Quem faz um blog fá-lo por gosto

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Puerpério – Sobreviver a Dezembro

Ano cor-de-rosa para todos (com oito dias, no estúdio da 'tia' Raquel Brinca)

 Reza a tradição, passada ao longo de gerações e gerações, em jeito de ritual de iniciação desta maratona frenética que é a maternidade, mas tão desbotada e encolhida como uma camisola de cor garrida que foi à máquina no programa de noventa graus e com a centrifugação máxima, que mulher parida deve ingressar voluntária e obrigatoriamente por um período de “resguardo” nunca inferior a trinta dias, confinada a quatro paredes e a um cocktail de canjas de galinha, muito descanso e toda a ajuda possível, para combater a privação de sono, as mamadas a cada três horas e uma rave hormonas em roda livre.

Todos sabemos que a tradição já não é o que era e, de certa forma, ainda bem; fico entre o alívio profundo e a náusea: é que diziam os antigos que mulher parida não podia lavar o cabelo – e nem quero nem imaginar em que condições lastimosas estariam os cerca de oitenta centímetros das minhas melenas se eu estivesse a escrever estas linhas a cumprir escrupulosamente esse regime feito à medida de superstições e crendices milenares.

Pois bem, foi já bem crescida, prestes a dar à luz à minha primeira filha, que dei por mim a folhear o dicionário (a Internet ainda era um bem escasso apenas acessível no posto de trabalho) à procura da palavra “puerpério”, intrigada com o termo que teimava a aparecer na pequena súmula de legislação laboral que me apresentava o sinistro livrinho verde da grávida do serviço nacional de saúde (a tradição mudou, mas o livrinho verde da grávida, apesar das “actualizações” gráficas da última década, continua a ser um “tesourinho deprimente”; pior só mesmo o cartão do cidadão com os seus caracteres numéricos minúsculos, apenas legíveis à lupa ou à visão infalível de uma ave de rapina).

Foi então que tomei conhecimento do “resguardo”, que é sinónimo do dito “puerpério”, um fenómeno insólito e em vias de extinção, que antigamente juntava um grupo de mulheres com o simples intuito de prestar assistência a uma outra mulher em apuros e a braços com esta coisa incrível que é gerar e deitar uma vida cá para fora e ficar com o mundo como o conhecemos todo do avesso. É que o bilhete premiado da taluda traz consigo aquele cheiro delicioso de bebé e também uma tonelada de roupa suja para lavar, estender, passar, dobrar, entre outras coisas, anteriormente banais e automáticas e que, de um momento para o outro, passaram a tarefas hercúleas, como preparar refeições, fazer a cama, pentear o cabelo ou até tomar banho.


Acaba hoje o meu “resguardo”. Não comi canja e lavei o cabelo menos vezes do que desejaria. Foram trinta dias inesquecíveis. E sim, estou a utilizar muita autocensura na adjectivação.

Um nascimento – o dia em que a minha filha-milagre veio ao mundo e em que o estranho e improvável amor que me cola ao João voltou a transbordar violentamente. Uma cesariana, a quarta e última vez em que o bisturi me rasgou o ventre, expondo o mais incrível feito de toda a minha existência. Uma cirurgia complicada, turbulenta, mas sem que nenhuma das complicações que nos assombraram ao longo de três trimestres ousasse sequer a aparecer de soslaio, e uma recuperação sobrenatural ao fim de apenas 24 horas. Uma euforia apenas comparável à primeira vez que se consome uma droga dura. O espanto de ter gerado este incrível ser-humano – e particularmente embasbacada com a perfeição das orelhas peludas. 

Entrem com o pé direito em 2015!

O 11º aniversário da filha mais velha, com direito a duas festas de arromba – uma para a família, outra com dezena e meia de pré-adolescentes. O fato de super-mulher sempre vestido e caber na roupa mais justa de todas as penduradas no roupeiro ao sexto dia após o parto. O 65º aniversário do meu sogro e um acampamento cigano de visitas ao presente de Natal antecipado que nos chegou no primeiro dia do advento. 

Comprar barro, esculpir um aldeão para o presépio colectivo da escola, e entregá-lo, ainda assim, com um gigantesco e embaraçoso atraso para uma mãe que até tinha um Excel que tudo previa. Crises de choro por tudo e por nada. ~

Um recém-nascido a perder peso e com icterícia. Mais lágrimas. Urgências, pulseiras vermelhas, e picadas nos pequeninos pés e mãos mais perfeitos que já vi, para análises que não confirmariam as piores suspeitas. Uma mastite, novamente nas urgências, dores indescritíveis e febre a quarenta graus. Um recém-nascido a perder mais peso e ter que lhe enfiar um biberon na boca. Quatro festas de Natal apesar de eles serem só três, com lanches, e espectáculos de música e dança. O 37º aniversário do João – está cada vez mais lindo o meu homem. O sexto aniversário do António – está cada vez mais lindo meu homenzinho.

E não se esqueçam de vestir cuecas azuis!
Compras de Natal. A Consoada e os despojos intermináveis da festa que não me apetecia este ano, e que o pai Natal não levou consigo para a viagem de volta ao Polo Norte, acabando por consolar os gatos e o cão desta casa que, neste momento, devem estar pré-diabéticos. Presentes de anos e de Natal escondidos nos armários para distribuição faseada ao longo do próximo ano. 

Comer bolachas e chocolates como refeição e dar cabo de toda a dieta restrita e meticulosa seguida nos meses anteriores. Aquecedores ligados 24 horas por dia. Máquinas e máquinas de roupa a lavar e a secar, e estendais cheios de cueiros e babygrows, uma casa permanentemente em desalinho. 

Um bebé de 19 meses com crises de ciúmes, de choro, e de pilantrice e que, entretanto, começou a falar talvez para chamar à atenção.

Acaba hoje o meu “resguardo”. Faltam duas horas, vou lá chegar às doze badaladas.
Sobrevivi a Dezembro. Sobrevivemos a Dezembro.

E escrevi este texto com apenas dois dedos e um bebé pendurado ao peito a mamar.

Bom Ano para todos.

