tenho mais do triplo dos filhos da média portuguesa, portanto: tenho muitos filhos.


O quociente familiar era-nos indiferente; para ter algum impacto, seria imprescindível que os salários da minha família não estivessem ao nível de há uma década. O meu agregado, tal como a esmagadora maioria dos agregados portugueses, com salários a rondar entre os 530 euros do salário mínimo (que não é alvo de qualquer desconto de IRS) e os 800 euros do salário médio, não faz grandes retenções em sede de IRS.

Eu fui a filha do tempo em que vivíamos acima das nossas possibilidades. Foto : Pau Storch
Ou seja, tudo o que descontamos/emprestamos ao Estado é devolvido no santificado reembolso de IRS, que é guardado para Setembro, para enfrentarmos sem angústias o famigerado início das aulas, e depois o que ainda resta aplica-se para o Natal (e para os aniversários dos três filhos que nasceram no mês do menino Jesus, fazendo cá em casa de Dezembro o mês da Natalidade), sobrando ainda qualquer coisita para pagar a revisão do (auto)carro de sete lugares e onze anos de vida.

Este ano caem os exames nacionais que a minha filha mais velha teve de fazer, e desaparece também o quociente familiar. Entra, em seu lugar, a dedução de 550 euros por filho. Passa a ideia de que o Estado me vai entregar 550 euros por cada filho. Dizem-me: “Este ano vais de férias!” Mais uma vez, propaganda enganosa, e totalmente indiferente ou marginal para quem tem salários baixos. De classe média-baixa.


Os filhos dos ricos valem sempre mais do que os filhos dos pobres. No quociente familiar valiam mais. Com esta medida valemos todos menos. Essa é a grande diferença entre as duas formas de cálculo. Maior justiça social?


Diz-me a imprensa — que por vezes é brutalmente contraditória nas análises efectuadas de título para título — que um português sem filhos e com rendimentos mensais de 1000 euros (essa fortuna!) pagará menos IRS do que um português com o mesmíssimo rendimento mas tendo um descendente a cargo. Por outro lado, pela voz da Associação das Famílias Numerosas, que, de acordo com esta nova medida do Governo que fez convergir todas as esquerdas, todos os rendimentos mensais superiores a 690 euros sofrerão um aumento real do imposto com a aplicação das deduções anunciadas de 550 euros por descendente.
Más notícias, não é?


Na imprensa nunca encontro simulações com mais de dois filhos a cargo; fico sem saber que impacto terá a medida… Sei que tenho de acrescentar ao histórico aumento de impostos de que se fala o aumento do ISP — mais uma sigla catita que vai encarecer tudo o que nos rodeia e não só o depósito do automóvel — e umas taxas e taxinhas na utilização dos cartões de pagamento electrónicos que se repercutirá sabemos nós bem em quem.


Não tenho ambições políticas, também não sou de esquerda, mas posso partilhar algumas dicas preciosas de multiplicação de um orçamento espartilhado e sujeito a cortes erráticos aos quais sou totalmente alheia. Já o faço para amigos, posso dar uma perninha ao primeiro-ministro, ao ministro das Finanças, ou ao secretário de Estado das Finanças.
A reposição do abono de família para TODAS as crianças portuguesas era um primeiro sinal de que tínhamos entrado num novo ciclo político, com políticas sérias de apoio às famílias e à natalidade. Com um valor máximo de 36,42 euros por mês (tabela de Fevereiro de 2016), um filho não chega a valer 437 euros anuais para o Estado — muito abaixo do falso valor anunciado.


O IRS negativo, do qual o PS andou a falar no final do ano passado e que não se viu plasmado no Orçamento, seria uma medida muito útil, bem mais útil que as 35 horas — acabavam-se os empréstimos sem juros ao Estado.


Mas isto digo eu, que sou uma das afortunadas desta crise. Sou da geração marmita, da geração dos sonhos adiados, de famílias reunidas ao serão pelo Skype, dos milhares de casas entregues ao banco, de penhoras selvagens aos salários por falta de pagamento de portagens de estradas concessionadas a lucrativas empresas privadas.

Mas fiz as minhas contas este ano e elas batem novamente certo: dupliquei o número de filhos durante a intervenção da troika em Portugal. Faço este caminho orçamental de 2016 com o meu marido e com os meus quatro filhos ao lado, e posso dizer, com confiança: este é o quinto orçamento de Estado inimigo das Famílias ao qual vou sobreviver.