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domingo, 30 de novembro de 2014

O Excel da Família Numerosa

Temos um encontro marcado daqui a 24 horas. E para esse não há Excel que nos valha. [Foto: Ties.pt]
A folha de cálculo da Microsoft entrou na minha vida há metade dela. Mudou o curso de muitos eventos que a partir desse momento se seguiram, entre macros, worksheets, tabelas, gráficos e funções mais avançadas. Desculpem o jeitinho dramático, profundo, solene e grave, mas vem aí uma boa história.

Pessoalmente irrita-me que um aplicativo do Bill Gates para fazer contas e cálculos me tenha eventualmente desviado daquele que eu estava certa ser o meu grandioso destino (depois, mas muito depois, muitos, muitos anos depois, veio o Powerpoint, ferramentazinha que me dá azia, mas com a qual transformo slides em euros e talvez até dominar o mundo, mas isso, meus caros, são outros quinhentos; fica para depois), mas é mesmo assim a vida: eventos extraordinários, acontecimentos tão improváveis que nenhum matemático se daria ao trabalho de resolver a complexa equação, rotundas iluminadas que abrem inúmeros caminhos e possibilidades num frenesi de carrossel e encruzilhadas onde, num instante, tudo muda. Para sempre. Quer se siga em frente. Ou se volte para trás. Corte-se à direita ou para a esquerda.

Foi numa sala de informática nas catacumbas de uma escola superior de comunicação social em Lisboa, com uma arquitectura muito catita sobre a segunda circular mas nada funcional e acusticamente viável para quem lá almejava aprender as artes de vender a banha da cobra (e eu queria fazer anúncios; era isso que eu queria: fazer bonecos, grandes copys  que ficassem no colectivo para sempre e filmes de trinta segundos que rugiriam em Cannes) que eu cliquei duas vezes com o rato sobre o ícone do Excel.

Nada seria como dantes.

Não tive computador em casa até ser adulta e vacinada. Lá em casa sempre houve muitas máquinas de escrever, Olivetti de várias cores e tamanhos, eléctricas, com memória e apagador automático, e armazenadas em gavetas da sala encontrávamos bobines de Kores e papel químico. Mas a minha mãe nunca atinou sequer com o VHS ou com o evento extraordinário que foi o controlo remoto da televisão, quanto mais com um computador. Sobrevivi a tamanha provação de uma forma despreocupada e feliz, uma suplèsse que a minha filha mais velha, de dez anos, não parece capaz de superar, só porque o seu Magalhães Socrático já não corre à velocidade que ela acha conveniente para ver filmes da Violetta no Youtube.

À parte as aulas de Introdução às Técnologias de Informação do ensino secundário, onde aprendi MS/ DOS no papel – porque a escola não tinha um único terminal –, mantive-me indiferente a este teclado sobre o qual martelo estas palavras com demasiada força (talvez a força necessária para uma Olivetti) até à minha entrada na Faculdade, sobre a segunda circular, em Benfica (um território que eu, menina de Alvalade, filha de uma mãe solteira sem carta de condução, achava que nem fazia parte de Lisboa).

Tenho poucas recordações dessa escola. Fiz o curso desmotivada e ao pé-coxinho, aparecendo muito pouco por lá – ali na segunda circular não havia nada para mim, ou para os meus sonhos de fazer arte no bloco publicitário da novela. Foi pura desilusão. Mas devo-lhe a meia dúzia de amigos para a vida que ali conheci.

O Excel foi um dos raros entusiasmos que aquelas salas me concederam: macros, balanços de stocks, listagens infinitas com tudo o que me apetecesse.  Já vos disse anteriormente: há um obsessivo-compulsivo assanhado em todos nós. Cada qual ameniza a sua ansiedade com o melhor escape que está à mão e, nessa altura, o Excel foi minha bizarra muleta, e isso foi um momento tão ou mais perturbador como aquele da minha pré-adolescência em que a simpática psicóloga escolar, depois de uma gigantesca bateria de testes psicotécnicos à extra-sensível e criativa ‘filha do pintor’, sentencia, visivelmente perturbada, que os meus melhores valores dão para profissões burocráticas, como contabilista, ou analista financeira e que os meus piores resultados iam, precisamente, para as artes.
São estranhos os caminhos do destino. Sei-o bem agora. E aceito-o com serenidade.

O meu percurso académico apresentou-me a muitos outros perturbadores softwares informáticos. O SPSS de tratamento estatístico de dados nunca me deu pele de galinha; o Photoshop e o Quark ainda me fizeram olhinhos; houve um outro de planeamento de campanhas publicitárias, com cálculos de OTS, Audiências e GRPs que ainda me fez levantar o sobrolho de interesse, mas a verdade é que eu entrei para o jornalismo, e toda a minha vida mudou, por causa do Excel.   

E isso também foi há metade da minha vida atrás. É assustador constatar que o dia em que eu pisei numa redacção já foi há 18 anos – poderia ter nascido outra vez, já teria atingido a maioridade e teria direito de voto.