Amanhã gostava de vos falar da minha doce Isaura, que amanhã faz um mês de vida.



domingo, 30 de novembro de 2014

O Excel da Família Numerosa

Temos um encontro marcado daqui a 24 horas. E para esse não há Excel que nos valha. [Foto: Ties.pt]
A folha de cálculo da Microsoft entrou na minha vida há metade dela. Mudou o curso de muitos eventos que a partir desse momento se seguiram, entre macros, worksheets, tabelas, gráficos e funções mais avançadas. Desculpem o jeitinho dramático, profundo, solene e grave, mas vem aí uma boa história.

Pessoalmente irrita-me que um aplicativo do Bill Gates para fazer contas e cálculos me tenha eventualmente desviado daquele que eu estava certa ser o meu grandioso destino (depois, mas muito depois, muitos, muitos anos depois, veio o Powerpoint, ferramentazinha que me dá azia, mas com a qual transformo slides em euros e talvez até dominar o mundo, mas isso, meus caros, são outros quinhentos; fica para depois), mas é mesmo assim a vida: eventos extraordinários, acontecimentos tão improváveis que nenhum matemático se daria ao trabalho de resolver a complexa equação, rotundas iluminadas que abrem inúmeros caminhos e possibilidades num frenesi de carrossel e encruzilhadas onde, num instante, tudo muda. Para sempre. Quer se siga em frente. Ou se volte para trás. Corte-se à direita ou para a esquerda.

Foi numa sala de informática nas catacumbas de uma escola superior de comunicação social em Lisboa, com uma arquitectura muito catita sobre a segunda circular mas nada funcional e acusticamente viável para quem lá almejava aprender as artes de vender a banha da cobra (e eu queria fazer anúncios; era isso que eu queria: fazer bonecos, grandes copys  que ficassem no colectivo para sempre e filmes de trinta segundos que rugiriam em Cannes) que eu cliquei duas vezes com o rato sobre o ícone do Excel.

Nada seria como dantes.

Não tive computador em casa até ser adulta e vacinada. Lá em casa sempre houve muitas máquinas de escrever, Olivetti de várias cores e tamanhos, eléctricas, com memória e apagador automático, e armazenadas em gavetas da sala encontrávamos bobines de Kores e papel químico. Mas a minha mãe nunca atinou sequer com o VHS ou com o evento extraordinário que foi o controlo remoto da televisão, quanto mais com um computador. Sobrevivi a tamanha provação de uma forma despreocupada e feliz, uma suplèsse que a minha filha mais velha, de dez anos, não parece capaz de superar, só porque o seu Magalhães Socrático já não corre à velocidade que ela acha conveniente para ver filmes da Violetta no Youtube.

À parte as aulas de Introdução às Técnologias de Informação do ensino secundário, onde aprendi MS/ DOS no papel – porque a escola não tinha um único terminal –, mantive-me indiferente a este teclado sobre o qual martelo estas palavras com demasiada força (talvez a força necessária para uma Olivetti) até à minha entrada na Faculdade, sobre a segunda circular, em Benfica (um território que eu, menina de Alvalade, filha de uma mãe solteira sem carta de condução, achava que nem fazia parte de Lisboa).

Tenho poucas recordações dessa escola. Fiz o curso desmotivada e ao pé-coxinho, aparecendo muito pouco por lá – ali na segunda circular não havia nada para mim, ou para os meus sonhos de fazer arte no bloco publicitário da novela. Foi pura desilusão. Mas devo-lhe a meia dúzia de amigos para a vida que ali conheci.

O Excel foi um dos raros entusiasmos que aquelas salas me concederam: macros, balanços de stocks, listagens infinitas com tudo o que me apetecesse.  Já vos disse anteriormente: há um obsessivo-compulsivo assanhado em todos nós. Cada qual ameniza a sua ansiedade com o melhor escape que está à mão e, nessa altura, o Excel foi minha bizarra muleta, e isso foi um momento tão ou mais perturbador como aquele da minha pré-adolescência em que a simpática psicóloga escolar, depois de uma gigantesca bateria de testes psicotécnicos à extra-sensível e criativa ‘filha do pintor’, sentencia, visivelmente perturbada, que os meus melhores valores dão para profissões burocráticas, como contabilista, ou analista financeira e que os meus piores resultados iam, precisamente, para as artes.
São estranhos os caminhos do destino. Sei-o bem agora. E aceito-o com serenidade.

O meu percurso académico apresentou-me a muitos outros perturbadores softwares informáticos. O SPSS de tratamento estatístico de dados nunca me deu pele de galinha; o Photoshop e o Quark ainda me fizeram olhinhos; houve um outro de planeamento de campanhas publicitárias, com cálculos de OTS, Audiências e GRPs que ainda me fez levantar o sobrolho de interesse, mas a verdade é que eu entrei para o jornalismo, e toda a minha vida mudou, por causa do Excel.   

E isso também foi há metade da minha vida atrás. É assustador constatar que o dia em que eu pisei numa redacção já foi há 18 anos – poderia ter nascido outra vez, já teria atingido a maioridade e teria direito de voto.

A minha posição na hierarquia da redacção era igualmente bizarra. Estava no final da cadeia da alimentação mas mesmo assim deu-me direito a um epíteto: era e fui largos anos da minha vida a ‘menina das Bolsas’. Quatro páginas diárias estavam à minha responsabilidade; às quais acresciam outras quatro semanais, num suplemento que fechava a desoras nas madrugadas de sexta-feira.

Todas aquelas páginas impressas em papel de má qualidade se faziam em Excel. Eu chegava a meio da tarde a um sítio até então ausente e desconhecido da minha geografia de lisboeta, na Quinta do Lambert, e corria macros com dados do mercado em contínuo e das cotações dos fundos, que vinham em disquete de baixa densidade por estafeta da Bolsa de Valores de Lisboa. Havia um único terminal com Internet em toda a redacção e estava dentro de um aquário, como uma Mona Lisa no Louvre. E era eu quem lá mais passava tempo. A viajar através da Yahoo.

