Quem faz um blog fá-lo por gosto

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

António, o Santinho do Pau Oco


"Posso não ser um Santo, mas pareço um anjo a dormir"
António, as aulas de Educação Moral Religiosa Católica (e um longo caminho para a Santidade)

--- Sabes, mamã, o São Martinho chamava-se Martinho, mas fez uma boa acção e passou a chamar-se São Martinho.

(breve silêncio)

--- Eu vou fazer uma boa acção e vão todos passar a chamar-me Santo António Ralha!

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

António, o animal político amoroso

Se não me deixas jogar Playstation não te faço nunca mais olhinhos de Bambi, ameaça ele, em tom de birra
António, à hora do jantar, talvez inspirado pelos ténis de Super Homem que traz nos pés, talvez imbuído da sua exclusiva masculinidade do bando de raparigas que produzimos numa edição de autor nesta casa:

(façam sotaque de Shrek das Beiras)´´

-- Vou proteger sempre a mamã!
-- Vou proteger sempre a Isaura, a Aurora e a Carolina!
-- Vou proteger sempre o papá!
-- Vou proteger todo o mundo!!!
-- Quer dizer... O Passos Coelho não! Esse não...

(o ex-boyzito não convence o boy cá de casa)

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A família virótica - um pouco cansada em Dia de São Martinho

Dezoito meses de gente que finalmente aprendeu a sorrir e vai começando a balbuciar trapalhona as primeiras palavras. Lá atrás, no quadrinho bordado a ponto de cruz o aviso à navegação para os próximos tempos: Now panic and freak out!


Este blog devia ter mudado a sua designação, provisoriamente, e nas últimas quatro semanas, para A família virótica.

Neste intervalo temporal de um mesito, mais coisa menos coisa, fomos bombardeados por todos os lados com notícias alarmantes da auxiliar de acção médica do país vizinho e do seu mártir canídeo. Recebemos emails absurdos, reencaminhando infografias catitas sobre a prevenção do Ébola e os noticiários abriram com relatos do país onde uma doença altamente mortífera se juntou à check list que já incluía na sabedoria popular maus ventos e maus casamentos.

Por cá andámos noutros contágios.

Teresa Romero já passou à história no bom sentido (se fosse um gato já andava a fazer as contas às vidas que tinham sido descontadas do cartão de crédito) e na África Ocidental nada de novo, back to basics: a febre hemorrágica continuará a avançar e, se alguma coisa aprendemos deste frenesi mediático que ainda me conseguiu esfrangalhar os nervos da minha mais velha meia neurótica e um pouco hipocondríaca, é que a vida de um cão em Espanha vale mais indignação e clamor que a de centenas se não milhares de africanos largados à sua sorte.

Se uma árvore cair no meio da floresta e não estiver lá ninguém por perto para ouvir, ouvir-se-á o seu estrondo? Por outras palavras: se morrer um ser humano de tez escura  em África e não estiver por lá uma câmara de televisão, um smartphone e uma decente ligação à Internet para streaming nas redes sociais quase instantâneo, irá causar-nos tanta aflição como o abate do pobrezito do cão da espanhola?

A esta dúvida filosófica poderia até acrescentar outra: depois de toda esta bimbice seremos nós os mesmos se nos banharmos nas águas de um mesmo rio onde molhámos os pézitos anteontem? Ou vamos a correr ligar para o Saúde 24 com medo do contágio?

Não sei... 

Tenho dias em que me apetece abraçar o mundo, em que vejo grandeza nos mais pequenos gestos, onde me entrego com todo o ser à crença inabalável que há bondade em todo e qualquer estranhos com que me cruzo. Regra geral, porém, o mundo é um lugar meio horrível, onde impera o salve-se quem puder e, por isso, é que o Correio da Manhã é líder de vendas, audiências: ali está, sem falinhas mansas, numa tinta que esborrata as mãos, um relato cru e sem floreados da natureza humana – a natureza do mal, grudada naquela tinta negra que se entranha na pele a cada página que se vira no café da esquina.

Não me interpretem mal: não estou desanimada, deprimida ou prematuramente a azular, como há-de acontecer quando este bebé nascer e as hormonas se descompensarem todas. Estou apenas cansada. Muito cansada.

