Espalhem a notícia: há luz na casa do "Manga-Manga"!
Foi mais ou menos assim que o boato correu
montes, espichou pelos fontanários, cirandou pelas águas frescas do Sul, do
Vouga e do Paiva.
Vagueou bem cedo de madrugada pelos cafés, chegou a meio da manhã às tabernas, acompanhada
por um bagaço e à boleia de uma nuvem de fumo negro do escape de uma Famel. Surgiu sem convite nas conversas banais,
habitualmente acerca da meteorologia. Surpreendeu mais uns quantos à saída de
um dia igual a tantos outros, de costas vergadas no lameiro, olhos postos no
chão e na terra revolvida pela sachola tatuada nas palmas da mão.
Nas quintas, entre galinhas, vacas e pastos secos, cheios de cardos, cacarejou-se muito e ruminou-se mais um quanto sobre a segunda vida da casa do
Senhor Oliveira do Entroncamento de São Félix. Muito preguiçosamente e ao
sétimo dia, surgiu murmurada, depois de cumpridas muito religiosamente e com o
sotaque colombiano do novo pároco, as Ave Marias e Padres-nossos redentores da
missa do Domingo: há novamente luz na casa do “Manga Manga!”.
Ámen!
Compreende-se o entusiasmo com esta coisa da luz: a casa do “Manga-Manga”, no Entroncamento de São Félix, encruzilhada à beira da Estrada Nacional, onde os antigos ainda contam lendas sobre lobisomens
e outras superstições, foi a primeira da aldeia a ter electricidade.
Em 1948, chegou àquele cruzamento um gigantesco caixote de
madeira. Lá dentro estava um complexo gerador de electricidade, para o qual foi
construído de propósito um anexo. Depois, fez-se luz. E mais caixotes de madeira chegaram: um frigorífico a petróleo, e um esquentador que prometia aquecer as águas e quem sabe os ânimos no gélido inverno de Lafões. E talvez seja por esta façanha pioneira que a casa do "Manga-Manga" consta do megalómano painel de azulejos que a pequena e rural freguesia de São Pedro do Sul tem à sua entrada.
O mundo exangue, a sair da escuridão da Segunda Guerra Mundial e,
quase ao mesmo tempo, o “Manga-Manga” regressava à pequenina terra que o viu
nascer, no virar do século XIX para o XX, debaixo de muitos maus presságios,
inúmeros agoiros e histórias tristes de miséria.
Ironicamente, o “Manga-Manga” conhecia bem de perto a natureza do
mal que a Europa atravessava, devastada, numa segunda idade das trevas vivida
em pleno século XX.
O “Manga-Manga” regressava agora à aldeia colada às Caldas de Lafões onde apareceu boiando uma imagem de São Pedro pelas águas do Sul, rebaptizando a terra, trazendo consigo o advento da electricidade, depois de muitas décadas de ausência. Ele chegava, triunfante e como uma atracção de circo, entre o espanto e o temor, depois de uma vida reescrita, década após década, com uma caligrafia muito bonita à beira da margem esquerda do rio Congo, e do maior e único Porto navegável de águas profundas da África Central.
O “Manga-Manga” regressava agora à aldeia colada às Caldas de Lafões onde apareceu boiando uma imagem de São Pedro pelas águas do Sul, rebaptizando a terra, trazendo consigo o advento da electricidade, depois de muitas décadas de ausência. Ele chegava, triunfante e como uma atracção de circo, entre o espanto e o temor, depois de uma vida reescrita, década após década, com uma caligrafia muito bonita à beira da margem esquerda do rio Congo, e do maior e único Porto navegável de águas profundas da África Central.
Filho de um vil predador sexual que nunca ninguém ousou enfrentar,
e de uma mulher muito simples e humilde que simplesmente desistiu de viver
depois de lhe ter sido arrancada a pureza de forma animal num moinho, o “Manga-Manga”
recusou ser vítima das circunstâncias e de uma qualquer maldição pela forma grotesca
como foi gerado.
O meu avô tinha sonhos tão grandes como o rio Congo.
Se calhar eram até tão megalómanos como os do tirano rei Leopoldo da Bélgica que, de forma bárbara, se tornou dono e senhor de uma região com mais de dois milhões de quilómetros quadrados no coração da África, cometendo, impune, um dos maiores crimes contra a Humanidade da História: o genocídio de cinco milhões de congoleses, a escravidão e subjugação de um povo, o saque dos seus recursos, borracha e marfim, que tantos palácios luxuosos erigiram em Bruxelas, a ouro manchado de muito sangue.
Se calhar eram até tão megalómanos como os do tirano rei Leopoldo da Bélgica que, de forma bárbara, se tornou dono e senhor de uma região com mais de dois milhões de quilómetros quadrados no coração da África, cometendo, impune, um dos maiores crimes contra a Humanidade da História: o genocídio de cinco milhões de congoleses, a escravidão e subjugação de um povo, o saque dos seus recursos, borracha e marfim, que tantos palácios luxuosos erigiram em Bruxelas, a ouro manchado de muito sangue.