Eu chegava e introduzia o Nasdaq, o Ibex, o Dow, o Cac à unha dos ruidosos telexes azuis que saiam do terminal da Reuters e, pelas 18h00, ligava o teletexto da televisão do bar, onde se transacciona whiskey em copos discretos de papel, para ver o fecho da bolsa suíça. Calculava a capitalização bolsista nacional, registava a evolução semanal e anual do escudo face ao dólar e face à libra. Depois, de tudo tratado no Excel, mandava dezenas de ficheiros para a rede e seguia para o departamento dos gráficos, abria-se o Quark, anos mais tarde o Indesign e paginava-se tudo, ficando apenas à espera do comentário da bolsa e dos câmbios lá para o início da noite.

Hoje, a 24 horas de nascer a minha quarta filha, tenho o Excel aberto e toda a vida da minha família numerosa na última semana e nos próximos dias está discriminada em células digitais, à falta de papel quadriculado, régua e esquadro.

Como qualquer plano perfeito, tem que ter a humildade de estar aberto a alterações constantes, a qualquer hora do dia ou da noite, um baralha tudo e volta a dar, toca a encaixar de novo as peças do puzzle esquizofrénico. Não previ pois que o António, que nunca está doente, apanhasse uma amigdalite, e logo de seguida a ‘quinta doença’, ou que a Aurora também decidisse que era uma boa altura para trazer para casa uma virose de nome surreal – síndroma de pés-mão-boca.

É a minha quarta gravidez e, se bem que não tenho a presunção de tudo saber sobre os mistérios da maternidade, não estava também previsto no Excel o insólito acontecimento de ter uma subida de leite mesmo antes de ter um bebé ao colo para alimentar.

Justiça seja feita; algumas coisas correram conforme o planeado: consegui fazer a árvore de Natal, no roupeiro dos miúdos estão conjuntos de roupa completos para todos os dias da próxima semana, incluindo cuecas e meias, acumulei na despensa leite, comida de gato e papas lácteas dignas de um bunker de sobrevivência, pintei o cabelo, fui à depilação e até arranjei tempo para dormir um bocadinho – privilégio que sei que vai estar em suspenso nos próximos meses.

 A partir de amanhã, o Excel da Família Numerosa prevê a que horas é que se tem que acordar e porque ordem, o que cada um toma de pequeno-almoço, incluindo os animais, o conteúdo de cada uma das mochilas da minha prole, as datas e horas dos testes de avaliação do final do primeiro período, aparentemente todos marcados para esta semana, os imperdíveis ensaios de hip hop e do coro da mais velha, que será estrela da festa de Natal com a sua voz cristalina e jeito desengonçado, as aulas de judo e de dança e as visitas de estudo a Monsanto do rapaz do meio, que também tem que fazer uma figura de barro para o Presépio da escola, as rotinas e manhas para adormecer a pequenina Aurora…

E, para cada um dos itens, o meu Excel determina a respectiva delegação de competências, distribuindo o mal pelas aldeias durante a minha ausência na maternidade. Detalhe a detalhe, preto no branco, a quem confio toda esta complexa logística que é a minha vida. A vida que eu não trocava por nada, a vida que, se calhar, comecei a construir quando cliquei duas vezes sobre o ícone do Excel pela primeira vez, há metade da minha vida atrás.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A família numerosa de quatro patas (um post com miados e latidos, patrocinado por Noé)

Junho de 2013. O tímido, desconfiado e velhote gato Pi, aproxima-se da Aurora pé ante pé.  [Foto: A Família Numerosa]
A Família Numerosa tem muitas patas e pode dividir-se em conjuntos e múltiplos de quatro. É muito peluda, cabeluda e colorida: há pretos, há pardos, há ruivos, há loiros, loiras e morenos. Há olhos castanhos, amarelos, verdes e azuis. A Família Numerosa é assim: uma balbúrdia.

Costumo dizer, a torto e a direito, em jeito de louvor público, que a minha empregada é uma santa sem altar, Nesta casa temos aquilo a que eu chamo o 'ABC' a que nenhuma empregada doméstica no seu perfeito juízo se submete: Animais, Bibelots, Crianças. Abençoada seja Nargiza, que veio da milenar idade de Samarcanda, no Uzbequistão, Ásia Central, para ser o nosso garante de sanidade mental, a senhora organizadora de todas as confusões.

Farrusca, a benjamim, sob a interminável e hipnotizante manta de crochet que ando a fazer há tempo de mais. [Foto: A Família Numerosa]
Durante muito tempo fui conhecida pelo Bairro de Alvalade como a 'filha da senhora dos gatos' (agora serei, eventualmente, conhecida na rua pela 'senhora que tem muitos filhos', ou 'a senhora que está novamente grávida'. De uma coisa tenho a certeza: já sou a senhora; à excepção do porteiro da minha empresa e de uma ou outra peixeira na Praça já ninguém me chama de 'menina'). 

Há um obsessivo-compulsivo em todos nós: há quem preencha os vazios comendo; há quem faça colecções de cromos, mochos, ou memorabilia do Star Wars. Há quem estoire dinheiro em viagens, roupas caras, ou electrodomésticos sofisticadíssimos. Há quem vá ao bingo, aposte tudo na raspadinha ou anestesie a alma na taberna com vinho barato.

Já a minha mãe, dedicou grande parte da sua vida adulta a uma devoção assisiana a estes deuses ronronantes, os gatos, regatando-os, amando-os e compreendendo-os ao ponto de eu estar praticamente convencida de que ela sabe miar e que aqueles grandes bigodes que teima em não arrancar à pinça ou por qualquer outro método à escolha (dizendo por graça que está a tentar tornar-se a primeira mulher a ser aceite no clube restrito dos homens de bigodes) é um sinal inequívoco da sua metamorfose em 'lobisgata'.

Gata Manga apresenta-vos um detalhe do quarto das bebés. Os mais atentos já terão reparado que a minha obsessão é o crochet. [Foto: A Família Numerosa]
Os gatos fazem desde sempre parte da minha vida. 

Ironicamente e, apesar da minha vasta convivência com felinos desde tenra idade, não estou imune à toxoplasmose: aquela doença cque impede as grávidas de comer alface, morangos e carne mal-passada e que leva, estupidamente, ao abandono de milhares de felinos por todo o mundo, por pura ignorância e alarmismo neurótico.