A vida é bela, a nossa pelo menos é, e fazemos por isso também. Enquanto matriarca deste clã vou navegando pelo caos, aparando-lhe as garras afiadas, e descobrindo, tateando de mansinho, estratégias passivo-agressivas para domar a disfuncionalidade que há em todo e qualquer um de nós (e sim, acredito piamente, que o universo todo - e sobretudo os quartos dos miúdos e a minha sala de estar - caminham constantemente para o caos e às vezes os meus dois braços e as minhas costas vergadas pelo peso de um bebé de fim de tempo não chegam para o ordenar ainda que por muito pouco tempo).

A partir deste fim-de-semana que passou, a Legionella passou a fazer parte do nosso léxico e das conversas de café - deixando o São Pedro e o rebaptizado IPMA bem chateados da vida, porque costumam ter abuso de posição dominante impunemente neste tipo de conversa da treta e da circunstância. 

Já vimos este filme com o H1N1 ou o Ecoli, sendo que no primeiro caso a indústria de líquido desinfectante esfregou bem as mãos bem higienizadas de contentamento e agora nem por isso; talvez apenas a dos desodorizantes e a recomendação do Director Geral de Saúde de evitar o duche tenha alguma sorte (sempre me perguntei para que quero um desodorizante com 48 horas de eficácia, como apregoa a publicidade, se tomo banho todos os dias....). 

Tudo isto me lembra a saudosa Enciclopédia da Família do Readers Digest, que o meu avô Oliveira tinha alinhado no escritório, em frente à sua secretária, em muitos volumes de capa dura forrados a tela cinza azulada e letras gravadas a dourado em baixo relevo.

Navegávamos pelos sintomas, em complexos fluxogramas labirínticos, que nos mandavam para trás e para a frente, como numa aventura. Sem sabermos que um dia haveria um doutor House que nos faria as delícias com o seu mau-feitio e perna coxa, fazíamos diagnósticos diferenciais e sentenciávamo-nos uns aos outros doenças raríssimas e graves, como estas que agora nos chegam quase diariamente pelo ecrã plano da sala, através de cabo ou fibra óptica, com um alarmismo de sirene antiaérea.

Por aqui, andamos há quatro semanas com a Virose dos Putos
Vómitos e diarreia (ainda pensei duas vezes em escrever diarréia; é uma palavra tão feia, meu Deus!). Nada que vá parar às notícias; bem mais comezinho e banal…

Lembro-me bem do meu pediatra - e décadas mais tarde pediatra dos meus filhos - explicar à minha mãe o que era uma virose: 'Quando não sabemos o que é, é uma virose..."

Antigamente não havia assim tantas viroses, parece-me. Seria do sabão azul e branco com que lavávamos as mãos no tanque de lavar as cuecas à mão? Eu estava mensalmente no seu gabinete com anginas, o meu irmão Leonardo tinha dores de crescimento, mas, caramba, acho que tive apenas uma virose na vida em criança.

Cá por casa, em quatro semanas, já vai na terceira volta, como num Grande Prémio da Virose: passa ao outro e não ao mesmo, em ciclo infinito como o do oito que o meu filho António não tarda nada aprenderá na escola (vamos no cinco e hoje aprendeu o tê). 

É um vai e vem e haja máquinas de lavar e secadoras de roupa para tanto edredon e lençóis que nunca mais serão os mesmos (piorzinho só o leite com chocolate semi-radioactivo do Lidl que, passados quase dez anos não sai dos lençóis da mais velha, por mais água oxigenada que eu lhe ponha, encapotada em branqueadores e aditivos caríssimos, embelezados e acondicionados em embalagens coloridas com logótipos vibrantes, que me chamam do linear do supermercado como um canto de sereia fada do lar).

E assim vai a família virótica.

Ontem pus uma velinha ao Santo António, pedindo-lhe, aflita, que impedisse mais um descalabro, assim que o pressenti na tez ainda mais pálida do António à hora do jantar. Mas o Santo é mais dos casamentos, e dos meninos, e dos responsos quando algo se perde cá por casa. Cinco minutos depois (re)começava tudo de novo. Talvez o Santo não ache grande piada a estas velas de LED. A tecnologia ganhou o Nobel mas se calhar para milagres só vá lá com parafina e pavio…

Hoje vou pedir ao São Martinho (mas cadê o Verão? A agenda do telemóvel enganou-o este ano...)

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O primeiro soutien... a gente nunca esquece!

