Este blog devia ter mudado a sua designação, provisoriamente,
e nas últimas quatro semanas, para A família virótica.
Neste intervalo temporal de um mesito, mais coisa menos coisa, fomos
bombardeados por todos os lados com notícias alarmantes da auxiliar de acção
médica do país vizinho e do seu mártir canídeo. Recebemos emails absurdos,
reencaminhando infografias catitas sobre a prevenção do Ébola e os noticiários
abriram com relatos do país onde uma doença altamente mortífera se juntou à check list que já incluía na sabedoria
popular maus ventos e maus casamentos.
Por cá andámos noutros contágios.
Teresa Romero já passou à história no bom sentido (se fosse um gato já
andava a fazer as contas às vidas que tinham sido descontadas do cartão de
crédito) e na África Ocidental nada de novo, back to basics: a febre hemorrágica continuará a avançar e, se
alguma coisa aprendemos deste frenesi mediático que ainda me conseguiu
esfrangalhar os nervos da minha mais velha meia neurótica e um pouco hipocondríaca,
é que a vida de um cão em Espanha vale mais indignação e clamor que a de
centenas se não milhares de africanos largados à sua sorte.
Se uma árvore cair no meio da floresta e não estiver lá ninguém por perto
para ouvir, ouvir-se-á o seu estrondo? Por outras palavras: se morrer um ser
humano de tez escura em África e não
estiver por lá uma câmara de televisão, um smartphone
e uma decente ligação à Internet para streaming nas redes
sociais quase instantâneo, irá causar-nos tanta aflição como o abate do
pobrezito do cão da espanhola?
A esta dúvida filosófica poderia até acrescentar outra: depois de toda esta
bimbice seremos nós os mesmos se nos banharmos nas águas de um mesmo rio onde
molhámos os pézitos anteontem? Ou vamos a correr ligar para o Saúde 24 com
medo do contágio?
Não sei...
Tenho dias em que me apetece abraçar o mundo, em que vejo grandeza nos mais
pequenos gestos, onde me entrego com todo o ser à crença inabalável que há
bondade em todo e qualquer estranhos com que me cruzo. Regra geral, porém, o mundo é um lugar meio horrível,
onde impera o salve-se quem puder e, por isso, é que o Correio da Manhã é líder
de vendas, audiências: ali está, sem falinhas mansas, numa tinta que esborrata
as mãos, um relato cru e sem floreados da natureza humana – a natureza do mal, grudada naquela tinta negra que se entranha na pele a cada página que se vira
no café da esquina.
Não me interpretem mal: não estou desanimada, deprimida ou prematuramente a
azular, como há-de acontecer quando este bebé nascer e as hormonas se
descompensarem todas. Estou apenas cansada. Muito cansada.
A vida é bela, a nossa pelo menos é, e fazemos por isso também. Enquanto
matriarca deste clã vou navegando pelo caos, aparando-lhe as garras afiadas, e
descobrindo, tateando de mansinho, estratégias passivo-agressivas para domar a
disfuncionalidade que há em todo e qualquer um de nós (e sim, acredito
piamente, que o universo todo - e sobretudo os quartos dos miúdos e a minha
sala de estar - caminham constantemente para o caos e às vezes os meus dois
braços e as minhas costas vergadas pelo peso de um bebé de fim de tempo não
chegam para o ordenar ainda que por muito pouco tempo).
A partir deste fim-de-semana que passou, a Legionella passou
a fazer parte do nosso léxico e das conversas de café - deixando o São Pedro e
o rebaptizado IPMA bem chateados da vida, porque costumam ter abuso de posição
dominante impunemente neste tipo de conversa da treta e da circunstância.
Já vimos este filme com o H1N1 ou o Ecoli,
sendo que no primeiro caso a indústria de líquido desinfectante esfregou bem as
mãos bem higienizadas de contentamento e agora nem por isso; talvez apenas a
dos desodorizantes e a recomendação do Director Geral de Saúde de evitar o
duche tenha alguma sorte (sempre me perguntei para que quero um desodorizante
com 48 horas de eficácia, como apregoa a publicidade, se tomo banho todos os
dias....).
Tudo isto me lembra a saudosa Enciclopédia da Família do Readers Digest, que
o meu avô Oliveira tinha alinhado no escritório, em frente à sua secretária, em
muitos volumes de capa dura forrados a tela cinza azulada e letras gravadas a
dourado em baixo relevo.
Navegávamos pelos sintomas, em complexos fluxogramas labirínticos, que nos
mandavam para trás e para a frente, como numa aventura. Sem sabermos que um dia
haveria um doutor House que nos faria as delícias com o seu mau-feitio e perna
coxa, fazíamos diagnósticos diferenciais e sentenciávamo-nos uns aos outros
doenças raríssimas e graves, como estas que agora nos chegam quase diariamente pelo
ecrã plano da sala, através de cabo ou fibra óptica, com um alarmismo de sirene
antiaérea.
Por aqui, andamos há quatro semanas com a Virose dos Putos.
Vómitos e diarreia (ainda pensei duas vezes em
escrever diarréia; é uma palavra tão feia, meu Deus!). Nada que vá parar às
notícias; bem mais comezinho e banal…
Lembro-me bem do meu pediatra - e décadas mais tarde pediatra dos meus
filhos - explicar à minha mãe o que era uma virose: 'Quando não sabemos o que
é, é uma virose..."
Antigamente não havia assim tantas viroses, parece-me. Seria do sabão azul
e branco com que lavávamos as mãos no tanque de lavar as cuecas à mão? Eu
estava mensalmente no seu gabinete com anginas, o meu irmão Leonardo tinha
dores de crescimento, mas, caramba, acho que tive apenas uma virose na vida em
criança.
Cá por casa, em quatro semanas, já vai na terceira volta, como num Grande
Prémio da Virose: passa ao outro e não ao mesmo, em ciclo infinito como o do
oito que o meu filho António não tarda nada aprenderá na escola (vamos no cinco
e hoje aprendeu o tê).
É um vai e vem e haja máquinas de lavar e secadoras de roupa para tanto edredon e
lençóis que nunca mais serão os mesmos (piorzinho só o leite com chocolate
semi-radioactivo do Lidl que, passados quase dez anos não sai dos lençóis da
mais velha, por mais água oxigenada que eu lhe ponha, encapotada em
branqueadores e aditivos caríssimos, embelezados e acondicionados em embalagens
coloridas com logótipos vibrantes, que me chamam do linear do supermercado como
um canto de sereia fada do lar).
E assim vai a família virótica.
Ontem pus uma velinha ao Santo António, pedindo-lhe, aflita, que impedisse
mais um descalabro, assim que o pressenti na tez ainda mais pálida do António à
hora do jantar. Mas o Santo é mais dos casamentos, e dos meninos, e dos
responsos quando algo se perde cá por casa. Cinco minutos depois (re)começava tudo de novo. Talvez o Santo não ache grande
piada a estas velas de LED. A tecnologia ganhou o Nobel mas se calhar para
milagres só vá lá com parafina e pavio…
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