Sou uma grávida muito descontraída, tenho a noção disso. Fui, durante alguns, muitos anos da minha idade adulta uma pessoa muito ansiosa. Pedaços de vida menos doce assim me toldaram. Levei algumas panadas na vida, tropecei em demasiados desaires, fui vítima de estranhas circunstâncias e de injustiças grotescas que, a páginas tantas e durante tempo de mais, me tornaram uma panela de pressão prestes a explodir, apesar do trato tresloucado de falsa extrovertida de que sempre tive fama.

Depois, muito tempo depois, veio a gravidez da Aurora em plena intervenção da troika. As primeiras cólicas da nervoseira do sistema parassimpático surgiram automaticamente com as dúvidas sobre como iríamos sustentar uma família numerosa com um salário cada vez mais confiscado com impostos, taxas e sobretaxas, e um marido a recibos verdes, a descontar mais de 70 por cento do que facturava, entre retenções de IRS, IVA e pagamentos para a segurança social obrigatórios, quando do outro lado havia parcos recebimentos a 60, 120, 360 dias...

Não sei como, nem porque graça, nesse ano em que gerava a Aurora no ventre, baixou em mim a certeza de que tudo se cria e que coisas boas acontecem àqueles que não tiraram esta vida e a outra para embirrar com tudo e todos e à boleia fazer a vida negra ao vizinho do lado. Fiquei submersa numa serenidade que nunca antes tinha vivido - passei até então a minha vida num sobressalto de uma montanha-russa: altos muito altos, baixos muito baixos, bençãos a roçar o milagre, tragédias helénicas deslocadas para a ponta da Península Ibérica. Deixei-me levar por essa calma. Até hoje. Passámos a aproveitar a beleza das coisas pequenas, que não se compram com cartão, sabendo à partida que tudo é efémero e volátil, mas que não vale a pena estar a sofrer por antecipação. Como diz a amiga do peito Catarina Beato: a vida resolve-se sozinha.

Nada nos falta. Nada nos continuará a faltar. Estou certa disso. 

Margot, a rainha-gata-mãe, e o seu incrível e inimitável pantone azul de pelo [Foto: A Família Numerosa]
Desde então os meus níveis de neurose raramente se sobrepõem à razão. Ninguém é perfeito e nem tudo é rosa, mas passei a ser uma pessoa diferente e temo até que os amigos mais próximos desconfiem que ande drunfada em ansiolíticos.

E isto tudo vem a propósito de gatos e toxoplasmose. Para explicar que, cá em casa, não se abandonam gatos só porque o teste de gravidez deu positivo. Aliás, grávida de 32 semanas e com desgosto de ter perdido a minha felina matriarca, a incrível gata azul Margot, para um devastador cancro, rumei a Sete Rios, até ao gatil da União Zoófila, e foi lá que tive a sorte de poder ser a dona do mais inesquecível gato preto de bruxa à prova de todas as superstições: o Neco. 

Fomos nessa Primavera a 'estrela da companhia' da União Zoófila. Habituados que estamos a quebrar estereótipos e clichés, foi com gosto que participámos, já no estatuto de família numerosa com três filhos, numa dupla campanha de sensibilização à adopção de gatos pretos (os preteridos por estúpidas crendices), e pela queda do mito que uma grávida, não imune à toxoplasmose, não pode ter contacto algum com felinos.

Neco e Aurora, com uma semana de vida - amor sem fim. [Foto: A Família Numerosa]
Neco, o gato mais inesquecível desta casa, protege a Aurora das cólicas e dos sonhos maus [Foto: A Família Numerosa] 
O meu amor pelos meus gatos é idêntico e inspirado na sua personalidade independente (diria até displicente). Não lhes compro roupinhas, não os apaparico com saquetas gourmet com descrições e ingredientes idênticos à nova ementa do Eleven, não os trato como filhos, mas sim como gatos que são. 

Sei bem que eles é que marcam a agenda nesta casa, sei que eles é que escolhem quem é o seu dono, apesar de ser sempre eu a alimentá-los e sempre o João a limpar-lhes o caixote - isso não interfere com as suas preferências ou escolhas. A decisão de compra de um sofá também nunca é motivo de angústia: há-de ser sempre o maior e o mais barato da loja sueca, pois nesta casa amam-se mais os gatos que os sofás onde eles afiam as garras alegremente. 

Mas são gatos, não são filhos. Mas é claro que fazem parte da família. Fazemos por eles tudo o que estiver ao nosso alcance. Amamo-los a uma certa distância porque é assim que eles mais gostam.

O Neco, porém, foi um dos gatos que mais me marcou, apesar de ter esgotado as suas nove vidas num curto espaço de dez meses felizes que esteve ao nosso lado, sucumbindo súbita e fulminantemente a uma misteriosa doença na véspera do passado ano novo. Quem cresceu com uma mãe armada em 'Noé da Gataria' ganha um calo e uma imunidade à sua perda à prova de bala, Vai-se adquirindo uma certa insensibilidade. Dizem os entendidos que essa é, até, uma das grandes virtudes de uma criança conviver com um animal de estimação: ter conhecimento e experiência da morte, essa inevitabilidade da vida. 

E eu há muito que eu não chorava pela perda de um gato. Ainda hoje, quase um ano depois de o ter perdido, escrevo estas palavras de olhos marejados. Há coisas que não se explicam.

A Montanha Mágica - Cenoura, Manga e o Livro de Thomas Mann lá atrás na prateleira [Foto: A Família Numerosa]
Falta apresentar o Cenoura. É também um ex-inquilino da União Zoófila. Era o António bebé hiperactivo e soubemos que ele estava destinado a ser o nosso cão, quando se deixou abraçar violentamente pela peste loira endiabrada, sem exibir qualquer reacção de excitação, medo, ou terror. 

Trouxemo-lo à experiência, sem que as voluntárias da Associação estivessem convencidas que trazer um cão abandonado, traumatizado, e já adulto a virar para o sénior, para uma casa com crianças barulhentas e gatos peneirentos, ia dar bom resultado. Nós não duvidámos que era uma boa ideia. A sorte protege os audases, a vida resolve-se sozinha e o canídeo queria um sofá quentinho onde se aninhar.