Quando conheci o João em carne e osso (e ele era mais osso que carne; que rapaz tão magrinho) e, passadas escassas horas desse evento mágico, passámos a viver juntos e numa comunhão mais ou menos inspirada na dos gémeos siameses ou na das almas gémeas em perfeita simbiose, confessei-lhe logo à partida, num acto de contricção e mostrando todas as cartas que tinha na mão - trunfos e biscas também -, que nunca nesta vida tinha comprado batatas, feito uma sopa e que o meu maior terror de (até à altura) mãe solteira era o dia distante em que me visse confrontada com a necessidade de comprar o primeiro soutien à minha (única, na altura) filha, Carolina.

Entretanto já comprei batatas (ainda não comprei ou demolhei um bacalhau seco: sou inquestionavel e orgulhosamente da geração bacalhau demolhado e ultra-congelado). Também já fiz algumas sopas, mas só desde que a panela mágica alemã dos incompreensíveis mil euros entrou na minha vida (e mesmo assim nem sempre corre bem). Há um par de semanas fui comprar o primeiro soutien da minha filha mais velha, ritual que terei que bisar daqui a uma década de anos para as quase irmãs gémeas Aurora e Isaura.

E, se por um lado, a distância de uma boa dezena de anos me apazigua e serena a inquietação de ter que reviver o evento traumático, comparando-o à rotina de levar uma vacina do tétano, estremeço ao pensar que ainda ontem estava grávida da Carolina quando levei no braço a picada da dita imunização e agora já lhe comprei um soutien.
Assim, num piscar de olhos. Num estalar de dedos uma viagem no tempo em fast forward.
E doeu mais que a picada da agulha. Garanto.

Conta-me o meu amado amigo brasuca Carlos Augusto Stucky, numa conversa de matar saudades pela madrugada de Haloween fora, apartada por um oceano enorme infantilmente encurtado por uma ligação à Internet, que 'O meu primeiro soutien... A gente nunca esquece' é o nome de uma das mais míticas campanhas publicitárias algum dia concebidas no país-irmão, concebida pelo guru Washington Olivetto.

Eu não fazia ideia, nunca ouvira falar da campanha e fui pesquisar. Conheci o Washinghton Olivetto e entrevistei-o para o Público quando abriu uma delegação da sua agência em Portugal, naquela que parece uma vida atrás - e eu agora aqui a lembrar-me que de um CD fabuloso que o publicitário me ofereceu nessa dita entrevista, uma colectânea de musiquinhas suaves que, a certa altura, foram banda sonora de uma fugaz fase de libertinagem que atravessei, curiosamente muito pouco tempo depois de conhecer o Stucky, num paraíso na terra, uma esplanada com uma gigantesca e fluorescente buganvília em flor sobre Olinda, em Pernambuco.

Youtube comigo. Em um minuto e meio de filme, o afamado publicitário consegue captar os sentimentos antagónicos que levanta o evento marcante da compra e da primeira saída para a rua com o primeiro soutien de uma menina/ mulher / ninfeta.

Que não me caia agora a blogosfera em cima por julgar esse episódio como um dos mais marcantes da vida de uma menina-mulher.

O meu primeiro soutien foi comprado tardiamente, aos 13 anos, na Guerra Junqueiro, na extinta Marks & Spencer, sob o protesto e incómodo visíveis da minha feminista mãe que, por ela, incenerava para todo o sempre qualquer exemplar desse espartilho da condição da mulher.

Sei de cor como ele era: branco, de bordado inglês, sem armação, 30 AA. A minha mãe não entrou no provador; partilhei um sorriso de orgulho e contentamento do reflexo do espelho com a funcionária da loja, minha cúmplice substituta pela ausência da minha mãe.

A recordação é-me tão vívida que sei até o que levava vestido: uma saia de pregas verde seco; uma camisa branca com uma gola de rendinhas ridículas, mas que cumpria perfeitamente aquilo que eu mais queria ver desde há largos meses a essa parte - um soutien à transparência.


O primeiro soutien... a gente nunca esquece foi escolhido como um dos 100 melhores anúncios publicitários de todos os tempos. A menina da publicidade será agora quarentona e, se por algum acaso improvável não se tiver cruzado com o bisturi do cirurgião plástico e da sua seringa de silicone, estará agora a viver os primeiros efeitos da grav(idade) sobre o peito.




