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quinta-feira, 17 de julho de 2014

Ai António, Deus te livre do Demónio!

[Foto: Família Numerosa]

Na aldeia em que o meu avô materno nasceu há 110 anos anos, numa casa de xisto com vista para a Serra de São Macário, a escassos quilómetros das águas termais de São Pedro do Sul, e de uma terra cheia de histórias de lobisomens e cobrantos, a sexagenária prima Maria, repete, ao meu filho António a cantilena de um exorcismo light , ainda ele tinha caracóis dourados de querubim de igreja barroca: "Ai António, Deus te livre do Demónio. E das más tentações. E do caldo sem feijões".

O 'Toninho cravo-roxo', como ela lhe chama, com uma melódica doce voz, tem propensão para a catástrofe, e ela vai cantarolando as suas lenga-lengas para espantar os maus agoiros.

Apesar de termos sido obrigados, a certa altura, nos seus primeiros passinhos, a andar com ele de rédia curta e trela nos passeios dominguieros (aturando todo o tipo de impropérios de anónimos enfurecidos que rogaram pragas e desejaram com todo o ser processos na Comissão de Protecção de Menores), apesar de não termos tido outro remédio senão fechar todos os armários com detergentes com trancas, de termos selado todas as tomadas eléctricas, apesar de já o termos impedido de se matar com uma sirene de uma ambulância de brincar, mesmo assim não conseguimos evitar que partisse os dentes da frente aos 18 meses, numas férias no Algarve, e repetidamente a cabeça, sempre no mesmo sítio, aos dois e aos quatro anos.

Mesmo assim, mesmo não tendo nascido com o gene inato de prever e evitar os perigos básicos do mundo, de tratar por tu as nódoas-negras, o António é a criatura mais leve d' A Família Numerosa.

Ele é dono de um impressionante perímetro encefálico que nos impede, desde os seus 6 meses de idade, de lhe comprar chapéus de bebé/ criança. A sua cabecinha pensadora é caracterizada por uma exuberância capilar, de fios dourados muito grossos e ásperos, que outrora foram cachos dourados macios.

É uma criança permanentemente alegre, capaz de fazer mil caretas e vozes diferentes, e ganha o dia a fazer asneiras inconsequentes, essencialmente com o objectivo de fazer rir o próximo. O António não tem dramas existenteciais; sabe rir-se das suas fragilidades - que são várias, desde a sua dificuldade de dicção de uma série de letras e sons, até uma descoordenação motora confrangedora -, e faz das suas inseguranças um trunfo cómico, armando-se em stand up comediant em palco, com uma plateia instantaneamente rendida à sua (des)graça natural.

O António é o menino da sua mãe: faz olhos de Bambi abandonado, disparando às dezenas por dia: 'Mamã, porque é que és tão lindinha?" à mínima asneira e só porque sim, fazendo com que o seu reinado, de varão entalado no meio de mulheres, permaneça intocável.

O meu actual filho do meio queria muito ter um irmão, o seu único ataque depressivo foi quando lhe demos a notícia que a Aurora era uma menina. Chorou lágrimas que pareciam repuxos e nas semanas seguintes voltaria a chorar nas mais inusitadas ocasiões e a despropósito, como nos corredores do supermercado. A birra melancólica não o impediu de ser o melhor irmão do mundo para a benjamim. Só ele lhe consegue arrancar gargalhadas daquelas em que o riso dobra, e dele nasce uma responsabilidade insólita quando lhe pedimos que tome conta da pequenina enquanto vamos tomar um duche rápido ou preparar algo para o jantar.

No início deste ano, o António fartou-se de pedir um irmão para os anos e os Deuses atenderam o seu pedido. Quando avançámos cautelosos a forte probabilidade de poder vir a ser mais uma mana, acenando logo com um novo jogo para a PSP para atenuar o desgosto, passou a torcer pela menina: quer mesmo é dar aos polegares e desligar o cérebro no pequeno ecrã do dispositivo da Sony.

Em Setembro próximo, connosco aterrorizados e a torcer o nariz mas resignados, o António perde um ano de infância e brincadeiras e vê-se vítima da maldição dos bebés de Dezembro que ingressam na escolaridade obrigatória um ano antes de todos os outros. Imagino uma caligrafia horripilante, os cadernos todos esburacados, reuniões com os professores preocupados porque não se concentra e só quer brincar. Ou então não: quem sabe se ele não nos surpreende a todos, utilizando desde logo com a professora a técnica do 'Sabes que és tão lindinha?', dando uso à sua longa pestana dourada encaracolada.

Tudo pode acontecer. Aquilo que eu sei é nada ou ninguém jamais lhe roubará a leveza.


3 comentários:

  1. Cheguei, hoje, pela primeira vez ao blog e gostei muito, mas tenho de confessar que a parte que mais me atraiu foi a referência às Termas de S. Pedro de Sul! Somos de tão pertinho!! Beijinhos (muitos porque a família é numerosa!!)

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  2. O António não tem de entrar para a escola com os 5 anos. Podem optar por esperar um ano. Fizemos isso com o nosso, que faz anos em Novembro, e o resultado foi muito bom. :) Foi mais um ano para brincar, para amadurecer no Jardim de Infância. Além disso, como o Jardim de Infância faz parte da EB1 que frequenta agora, serviu também para se adaptar à escola "grande".

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