Ao contrário do soberano da Bélgica, sanguinário sem precedentes a
quem a História não fez e provavelmente nem fará o julgamento devido, amaldiçoando-o para todo o sempre, homem vil que nem sequer se
dignou na sua vida de pura maldadea pôr um pé no "seu" Congo, o “Manga-Manga”
tinha um coração tão grande como os seus sonhos, tão doce como uma manga madura.
“N’Tima Manga” lhe chamavam os nativos – o coração da Manga, em kikongo, o dialecto do país.
Não sei, não tive tempo de lhe perguntar que fascínio era aquele que
tinha com as mangas, se era alguma referência à muito pequena cidade de
Manga-Manga, na Província de Katanga, perdida lá no coração febril de África, de onde nem
o Google a consegue resgatar.
No império que construiu - e que depois perdeu na independência do
Congo Belga, na década de 60, tendo chegado há uns meses uma ridícula indemnização da República Democrática do Congo pela 'zairinização' do trabalho de uma vida inteira -, o meu avô plantava sempre um par de mangueiras.
Nos anuários de negócios dos portugueses em África deixou-me para memória
futura os seus anúncios: “Manga-Manga – Commerce Générale”. Nas
arcas de madeiras exóticas africanas da casa da minha mãe estarão também estão
guardadas as coloridas capulanas com o seu logótipo e aquelas duas árvores do
seu fruto favorito.
“A Casa do Manga-Manga, no Entroncamento de São Félix voltou a ter
luz!”
A notícia correu aos sete ventos e animou as gentes numa excitação
apenas comparável ao nascimento de uma criança nas aldeias desertas. Até no
Fujaco se falou disso, aldeia preservada de xisto, perdida no tempo, num outro
tempo, meia dúzia de habitantes eremitados em casas frescas de pedra.
Não se falou de outra coisa durante uns tempos: a neta e os
bisnetos do “Manga-Manga” voltaram à terra, ligaram as luzes, e com a ligação à
rede vieram as recordações do gerador e da sua luz incandescente, da grafonola
portátil, do frigorífico a petróleo, dos jardins de dálias e rosas, do
mau-feitio da minha avó, do coração inesgotável do meu avô, do nascimento do
meu tio Zé, e de como a cozinheira o ressuscitou, emergindo-o em água fria e
água quente até àquele bebé de cinco quilos soltar à força o seu primeiro grito
de vida.
Seguiram-se muitas visitas de cortesia de perfeitos desconhecidos,
trazendo consigo cestos de fruta e outras coisas tão boas que a aquela terra dá
a quem se lhe verga. Chegaram invariavelmente de faces rosadas, abelhudos, sem
um pingo de vergonha: quiseram espreitar, saber se mantínhamos o frigorífico
(pois claro que sim) e se o gerador ainda funcionava (temos ali o manual de
instruções, havemos de experimentar um dia). Espantaram-se, decerto, com a
simplicidade da nossa estada e do facto de não termos televisão e maples catitas.Apontámos sempre para o
azulejo da fachada: “A casa quer-se pequenina
para ser igual a um ninho. O amor na casa pequena anda sempre aconchegandinho.”
Sei, sem ingenuidades ou fervores românticos, que a vida da aldeia
é feita de intriga baixa, de invejas comezinhas. E compreendo-o, digo-o sem
qualquer rancor ou sobranceria: a vida da aldeia é de uma dureza sem
precedentes e isso deixa cicatrizes no coração, não sou ninguém para o julgar.
Creio que demos muito material para aquecer o Inverno rigoroso,
melhor do que o enredo da novela que há-de estrear para a semana.
Mas, acima de tudo, vi aquela gente, família e parentes que acabei de conhecer, genuinamente feliz de poder abrir uma vez mais o baú das suas memórias, reviver desventuras e tempos difíceis. Ouvi, grata, todos elogios rasgados ao homem que foi o meu avô, um herói da terra, o nosso herói.
Mas, acima de tudo, vi aquela gente, família e parentes que acabei de conhecer, genuinamente feliz de poder abrir uma vez mais o baú das suas memórias, reviver desventuras e tempos difíceis. Ouvi, grata, todos elogios rasgados ao homem que foi o meu avô, um herói da terra, o nosso herói.
Sei também que foi sentida a gratidão que exprimiram por aquela
segunda vida dada à casa do “Manga-Manga”, suspensa no tempo, num luto
prolongado, desde que ele foi a enterrar um pouco mais acima, no cemitério da
terra. Com o nosso regresso, o meu avô Oliveira, o “Manga-Manga”, voltou
a viver, apesar de estar sepultado há mais de duas décadas e meia. Esta é a história de um grande homem, um homem que foi importante na sua aldeia, um exemplo de superação, força de vontade, e uma inteligência apenas comparável à sua bondade.
Sim, realmente, fez-se luz, deu-se à luz qualquer coisa estas férias: o burburinho e o frenesi não foram desproporcionados.
Sim, realmente, fez-se luz, deu-se à luz qualquer coisa estas férias: o burburinho e o frenesi não foram desproporcionados.
[Sim, depois, todos, sem excepção, também quiseram sentenciar à
morte os dois cedros monumentais que o “Manga-Manga” plantou à porta de casa.
Faziam filinha e alinhavam argumentos para o abate das árvores que a mim me
lembram as mangueiras que nunca vi se não em fotografias a preto e branco.]
Que maravilha de história...!
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