A minha menina cresceu. Usa soutien. Eu fui caladinha e muito grávida ao seu lado, sem debitar quaisquer sentenças, mas estive lá no momento mais temido que a minha mãe se recusou a presenciar há duas décadas atrás.

A Carolina escolheu os modelos que bem entendeu e empilhou depois uma série de camisolas novas, que eu nunca até àquele instante teria acedido comprar, por achar que não eram apropriadas à idade, para os esconder. O incómodo do primeiro soutien não era só meu, sei-o bem.

Verde - código - verde de uma assentada e respirando fundo, para nem pensar muito na nova era que acabara de se iniciar. Dores de crescimento e pontapés no ventre a lembrarem-me o quão desaconselhável seria hiperventilar naquele momento.

Depois, a condescendência da minha primogénita:"Mamã, podes continuar a vestir com folhos e rendinhas as bebés. Vê lá, até as podes vestir de igual; sempre foi o teu sonho", disse-me a Carolina em jeito de prémio de consolação, de copo meio cheio, talvez num acto de preocupação por me ver tão pálida e livida.
Pediu-me logo de seguida para entrar em mais uma loja de roupa de adulto para comprar mais camisolas de menina-mulher, mas acto contínuo esquizofrénico, choramingou por um boneca na montra de uma loja de brinquedos.

(E este será talvez o último aniversário e Natal que lhe compro bonecas. Ai!)

terça-feira, 4 de novembro de 2014

À espera de Isaura

Photomaton dentro do útero. Maravilhoso mundo novo powered by Ecox4d

A conversa paralisou-me momentaneamente.

Gaguejei e tive que pigarrear para aclarar a voz e recuperar o tino às cordas vocais, que bambolearam de fraqueza como quem vai ter um chilique. Sou capaz de jurar que fiquei com epiderme de galináceo, causada por um tremor de frio inexplicável num dia de Outono com 30 graus. E soubesse eu onde pára o meu comprimido estômago, espartilhado por um útero T4, teria sentido traças a trincarem-me as entranhas com satisfação.

Pela primeira vez nesta gravidez levei um bofetão da realidade e de um quadro menos cor-de-rosa.

Sabia, desde o meu ar de pânico a olhar para uma tirinha de plástico branco, com duas riscas cor-de-rosa verticais que me indicavam a presença da hormona beta HCG no meu primeiro xixi da manhã, que esta era uma gravidez de risco: o mito da cesariana número quatro, a imprudência de engravidar nem dez meses depois do bebé número três ter sido arrancado da barriga através de um bisturi num hospital finório de Lisboa, fizeram-me entrar num túnel de terror de onde só, muitas semanas mais tarde, consegui sair à base de estatísticas e estudos sobre os reais riscos associados a múltiplos partos por cesariana.

Mas, até agora, à parte esse primeiro capítulo traumático e os enjoos épicos até ao quarto mês de gestação, que tenho para mim que foram uma espécie de castigo por não ter abraçado esta gravidez logo desde o primeiro momento, optando por uma espécie de uma atitude de negação passiva-agressiva de assobiar para o lado a ver se passa, senti que ganhara super-poderes com esta menina e com os nossos dois corações a baterem em uníssono numa cumplicidade nunca antes sentida.

Certo é que tenho a pele da cara idêntica à de uma adolescente com as hormonas em total desvario, mas esse é o único senão de uma gravidez sem azia, sem inchaços, sem hipertensão, sem diabetes, sem dor ciática, e com um ganho de peso, às 34 semanas de gestação, de apenas 3,5 quilos.

Esta é a gravidez mais próxima do tão falado 'estado de graça'. E eu posso até dizer à bruta que odeio estar grávida - lamento a honestidade gritante mas é verdade -, que odeio o carrossel da flutuação de humores, do sono e do cansaço perfeitamente merecidos de quem está a gerar uma vida, do centro de gravidade totalmente alterado a cada dia que passa, das constantes provações e privações durante nove meses, mas a verdade é que sinto já uma melancolia tremenda de saber que esta viagem acaba daqui a pouco e que nunca mais se repetirá na minha vida.

Por isso, quando o médico muito moreno e de sorriso muito doce, que arrancou os meus filhos dentro de mim, me disse que as coisas estavam a evoluir menos bem, que a minha placenta estava no sítio errado e onde não poderia continuar a estar, sem o sobressalto constante e eminente de um trabalho de parto prematuro, eu fiquei estarrecida.