O resultado está à vista. É que cá em casa há uma regra muito simples: a chave de tudo é o amor e é o respeito.

Chamem-nos subsversivos, liguem para a Protecção de Menores horrorizados, mas cá por casa damo-nos como cão e gato. Somos fiéis a esse princípio como um cão que segue incondicionalmente o seu dono até ao fim do mundo. Claro que nos sabemos diferentes em feitios e manhas: há uns independentes, outros carentes e ainda uns mais submissos que outros. Rosnamos alto, às vezes até bufamos uns aos outros. Já houve dias de valentes uivadelas (sei lá se estava lua cheia...).

Mas, no final, amamo-nos e somos felizes como um rom rom do fundo das entranhas, e levamos a vida com a mesma alegria de um cão a escavar um buraco muito fundo na terra, para guardar aquele osso.

Este é o nosso tesouro.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

António, o Santinho do Pau Oco


"Posso não ser um Santo, mas pareço um anjo a dormir"
António, as aulas de Educação Moral Religiosa Católica (e um longo caminho para a Santidade)

--- Sabes, mamã, o São Martinho chamava-se Martinho, mas fez uma boa acção e passou a chamar-se São Martinho.

(breve silêncio)

--- Eu vou fazer uma boa acção e vão todos passar a chamar-me Santo António Ralha!

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

António, o animal político amoroso

Se não me deixas jogar Playstation não te faço nunca mais olhinhos de Bambi, ameaça ele, em tom de birra
António, à hora do jantar, talvez inspirado pelos ténis de Super Homem que traz nos pés, talvez imbuído da sua exclusiva masculinidade do bando de raparigas que produzimos numa edição de autor nesta casa:

(façam sotaque de Shrek das Beiras)´´

-- Vou proteger sempre a mamã!
-- Vou proteger sempre a Isaura, a Aurora e a Carolina!
-- Vou proteger sempre o papá!
-- Vou proteger todo o mundo!!!
-- Quer dizer... O Passos Coelho não! Esse não...

(o ex-boyzito não convence o boy cá de casa)

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A família virótica - um pouco cansada em Dia de São Martinho

Dezoito meses de gente que finalmente aprendeu a sorrir e vai começando a balbuciar trapalhona as primeiras palavras. Lá atrás, no quadrinho bordado a ponto de cruz o aviso à navegação para os próximos tempos: Now panic and freak out!


Este blog devia ter mudado a sua designação, provisoriamente, e nas últimas quatro semanas, para A família virótica.

Neste intervalo temporal de um mesito, mais coisa menos coisa, fomos bombardeados por todos os lados com notícias alarmantes da auxiliar de acção médica do país vizinho e do seu mártir canídeo. Recebemos emails absurdos, reencaminhando infografias catitas sobre a prevenção do Ébola e os noticiários abriram com relatos do país onde uma doença altamente mortífera se juntou à check list que já incluía na sabedoria popular maus ventos e maus casamentos.

Por cá andámos noutros contágios.

Teresa Romero já passou à história no bom sentido (se fosse um gato já andava a fazer as contas às vidas que tinham sido descontadas do cartão de crédito) e na África Ocidental nada de novo, back to basics: a febre hemorrágica continuará a avançar e, se alguma coisa aprendemos deste frenesi mediático que ainda me conseguiu esfrangalhar os nervos da minha mais velha meia neurótica e um pouco hipocondríaca, é que a vida de um cão em Espanha vale mais indignação e clamor que a de centenas se não milhares de africanos largados à sua sorte.

Se uma árvore cair no meio da floresta e não estiver lá ninguém por perto para ouvir, ouvir-se-á o seu estrondo? Por outras palavras: se morrer um ser humano de tez escura  em África e não estiver por lá uma câmara de televisão, um smartphone e uma decente ligação à Internet para streaming nas redes sociais quase instantâneo, irá causar-nos tanta aflição como o abate do pobrezito do cão da espanhola?

A esta dúvida filosófica poderia até acrescentar outra: depois de toda esta bimbice seremos nós os mesmos se nos banharmos nas águas de um mesmo rio onde molhámos os pézitos anteontem? Ou vamos a correr ligar para o Saúde 24 com medo do contágio?

Não sei... 

Tenho dias em que me apetece abraçar o mundo, em que vejo grandeza nos mais pequenos gestos, onde me entrego com todo o ser à crença inabalável que há bondade em todo e qualquer estranhos com que me cruzo. Regra geral, porém, o mundo é um lugar meio horrível, onde impera o salve-se quem puder e, por isso, é que o Correio da Manhã é líder de vendas, audiências: ali está, sem falinhas mansas, numa tinta que esborrata as mãos, um relato cru e sem floreados da natureza humana – a natureza do mal, grudada naquela tinta negra que se entranha na pele a cada página que se vira no café da esquina.

Não me interpretem mal: não estou desanimada, deprimida ou prematuramente a azular, como há-de acontecer quando este bebé nascer e as hormonas se descompensarem todas. Estou apenas cansada. Muito cansada.

A vida é bela, a nossa pelo menos é, e fazemos por isso também. Enquanto matriarca deste clã vou navegando pelo caos, aparando-lhe as garras afiadas, e descobrindo, tateando de mansinho, estratégias passivo-agressivas para domar a disfuncionalidade que há em todo e qualquer um de nós (e sim, acredito piamente, que o universo todo - e sobretudo os quartos dos miúdos e a minha sala de estar - caminham constantemente para o caos e às vezes os meus dois braços e as minhas costas vergadas pelo peso de um bebé de fim de tempo não chegam para o ordenar ainda que por muito pouco tempo).

A partir deste fim-de-semana que passou, a Legionella passou a fazer parte do nosso léxico e das conversas de café - deixando o São Pedro e o rebaptizado IPMA bem chateados da vida, porque costumam ter abuso de posição dominante impunemente neste tipo de conversa da treta e da circunstância. 

