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terça-feira, 5 de agosto de 2014

Quando eu for grande quero ser...

Setembro de 2013 - a Aurora, com quatro meses, olha de esguelha, a medo, para as palhaçadas do António


Depois de toureiro, disparado só para me pôr os nervos em franja, o António ontem disse querer ser homem do lixo. Não sei se era para testar, ou para me ver a entrar numa lenta combustão espontânea, tipo banho-maria, ou se a fase de imundice, pela qual todos os meninos passam, se estendeu, agora, a um fascínio pela carga toda pronta e metida em contentores, boleias à pendura no camião mal-cheiroso pela noite fora, como um cão que teima em ir com a cabeça de fora da janela, com as beiças e a língua ao sabor do vento. Às vezes quer também ser médico do INEM e acho que não está nem aí para o Hipócrates e seu nobre juramento: é mesmo pela velocidade, pela adrenalina, pelo barulho frenético das sirenes e os efeitos psicadélicos das luzes de emergência.

Ontem, ao jantar, falámos de profissões, do futuro.
Tudo começou com mais uma minha tentativa para que arrumassem aquilo que desarrumam. 
Faltam ainda duas semanas para entrar de férias, mas a escola dos mais novos já fechou há quase dez dias e a da mais velha há mês e meio que não há nada para ninguém até Setembro. 
O João recusou traduções e revisões para estar em compasso de espera e babysitter da catraiada até irmos todos em procissão dar banho à minhoca. Acho que vai chegar lá exangue e esfrangalhado - ainda bem que se seguem três semanas de dolce fare niente e ausência de Internet e televisão.

O poder destruidor daquele trio de filhos em férias é assustador. Por menos tempo que o pai os deixe em casa, conhecendo o seu poder ciclónico de desarrumação, é diariamente um tormento - o universo tende para o caos e tudo começa ali no nosso apartamento.

Ontem cheguei a casa ao final da tarde e não havia nada sobre nada: almofadas do sofá espalhadas pelo chão, num puzzle esquizofrénico, dezenas de embalagens dos malditos Danoninhos coleccionáveis e temáticos, como pinos de bowling tombados a todo o comprimento da casa. A Aurora tinha pratinhos e talheres de plástico de brincar como num piquenique fandango, a Carolina e a maldita moda dos elásticos tipo erva daninha por todo o lado, com os gatinhos animados a comerem-nos e arriscarem uma visita dias mais tarde à urgência veterinária.

Eu, sem saber o que fazer à vida ou para o jantar, tentei ter uma conversa séria com os mais velhos:
"Filhos, não tarda seremos seis. Mais três gatos e um cão. Filhos, já pensaram na Lola - a nossa fada-do-lar uzbeque -, todos os dias a arrumar as mesmas coisas, para além de pôr a roupa a lavar, a passar a ferro, a fazer as camas... Vocês têm que ajudar a mãe e a Lola. Opá, a mãe até vos paga, como paga à Lola, mas têm que começar a ajudar; não dá mais!".

Rapidamente a Carolina quis indagar das condições salariais e contratuais da Lola. 
E, mercenária-empreendedora como é (está sempre a sacar dinheiro ao irmão, vendendo-lhe bugigangas variadas; o embaixador morcão que o Relvas arranjou há uns tempos para dar o exemplo à juventude preguiçosa ficaria orgulhoso da minha mais velha), prontificou-se logo a arrumar tudo. 
Cinco minutos depois estava tudo um brinco, e a minha alma estava parva. Afinal, não estou a criar uns incapazes; apenas um par de miúdos mimados a quem nunca foi pedido nada. 
Obviamente que os subornei à la Pavlov com reforço positivo: trazia na mala há alguns dias um jogo em enésima mão para a Playstation, para um dia perfeito de um futuro também ele mais que perfeito em que toda a gente se portasse exemplarmente.

Depois voltámos às profissões. 
A Carolina espantou-se pelo quanto a Lola e a sua mãe, Nargeeza, trabalham todos os dias, em três casas diferentes, para poderem dar uma vida melhor àqueles que ficaram naquele país da ex-União Soviética, onde muçulmanos se cruzaram com mongóis dando origem a gente feições impressionantes, olhos claros e em bico, estaturas enormes, sorrisos amarelos com muitos dentes de ouro implantados na boca e, acima de tudo, uma ética de trabalho absolutamente irrepreensível.
E aquilo comoveu-me, tal como me comovem os recados que a minha filha mais velha deixa escritos à Lola, em cirílico, usando a ajuda do Google Translate - não faço ideia o que lhe escreve; é entre elas...


A Carolina revela então que quer ser caixa de supermercado só por uns dias, para experimentar aquela coisa boa, relaxante, de passar códigos de barra sem pensar em mais nada (até a compreendo; tenho o mesmo fascínio sempre que vou a uma fábrica, ou quando estou no talho ou na peixaria e me perco com a faca afiada a fazer filetes ou a destripar um cantaril). 

Diz-me também que, na Kidzania, caixa de supermercado é uma das profissões mais concorridas do recinto onde as crianças brincam aos crescidos e as marcas fazem lavagens de cérebro em estratégias de marketing brutalmente bem feitas. O Belmiro pode, portanto, ficar descansado: não há bebés e crianças que cheguem para renovar geraçãoes neste país, mas as que foram paridas têm desde já um fascínio pela registadora do supermercado, pelo cheiro das notas e do vil metal que apenas lhes passará pelas mãos por escassas fracçõess de segundos em horas e horas intermináveis de horários selvagens por turnos. 
Pelo sim pelo não temos que passar a ir às caixas self service para ver se isto lhe passa...

Sei bem que ela quer ser cantora. 
Outrora eu também quis ter o mesmo destino, mas foram-me cortadas as asas: "Podes sempre cantar no duche e nos tempos livres, mas tiras um curso". 
Costumo dizer que o meu pai, pintor boémio, irresponsável, arruinou todas as possibilidades de um seu filho ter uma carreira artística. O seu mau exemplo caiu-nos sempre em jeito de ameaça: "E queres ser como o teu pai?"

 (E a verdade é que, por mais atribulada e imperfeita que fosse a nossa relação, feita de arrufos e distâncias, eu sempre quis, eu apenas quis a sua aprovação e validação a vida inteira)

A minha querida cunhada mais nova, a Joana, diz, fascinada com os meus distintos e variados talentos: 'Podias ter sido qualquer coisa; é impressionante!'. E eu, no gozo, remato sempre: 'E, no entanto, perdi-me, e não fui nada!". 

Percebo bem o que ela quer dizer, que é elogio e não um lamento, como fazia o meu avô ao meu pai, pelas grandes expectativas goradas, pelo destino grandioso que não se cumpriu. Com tanto jeito, para tanta coisa, eu poderia ter tido a carreira que quisesse (menos para a Matemática, tudo menos matemática!). Mas não fui o que queria ser, aquilo que sempre me fez mais feliz, que me era tão fácil de executar que não poderia nunca ser um trabalho - até parecia mal!

Hoje em dia um curso superior nada vale: o centro de emprego está cheio de gente jovem a ver a vida por um canudo, muito lá ao fundo, num emprego que não é mais do que uma miragem numa travessia pelo deserto. Os call centers e as caixas de supermercado também estão cheios de malta licenciada.
Portanto, se a Carolina quiser ser cantora pode ser cantora à vontade, com o pleno e total apoio da família. 
Se quiser caixa de supermercado, ainda que por uns dias, também não há mal nenhum; não nos caem os parentes à lama.

Ò António, e que tal canalizador, filho? O que achas? Ou electricista?

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