A minha posição na hierarquia da redacção era igualmente bizarra. Estava no final da cadeia da alimentação mas mesmo assim deu-me direito a um epíteto: era e fui largos anos da minha vida a ‘menina das Bolsas’. Quatro páginas diárias estavam à minha responsabilidade; às quais acresciam outras quatro semanais, num suplemento que fechava a desoras nas madrugadas de sexta-feira.

Todas aquelas páginas impressas em papel de má qualidade se faziam em Excel. Eu chegava a meio da tarde a um sítio até então ausente e desconhecido da minha geografia de lisboeta, na Quinta do Lambert, e corria macros com dados do mercado em contínuo e das cotações dos fundos, que vinham em disquete de baixa densidade por estafeta da Bolsa de Valores de Lisboa. Havia um único terminal com Internet em toda a redacção e estava dentro de um aquário, como uma Mona Lisa no Louvre. E era eu quem lá mais passava tempo. A viajar através da Yahoo.

Eu chegava e introduzia o Nasdaq, o Ibex, o Dow, o Cac à unha dos ruidosos telexes azuis que saiam do terminal da Reuters e, pelas 18h00, ligava o teletexto da televisão do bar, onde se transacciona whiskey em copos discretos de papel, para ver o fecho da bolsa suíça. Calculava a capitalização bolsista nacional, registava a evolução semanal e anual do escudo face ao dólar e face à libra. Depois, de tudo tratado no Excel, mandava dezenas de ficheiros para a rede e seguia para o departamento dos gráficos, abria-se o Quark, anos mais tarde o Indesign e paginava-se tudo, ficando apenas à espera do comentário da bolsa e dos câmbios lá para o início da noite.

Hoje, a 24 horas de nascer a minha quarta filha, tenho o Excel aberto e toda a vida da minha família numerosa na última semana e nos próximos dias está discriminada em células digitais, à falta de papel quadriculado, régua e esquadro.

Como qualquer plano perfeito, tem que ter a humildade de estar aberto a alterações constantes, a qualquer hora do dia ou da noite, um baralha tudo e volta a dar, toca a encaixar de novo as peças do puzzle esquizofrénico. Não previ pois que o António, que nunca está doente, apanhasse uma amigdalite, e logo de seguida a ‘quinta doença’, ou que a Aurora também decidisse que era uma boa altura para trazer para casa uma virose de nome surreal – síndroma de pés-mão-boca.

É a minha quarta gravidez e, se bem que não tenho a presunção de tudo saber sobre os mistérios da maternidade, não estava também previsto no Excel o insólito acontecimento de ter uma subida de leite mesmo antes de ter um bebé ao colo para alimentar.

Justiça seja feita; algumas coisas correram conforme o planeado: consegui fazer a árvore de Natal, no roupeiro dos miúdos estão conjuntos de roupa completos para todos os dias da próxima semana, incluindo cuecas e meias, acumulei na despensa leite, comida de gato e papas lácteas dignas de um bunker de sobrevivência, pintei o cabelo, fui à depilação e até arranjei tempo para dormir um bocadinho – privilégio que sei que vai estar em suspenso nos próximos meses.

 A partir de amanhã, o Excel da Família Numerosa prevê a que horas é que se tem que acordar e porque ordem, o que cada um toma de pequeno-almoço, incluindo os animais, o conteúdo de cada uma das mochilas da minha prole, as datas e horas dos testes de avaliação do final do primeiro período, aparentemente todos marcados para esta semana, os imperdíveis ensaios de hip hop e do coro da mais velha, que será estrela da festa de Natal com a sua voz cristalina e jeito desengonçado, as aulas de judo e de dança e as visitas de estudo a Monsanto do rapaz do meio, que também tem que fazer uma figura de barro para o Presépio da escola, as rotinas e manhas para adormecer a pequenina Aurora…

E, para cada um dos itens, o meu Excel determina a respectiva delegação de competências, distribuindo o mal pelas aldeias durante a minha ausência na maternidade. Detalhe a detalhe, preto no branco, a quem confio toda esta complexa logística que é a minha vida. A vida que eu não trocava por nada, a vida que, se calhar, comecei a construir quando cliquei duas vezes sobre o ícone do Excel pela primeira vez, há metade da minha vida atrás.

4 comentários:

  1. Só mesmo tu Diana para nas vésperas da Isaura nascer continuares a escrever. Que corra tudo bem, e com uma hora minúscula.

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  2. Uma das mais belas histórias de amor e de vida! Obrigada por partilhares estes fragmentos

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  3. Querida Mãe de 4, leio o teu blog desde o primeiro dia. Não te conheço mas desejo-te só coisas boas. Espero que tenha corrido tudo bem. beijinhos

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  4. Tudo de bom para si e para a sua família. Gosto muito de a ler. Obrigada pela partlha

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