Já vimos este filme com o H1N1 ou o Ecoli, sendo que no primeiro caso a indústria de líquido desinfectante esfregou bem as mãos bem higienizadas de contentamento e agora nem por isso; talvez apenas a dos desodorizantes e a recomendação do Director Geral de Saúde de evitar o duche tenha alguma sorte (sempre me perguntei para que quero um desodorizante com 48 horas de eficácia, como apregoa a publicidade, se tomo banho todos os dias....). 

Tudo isto me lembra a saudosa Enciclopédia da Família do Readers Digest, que o meu avô Oliveira tinha alinhado no escritório, em frente à sua secretária, em muitos volumes de capa dura forrados a tela cinza azulada e letras gravadas a dourado em baixo relevo.

Navegávamos pelos sintomas, em complexos fluxogramas labirínticos, que nos mandavam para trás e para a frente, como numa aventura. Sem sabermos que um dia haveria um doutor House que nos faria as delícias com o seu mau-feitio e perna coxa, fazíamos diagnósticos diferenciais e sentenciávamo-nos uns aos outros doenças raríssimas e graves, como estas que agora nos chegam quase diariamente pelo ecrã plano da sala, através de cabo ou fibra óptica, com um alarmismo de sirene antiaérea.

Por aqui, andamos há quatro semanas com a Virose dos Putos
Vómitos e diarreia (ainda pensei duas vezes em escrever diarréia; é uma palavra tão feia, meu Deus!). Nada que vá parar às notícias; bem mais comezinho e banal…

Lembro-me bem do meu pediatra - e décadas mais tarde pediatra dos meus filhos - explicar à minha mãe o que era uma virose: 'Quando não sabemos o que é, é uma virose..."

Antigamente não havia assim tantas viroses, parece-me. Seria do sabão azul e branco com que lavávamos as mãos no tanque de lavar as cuecas à mão? Eu estava mensalmente no seu gabinete com anginas, o meu irmão Leonardo tinha dores de crescimento, mas, caramba, acho que tive apenas uma virose na vida em criança.

Cá por casa, em quatro semanas, já vai na terceira volta, como num Grande Prémio da Virose: passa ao outro e não ao mesmo, em ciclo infinito como o do oito que o meu filho António não tarda nada aprenderá na escola (vamos no cinco e hoje aprendeu o tê). 

É um vai e vem e haja máquinas de lavar e secadoras de roupa para tanto edredon e lençóis que nunca mais serão os mesmos (piorzinho só o leite com chocolate semi-radioactivo do Lidl que, passados quase dez anos não sai dos lençóis da mais velha, por mais água oxigenada que eu lhe ponha, encapotada em branqueadores e aditivos caríssimos, embelezados e acondicionados em embalagens coloridas com logótipos vibrantes, que me chamam do linear do supermercado como um canto de sereia fada do lar).

E assim vai a família virótica.

Ontem pus uma velinha ao Santo António, pedindo-lhe, aflita, que impedisse mais um descalabro, assim que o pressenti na tez ainda mais pálida do António à hora do jantar. Mas o Santo é mais dos casamentos, e dos meninos, e dos responsos quando algo se perde cá por casa. Cinco minutos depois (re)começava tudo de novo. Talvez o Santo não ache grande piada a estas velas de LED. A tecnologia ganhou o Nobel mas se calhar para milagres só vá lá com parafina e pavio…

Hoje vou pedir ao São Martinho (mas cadê o Verão? A agenda do telemóvel enganou-o este ano...)

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O primeiro soutien... a gente nunca esquece!

Quando conheci o João em carne e osso (e ele era mais osso que carne; que rapaz tão magrinho) e, passadas escassas horas desse evento mágico, passámos a viver juntos e numa comunhão mais ou menos inspirada na dos gémeos siameses ou na das almas gémeas em perfeita simbiose, confessei-lhe logo à partida, num acto de contricção e mostrando todas as cartas que tinha na mão - trunfos e biscas também -, que nunca nesta vida tinha comprado batatas, feito uma sopa e que o meu maior terror de (até à altura) mãe solteira era o dia distante em que me visse confrontada com a necessidade de comprar o primeiro soutien à minha (única, na altura) filha, Carolina.

Entretanto já comprei batatas (ainda não comprei ou demolhei um bacalhau seco: sou inquestionavel e orgulhosamente da geração bacalhau demolhado e ultra-congelado). Também já fiz algumas sopas, mas só desde que a panela mágica alemã dos incompreensíveis mil euros entrou na minha vida (e mesmo assim nem sempre corre bem). Há um par de semanas fui comprar o primeiro soutien da minha filha mais velha, ritual que terei que bisar daqui a uma década de anos para as quase irmãs gémeas Aurora e Isaura.

E, se por um lado, a distância de uma boa dezena de anos me apazigua e serena a inquietação de ter que reviver o evento traumático, comparando-o à rotina de levar uma vacina do tétano, estremeço ao pensar que ainda ontem estava grávida da Carolina quando levei no braço a picada da dita imunização e agora já lhe comprei um soutien.
Assim, num piscar de olhos. Num estalar de dedos uma viagem no tempo em fast forward.
E doeu mais que a picada da agulha. Garanto.

Conta-me o meu amado amigo brasuca Carlos Augusto Stucky, numa conversa de matar saudades pela madrugada de Haloween fora, apartada por um oceano enorme infantilmente encurtado por uma ligação à Internet, que 'O meu primeiro soutien... A gente nunca esquece' é o nome de uma das mais míticas campanhas publicitárias algum dia concebidas no país-irmão, concebida pelo guru Washington Olivetto.

Eu não fazia ideia, nunca ouvira falar da campanha e fui pesquisar. Conheci o Washinghton Olivetto e entrevistei-o para o Público quando abriu uma delegação da sua agência em Portugal, naquela que parece uma vida atrás - e eu agora aqui a lembrar-me que de um CD fabuloso que o publicitário me ofereceu nessa dita entrevista, uma colectânea de musiquinhas suaves que, a certa altura, foram banda sonora de uma fugaz fase de libertinagem que atravessei, curiosamente muito pouco tempo depois de conhecer o Stucky, num paraíso na terra, uma esplanada com uma gigantesca e fluorescente buganvília em flor sobre Olinda, em Pernambuco.