Sinto que esta é uma filha invencível, protegida por várias fadas-madrinhas, que a guiarão sempre para o resto da sua vida. É uma menina que quis vir com toda a força do mundo, revirando o nosso ao contrário, numa supresa e espantos que apenas quem já presenciou algo muito forte e luminoso como um milagre pode entender.

Apesar de já ter aceite a possibilidade de a poder vir a conhecer um pouco mais cedo do que estava inicialmente previsto - previsto por quem? mas alguma coisa foi prevista nesta gravidez? - acredito então que tudo correrá pelo melhor. Que poderei até fazer as piadolas de ter tantos filhos (três!) a nascerem no último mês do ano, o do Natal.

Estou, portanto, quietinha.
À espera de Isaura.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

As manhãs

Quando eu crescer vou fazer campanhas para o Calvin Klein. Não são só as miúdas que rebentam a escala nesta casa.
Foto: Pai João
As rotinas já estão domesticadas, mas ainda não estão devidamente amestradas como se assistíssemos despreocupadamente a uma coreografia de natação sincronizada, sem pensar no esforço e trabalho que aquele bailado todo deve ter dado a preparar.

Apesar de já termos mandado às calendas uma folha do calendário desde que o ano lectivo nos escanacarou a porta, deixando tudo em pantanas, a máquina ainda não está devidamente afinada. Mas para lá caminha.

O dia começa cedo. Começaria sempre cedo, de qualquer forma, mas a minha bexiga de grávida está sincronizada com o passarinho que começa a cantar às quatro da madrugada. O Outono chegou de mansinho e sem com ele trazer o cair das folhas ou, pelo menos, a paleta de ocres e amarelos com que pinta o quadro da realidade. O passarinho talvez esteja feliz por isso; talvez seja essa a sua inspiração matinal, ainda o raiar do dia vem tão longe. Sinto, porém, a mais melancólica de todas as estações do ano a instalar-se através da alteração de comportamento dos meus gatos: a forma como se alapam à molhada indistinta de pelos e bigodes, aos pés da cama, grita toda ela Outono.

O passarinho canta, eu levanto-me, são quatro ou cinco passos até à casa-de-banho, e o Verão já cá não mora: não tropeço em gatos solidários com a bexiga alheia - deixam-se estar quentinhos como botijas ronronantes e dali não saem, dali ninguém os tira.

Duas horas e picos depois toca o telefone; escolhi uma melodiazita que me lembra percussões africanas. Era o mais sereno que se podia encontrar do cardápio de alternativas que me apresentava o Window Phone para despertar (no Blackberry tinha um gongo chinês para acordar mais zen).

Hei-de deixá-lo tocar a lenga-lenga mais duas vezes, mas apenas duas: à terceira é hora de fazer uma impressionante rotação de uma barriga que desafia todas as leis da gravidade e acender a luz da cabeceira. O pássaro das quatro da matina já não se ouve; deve ter enchido a barriga de minhocas e agora anda por outros voos.

O trio felino desta vez acompanha-me sincronizado até à casa-de-banho. Mas não o faz abnegadamente. Amor desinteressado é coisa de cão e esse dorme debaixo da cama até a meio da manhã - noutra vida foi jornalista.

A Farrusca e a Manga miam desalmadamente atrás de mim; o Pi põe-se em duas patas e dá-me turras nos joelhos. O anúncio blábláblá Whiskas saquetas impõe-se. Os gatos são os primeiros a reclamar a minha atenção matinal. E o meu cérebro começa a aquecer no momento em que divido duas saquetas por três gamelas, transformando-me numa calculadora e balança humanas.

Gamelas no chão.
Próximo!

Toda manhã é cronometrada com precisão de relógio suíço.
Levanto-me. Dou comida aos gatos. Acordo a Carolina.
Antes de entrar nesta idade da arca da velha (o armário é a peça de mobiliário que se segue) bastava abrir a luz e dizer 'bom dia filha' para que instantaneamente se levantasse, hirta como uma tábua, e com os fusíveis em piloto automático. Agora tudo mudou e, se calhar, também já é à terceira que a consigo despertar; não sei: hei-de estar mais atenta para ver se também é sensível à força fatalista deste número.

