Mãe, faz o test drive à vontade, que eu tenho o cinto de segurança apertado. FOTO: A Família Numerosa. |
A Carolina é a minha filha 'test drive'.
A brilhante analogia não é minha: eu queixava-me da água na
barba que ela, inexplicavelmente, me começara a dar de há um ano para cá, à
conversa com uma amiga que levou com um rosário de ais só por ter tido a má
sorte de me perguntar como estavam as coisas com a mais velha:
‘Ai, o que me haveria de calhar, ai que adolescência tão
longa, ai, que ninguém merece, ai, logo agora quando eu ando para aqui num
difícil equilibrismo em cima da corda bamba, a fazer acrobacias circenses com
um bebé no colo, uma recém-nascida pendurada na mama e um puto charila com
défice de concentração para acalmar e apoiar na complexa missão de aprender a
ler e a escrever...’
E a minha amiga-guru Raquel Brinca alertou-me do alto da sua
sabedoria serena: 'Cuidado, vai com calma, ela é a tua filha 'test drive''.
Junho de 2014 - A Carolina faz o 'test drive' de pegar ao colo na irmã Aurora. Saiu-se muito bem. Foto: A Família Numerosa |
Franzi o sobrolho e, passado um segundo ou dois, abanei a
cabeça para cima e para baixo em sinal afirmativo.
Depois comecei a gingar o pescoço para um lado e para o outro, em negação, cheiinha de culpa: ando aqui preocupada com os filhos-sanduíche, os entalados e nem parei para fazer essa óbvia reflexão. É com o filho mais velho que testamos tudo; é com a Carolina que pomos à prova que tipo de pais estamos e queremos ser. E, por vezes, mudamos de estratégia abruptamente, travamos a fundo, guinamos o volante, inversão de marcha, tracção às quatro rodas. E quando a viagem não nos leva ao destino que esperávamos, e pomos em causa o que achávamos serem verdades absolutas da parentalidade, lá está o filho 'test drive' no banco de trás, como um 'crash test dummy'.
Depois comecei a gingar o pescoço para um lado e para o outro, em negação, cheiinha de culpa: ando aqui preocupada com os filhos-sanduíche, os entalados e nem parei para fazer essa óbvia reflexão. É com o filho mais velho que testamos tudo; é com a Carolina que pomos à prova que tipo de pais estamos e queremos ser. E, por vezes, mudamos de estratégia abruptamente, travamos a fundo, guinamos o volante, inversão de marcha, tracção às quatro rodas. E quando a viagem não nos leva ao destino que esperávamos, e pomos em causa o que achávamos serem verdades absolutas da parentalidade, lá está o filho 'test drive' no banco de trás, como um 'crash test dummy'.
Mas às vezes atropelamos, amassamos, mandamos uma cotovelada ou um encontrão ao filho 'test drive'. Sem querer, sem maldade: são mesmo assim as regras do jogo. E o primeiro filho é o que sai com mais nódoas negras. Não há sistema de segurança que nos valha. No banco da frente ou no banco de trás: vamos testando tudo, ligando os faróis, tocando a buzina, vamo-nos habituando a conduzir os filhos.
Andamos nisto sem mapa ou bussola. Com o filho mais velho é
sempre uma primeira vez e vamos pela intuição. Navegar é preciso, mesmo que às vezes seja à deriva. à tentativa e ao erro.
Depois acontece o triste espectáculo de engatarmos a mesma mudança e cairmos no ridículo. Damos uma de saudosistas. Na verdade, nem é isso: estamos
tão à rasca, sem saber o que fazer, para que lado virar o leme, que encarnamos os nossos pais (eles são o
nosso maior exemplo, mesmo que o psicoterapeuta os culpe por todos os danos
colaterais do seu amor).
E então, e sempre por oposição, sacamos da nossa infância, douramos a pílula e
temos alucinações colectivas – que outra explicação se pode dar para justificar
como éramos uns santinhos, meninas e meninos obedientes e cheias de respeito
pelos mais velhos?
Enunciamos chorrilhos de lamúrias que jurámos nunca
pronunciar: de como era difícil a vida, que não comíamos bolachas todos os
dias, que a televisão só começava ao final da tarde e dava uns desenhos
animados marados, que comíamos fígado e mão de vaca, ah e geralmente também nos
dá para dizer que só tínhamos um par de sapatos.
Mãe, a avó disse-me que nunca comeste mão de vaca na vida! Foto: A Família Numerosa |
A minha filha ‘test drive’ é uma boa miúda, e eu tenho que ir com
calma, relaxar; a pressão nunca fez bem a ninguém a não ser à panela quando coze leguminosas, e que eu saiba, até mesmo
a panela explode de vez em quando, entornando o caldo em proporções nunca antes imaginadas.
São só onze anos de idade, a vida toda à espera, e está bem que é a primeira vez a haver
negativas nesta casa, a haver mentiras descaradas e com a perna mais curta que a minha, a haver portas
fechadas, pudores e segredinho. Mas nada disso é o suficiente para vaticinar um futuro sombrio, um cadastro eterno a perseguir a filha 'test drive': são infracções ridículas face ao que ainda está para vir, face ao que todos nós, pais, fizemos, se formos a desembaciar bem a parede de vidro da memória.
Ela tem muitos primeiros. Mas só nos lembramos dos maus com o filho 'test drive' quando a amiga nos pergunta: 'como vai a mais velha?'. Primeiras vezes que foram só dela e também nossos, que ela nos entregou sem lhe termos pedido nada. Lembras-te? Foram dela os primeiros cincos nas pautas dos exames
nacionais, a melhor aluna da escola, foram dela as primeiras lágrimas de orgulho, a pele a eriçar, quando ela começou a cantar com voz de anjo em frente a toda uma escola, sem lhe
tremer a voz ou sem fechar os olhos de medo.
A excelência às vezes chateia, às vezes revolta, queremos ser iguais, deixar de sobressair.
Eu sei bem, filha, como é, desculpa se só cobro nada mais do que a perfeição. Ao contrário do que eu te disse outro dia ao jantar não tem
mal nenhum deixar cair o extra de extraordinário e ser vulgar, normalzinho, nem
que seja só para perceber que não há nada tão bom como ser o primeiro.
E tu serás sempre a primeira (mesmo que estejas a meio de uma tabela, serás sempre a primeira). Isso ninguém, mas mesmo
ninguém te tira, minha primeira filha.
Palavras sábias... ADOREI!!!!
ResponderEliminara sua filha é linda
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