Youtube comigo. Em um minuto e meio de filme, o afamado publicitário consegue captar os sentimentos antagónicos que levanta o evento marcante da compra e da primeira saída para a rua com o primeiro soutien de uma menina/ mulher / ninfeta.

Que não me caia agora a blogosfera em cima por julgar esse episódio como um dos mais marcantes da vida de uma menina-mulher.

O meu primeiro soutien foi comprado tardiamente, aos 13 anos, na Guerra Junqueiro, na extinta Marks & Spencer, sob o protesto e incómodo visíveis da minha feminista mãe que, por ela, incenerava para todo o sempre qualquer exemplar desse espartilho da condição da mulher.

Sei de cor como ele era: branco, de bordado inglês, sem armação, 30 AA. A minha mãe não entrou no provador; partilhei um sorriso de orgulho e contentamento do reflexo do espelho com a funcionária da loja, minha cúmplice substituta pela ausência da minha mãe.

A recordação é-me tão vívida que sei até o que levava vestido: uma saia de pregas verde seco; uma camisa branca com uma gola de rendinhas ridículas, mas que cumpria perfeitamente aquilo que eu mais queria ver desde há largos meses a essa parte - um soutien à transparência.


O primeiro soutien... a gente nunca esquece foi escolhido como um dos 100 melhores anúncios publicitários de todos os tempos. A menina da publicidade será agora quarentona e, se por algum acaso improvável não se tiver cruzado com o bisturi do cirurgião plástico e da sua seringa de silicone, estará agora a viver os primeiros efeitos da grav(idade) sobre o peito.




A minha menina cresceu. Usa soutien. Eu fui caladinha e muito grávida ao seu lado, sem debitar quaisquer sentenças, mas estive lá no momento mais temido que a minha mãe se recusou a presenciar há duas décadas atrás.

A Carolina escolheu os modelos que bem entendeu e empilhou depois uma série de camisolas novas, que eu nunca até àquele instante teria acedido comprar, por achar que não eram apropriadas à idade, para os esconder. O incómodo do primeiro soutien não era só meu, sei-o bem.

Verde - código - verde de uma assentada e respirando fundo, para nem pensar muito na nova era que acabara de se iniciar. Dores de crescimento e pontapés no ventre a lembrarem-me o quão desaconselhável seria hiperventilar naquele momento.

Depois, a condescendência da minha primogénita:"Mamã, podes continuar a vestir com folhos e rendinhas as bebés. Vê lá, até as podes vestir de igual; sempre foi o teu sonho", disse-me a Carolina em jeito de prémio de consolação, de copo meio cheio, talvez num acto de preocupação por me ver tão pálida e livida.
Pediu-me logo de seguida para entrar em mais uma loja de roupa de adulto para comprar mais camisolas de menina-mulher, mas acto contínuo esquizofrénico, choramingou por um boneca na montra de uma loja de brinquedos.

(E este será talvez o último aniversário e Natal que lhe compro bonecas. Ai!)

terça-feira, 4 de novembro de 2014

À espera de Isaura

Photomaton dentro do útero. Maravilhoso mundo novo powered by Ecox4d

A conversa paralisou-me momentaneamente.

Gaguejei e tive que pigarrear para aclarar a voz e recuperar o tino às cordas vocais, que bambolearam de fraqueza como quem vai ter um chilique. Sou capaz de jurar que fiquei com epiderme de galináceo, causada por um tremor de frio inexplicável num dia de Outono com 30 graus. E soubesse eu onde pára o meu comprimido estômago, espartilhado por um útero T4, teria sentido traças a trincarem-me as entranhas com satisfação.

Pela primeira vez nesta gravidez levei um bofetão da realidade e de um quadro menos cor-de-rosa.

Sabia, desde o meu ar de pânico a olhar para uma tirinha de plástico branco, com duas riscas cor-de-rosa verticais que me indicavam a presença da hormona beta HCG no meu primeiro xixi da manhã, que esta era uma gravidez de risco: o mito da cesariana número quatro, a imprudência de engravidar nem dez meses depois do bebé número três ter sido arrancado da barriga através de um bisturi num hospital finório de Lisboa, fizeram-me entrar num túnel de terror de onde só, muitas semanas mais tarde, consegui sair à base de estatísticas e estudos sobre os reais riscos associados a múltiplos partos por cesariana.

Mas, até agora, à parte esse primeiro capítulo traumático e os enjoos épicos até ao quarto mês de gestação, que tenho para mim que foram uma espécie de castigo por não ter abraçado esta gravidez logo desde o primeiro momento, optando por uma espécie de uma atitude de negação passiva-agressiva de assobiar para o lado a ver se passa, senti que ganhara super-poderes com esta menina e com os nossos dois corações a baterem em uníssono numa cumplicidade nunca antes sentida.

Certo é que tenho a pele da cara idêntica à de uma adolescente com as hormonas em total desvario, mas esse é o único senão de uma gravidez sem azia, sem inchaços, sem hipertensão, sem diabetes, sem dor ciática, e com um ganho de peso, às 34 semanas de gestação, de apenas 3,5 quilos.

Esta é a gravidez mais próxima do tão falado 'estado de graça'. E eu posso até dizer à bruta que odeio estar grávida - lamento a honestidade gritante mas é verdade -, que odeio o carrossel da flutuação de humores, do sono e do cansaço perfeitamente merecidos de quem está a gerar uma vida, do centro de gravidade totalmente alterado a cada dia que passa, das constantes provações e privações durante nove meses, mas a verdade é que sinto já uma melancolia tremenda de saber que esta viagem acaba daqui a pouco e que nunca mais se repetirá na minha vida.

Por isso, quando o médico muito moreno e de sorriso muito doce, que arrancou os meus filhos dentro de mim, me disse que as coisas estavam a evoluir menos bem, que a minha placenta estava no sítio errado e onde não poderia continuar a estar, sem o sobressalto constante e eminente de um trabalho de parto prematuro, eu fiquei estarrecida.