Volto à cozinha. Por esta altura a pequena Farrusca já está a dar conta das gamelas dos seus companheiros. Eles cedem-lhe o respasto sem refilar, como qualquer pai faz a um filho, mas por vezes eu chateio-me com a voracidade da amostra de gata que nos calhou na rifa e ponho o gato Pi, que está velhote, a comer à parte, e em paz longe da alimária da gatinha bebé.

Preparo o pequeno-almoço à filha mais velha. São umas bombas de chocolate em forma de pirâmide, de marca branca. Ela é tão profundamente adicta ao produto em causa que nunca tenho forças para enfrentar uma tempestade de privação de açúcar refinado logo às primeiras horas da manhã, sugerindo um menu alternativo. Isso fica para um dia destes; há demasiadas mudanças a ocorrer na sua vida de pré-aborrescente, a semana passada comprámos um soutien, por isso, nem pensar mudar-lhe agora os cereais do pequeno-almoço!

Há-de passar na SIC Notícias o trânsito na VCI e mais tarde a meteorologia, entre notícias mais ou menos importantes.

Tic-Tac-Tic-Tac, o espectáculo tem que continuar (ou é uma bomba-relógio em contagem decrescente?)

Há trabalho de casa obrigatório na véspera: roupas escolhidas a dedo (a piorseira e o pendant obrigatórios funcionam muito melhor no dia anterior), alinhadas aos pés da cama, à espera que corpinhos quentinhos e preguiçosos mergulhem para dentro delas.

Ainda não atingi a perfeição de deixar a mesa preparada para o pequeno-almoço. Um dia hei-de lá chegar. Ou talvez não. Sem pressões. Já há demasiadas pressões e no início do dia eu ainda tenho certezas que sou uma mulher-maravilha que deixa o seu Homem Aranha dormir mais um bocadinho o seu sono de beleza.

O António é o menino que se segue na perfeita linha de montagem desta família. Sento-me na cama ao seu lado, dispo-o e visto-o a dormir. Os homens cá de casa têm sono pesado. Pode cair o Carmo e depois a Trindade que eles continuam angelicais, colados à almofada sem resmungos, apenas desmaiados e inertes.

A certa altura tenho que o chocalhar. E enchê-lo de beijos. Ele há-de dizer alguma coisa muito melosa, como eu sou a mais linda, ou como me ama. Casa-de-banho com ele, o copo de leite e o Manhazitos já estão na mesa à sua espera e sei que, depois de lavar a cara e fazer xixi, vai mudar das notícias para o Cartoon Network, ainda que saiba que não o pode fazer.

O pai é o terceiro a acordar. O tamanho da minha barriga de oito meses não me permite alcançar a minha filha na sua cama de grades fixa. É ao pai, acabadinho de se levantar, que entrego a tarefa de preparar a benjamim deliciosa, uma bonequinha de porcelana morena.

A Aurora tem um acordar doce e feliz. Sigo aquele momento de profunda intimidade entre pai e filha à distância, da cozinha, enquanto chocalho o pó da papa láctea com um garfo e a alquimia acontece transformando leite numa argamassa a que me é difícil resistir. Enche-me a alma ouvi-los de longe. Mas talvez esteja na hora de dar o primeiro berro do dia, porque a Carolina ainda não se calçou, ou o António ainda não tocou no copo do leite.

Ultimamente há uma nova fase da manhã e que dá pelo nome finório de pediculose ou, se preferirem, pelo nome foleiro e preconceituoso de "piolhos". Passo as três cabecinhas a pente fino. Literalmente a pente fino. A expressão ganhou uma nova dimensão para mim.

Hoje, passadas umas boas três semanas de ausência, vamos voltar ao ataque. Acabaram-se todas as vias do diálogo; isto é uma declaração de guerra. Logo à noite vou fumigar preventivamente com champôs caríssimos e com cheiro a talco. Um dia declararei extinta esta raça que teimosamente teima em reaparecer. Espero que sim. Que não seja como o raio das baratas que vivem na Bimby (finórias de um raio).

Entretanto já estamos atrasados.

Mochilas às costas, casacos, bibes e brinquedos da praxe pendurados nos braços. A Carolina vai esquecer-se do cartão da escola e da luz do quarto acesa. Vai ser um corropio até alinhar tudo e todos no elevador. Cá em baixo há que  encaixar crianças em cadeirinhas e apertar cintos. Dispor depois toda a parefernália que acompanha a comitiva no pouco espaço que resta do minimonovolume que há uma década para cá nos acompanha para todo o lado com algumas marcas do tempo e da azelhice de um marido que tirou a carta aos 35 anos. São as suas rugas. Ou as suas dores de crescimento. Calha-nos a todos.

O motor arranca. Marcha-atrás, e depois a primeira a fundo porque a subida é bastante íngreme. Vários atalhos e caminhos secretos se o trânsito estiver inexplicavelmente compacto na Avenida de Roma.

Às nove da manhã está tudo despachado e eu regresso a casa (ou, geralmente, ao trabalho). Suspiro. Tomo um café e como um pão com manteiga.
Vem aí o resto do dia, mas este momento de regozijo pela tarefa cumprida ninguém mo tira.

Daqui a quatro semanas a rotina muda de novo e drasticamente. E este relato será como uma memória longínqua... Como nos tempos em que a minha mãe me acordava, ligando-me pelas 10h00, e a manhã começava lá para o meio-dia numa redacção de um jornal diário...

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

As "músicas-madrinhas" dos meus filhos

Perco muito tempo das nove luas que o meu ventre conta agora, pacientemente, pela quarta vez, a interpretar sinais praticamente invisíveis à vista mais desatatenta, a farejar o ar como um cão perdigueiro à procura de um rasto praticamente indelével, a guiar-me por um qualquer campo magnético que faz girar a terra e que, mais cedo ou mais tarde, me leva direitinha à música que foi feita à medida de cada um dos meus filhos.
Foi assim que cheguei ao fado de Carolina, do Chico Buarque, vaticinando que a minha primogénita traria nela e nos seus olhos azuis todas as dores e também todo o amor do mundo. (e eu serei sempre a voz que lhe diz que o mundo anda lá fora e que ela o poderá ter a seus pés se abrir a janela).



Rodrigo Leão e Ryuichi Sakamoto foram a minha companhia e do António nas longas viagens até Belém, quando a vida me atirou para um museu de arte moderna e contemporânea, no rescaldo daquela que foi a maior perda da minha vida: um filho que não vi nascer.
E foi ao som de um piano sereno, que me lembrava as águas calmas da piscina da minha infância, onde tantas vezes lavei a alma sob o olhar atento de uma lua mentirosa, que consegui sarar a enorme ferida que trazia aberta, e protegi e abracei o António meses a fio, em modo contínuo, repeat one, pelas ruas de Lisboa, na certeza que tudo correria então pelo melhor.
O Tejo ora do meu lado esquerdo, ora do meu lado direito, a furar engarrafamentos como quem fura a cobertura de chantili de um bolo de aniversário, camionetas de turistas asiáticos com poderosas máquinas fotográficas digitais do outro lado do vidro, enquadrados pelo som de uma canção de embalar que fez do meu rapaz a criatura mais leve do mundo e desta família.


A Aurora foi a luz brilhante que clareou tudo como um relâmpago que nos acordou de repente, que nos pôs no trilho certo, como um aviso à navegação que nos sobressalta porque só assim é possível retomar as rédeas do destino.
Ela cobriu as nossas vidas como um manto branco que espantou o medo do escuro, um temor infantil que trazíamos entranhado na pele, por todo o lado, despojados de grandes esperanças, deixados levar por um país trespassado por um resgate cruel, paralisado por uma crise selvagem. 
Ela é a luz das nossas vidas; ela é a possibilidade de tudo o que queiramos para futuro - e é por este seu condão que a sua "canção-madrinha" é Daylight and the Sun, de Antony and the Johnsons.


A Isaura esteve muitos meses sem nome, demasiados, ou talvez precisamente a conta certa para chegarmos à escolha de um nome que não agrada a todos mas que é a mais abençoada (quase consigo ver a minha avó a sorrir-lhe, sentada no seu cadeirão de couro, a rebentar de orgulho pela mulher que sou apesar dos desaires para os quais fui arrastada e tantos outros para onde me meti deliberadamente e sabendo bem ao que ia). 
Há muito, porém, que lhe escolhi a música. Tudo o que eu desejo para a minha filha-milagre, para a minha filha linda, bem-amada, está na canção "Menina da Lua", do compositor mineiro Renato Motha, aqui interpretada por Maria Rita.