Sinto que esta é uma filha invencível, protegida por várias fadas-madrinhas, que a guiarão sempre para o resto da sua vida. É uma menina que quis vir com toda a força do mundo, revirando o nosso ao contrário, numa supresa e espantos que apenas quem já presenciou algo muito forte e luminoso como um milagre pode entender.

Apesar de já ter aceite a possibilidade de a poder vir a conhecer um pouco mais cedo do que estava inicialmente previsto - previsto por quem? mas alguma coisa foi prevista nesta gravidez? - acredito então que tudo correrá pelo melhor. Que poderei até fazer as piadolas de ter tantos filhos (três!) a nascerem no último mês do ano, o do Natal.

Estou, portanto, quietinha.
À espera de Isaura.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

As manhãs

Quando eu crescer vou fazer campanhas para o Calvin Klein. Não são só as miúdas que rebentam a escala nesta casa.
Foto: Pai João
As rotinas já estão domesticadas, mas ainda não estão devidamente amestradas como se assistíssemos despreocupadamente a uma coreografia de natação sincronizada, sem pensar no esforço e trabalho que aquele bailado todo deve ter dado a preparar.

Apesar de já termos mandado às calendas uma folha do calendário desde que o ano lectivo nos escanacarou a porta, deixando tudo em pantanas, a máquina ainda não está devidamente afinada. Mas para lá caminha.

O dia começa cedo. Começaria sempre cedo, de qualquer forma, mas a minha bexiga de grávida está sincronizada com o passarinho que começa a cantar às quatro da madrugada. O Outono chegou de mansinho e sem com ele trazer o cair das folhas ou, pelo menos, a paleta de ocres e amarelos com que pinta o quadro da realidade. O passarinho talvez esteja feliz por isso; talvez seja essa a sua inspiração matinal, ainda o raiar do dia vem tão longe. Sinto, porém, a mais melancólica de todas as estações do ano a instalar-se através da alteração de comportamento dos meus gatos: a forma como se alapam à molhada indistinta de pelos e bigodes, aos pés da cama, grita toda ela Outono.

O passarinho canta, eu levanto-me, são quatro ou cinco passos até à casa-de-banho, e o Verão já cá não mora: não tropeço em gatos solidários com a bexiga alheia - deixam-se estar quentinhos como botijas ronronantes e dali não saem, dali ninguém os tira.

Duas horas e picos depois toca o telefone; escolhi uma melodiazita que me lembra percussões africanas. Era o mais sereno que se podia encontrar do cardápio de alternativas que me apresentava o Window Phone para despertar (no Blackberry tinha um gongo chinês para acordar mais zen).

Hei-de deixá-lo tocar a lenga-lenga mais duas vezes, mas apenas duas: à terceira é hora de fazer uma impressionante rotação de uma barriga que desafia todas as leis da gravidade e acender a luz da cabeceira. O pássaro das quatro da matina já não se ouve; deve ter enchido a barriga de minhocas e agora anda por outros voos.

O trio felino desta vez acompanha-me sincronizado até à casa-de-banho. Mas não o faz abnegadamente. Amor desinteressado é coisa de cão e esse dorme debaixo da cama até a meio da manhã - noutra vida foi jornalista.

A Farrusca e a Manga miam desalmadamente atrás de mim; o Pi põe-se em duas patas e dá-me turras nos joelhos. O anúncio blábláblá Whiskas saquetas impõe-se. Os gatos são os primeiros a reclamar a minha atenção matinal. E o meu cérebro começa a aquecer no momento em que divido duas saquetas por três gamelas, transformando-me numa calculadora e balança humanas.

Gamelas no chão.
Próximo!

Toda manhã é cronometrada com precisão de relógio suíço.
Levanto-me. Dou comida aos gatos. Acordo a Carolina.
Antes de entrar nesta idade da arca da velha (o armário é a peça de mobiliário que se segue) bastava abrir a luz e dizer 'bom dia filha' para que instantaneamente se levantasse, hirta como uma tábua, e com os fusíveis em piloto automático. Agora tudo mudou e, se calhar, também já é à terceira que a consigo despertar; não sei: hei-de estar mais atenta para ver se também é sensível à força fatalista deste número.

Volto à cozinha. Por esta altura a pequena Farrusca já está a dar conta das gamelas dos seus companheiros. Eles cedem-lhe o respasto sem refilar, como qualquer pai faz a um filho, mas por vezes eu chateio-me com a voracidade da amostra de gata que nos calhou na rifa e ponho o gato Pi, que está velhote, a comer à parte, e em paz longe da alimária da gatinha bebé.

Preparo o pequeno-almoço à filha mais velha. São umas bombas de chocolate em forma de pirâmide, de marca branca. Ela é tão profundamente adicta ao produto em causa que nunca tenho forças para enfrentar uma tempestade de privação de açúcar refinado logo às primeiras horas da manhã, sugerindo um menu alternativo. Isso fica para um dia destes; há demasiadas mudanças a ocorrer na sua vida de pré-aborrescente, a semana passada comprámos um soutien, por isso, nem pensar mudar-lhe agora os cereais do pequeno-almoço!

Há-de passar na SIC Notícias o trânsito na VCI e mais tarde a meteorologia, entre notícias mais ou menos importantes.

Tic-Tac-Tic-Tac, o espectáculo tem que continuar (ou é uma bomba-relógio em contagem decrescente?)

Há trabalho de casa obrigatório na véspera: roupas escolhidas a dedo (a piorseira e o pendant obrigatórios funcionam muito melhor no dia anterior), alinhadas aos pés da cama, à espera que corpinhos quentinhos e preguiçosos mergulhem para dentro delas.

Ainda não atingi a perfeição de deixar a mesa preparada para o pequeno-almoço. Um dia hei-de lá chegar. Ou talvez não. Sem pressões. Já há demasiadas pressões e no início do dia eu ainda tenho certezas que sou uma mulher-maravilha que deixa o seu Homem Aranha dormir mais um bocadinho o seu sono de beleza.

O António é o menino que se segue na perfeita linha de montagem desta família. Sento-me na cama ao seu lado, dispo-o e visto-o a dormir. Os homens cá de casa têm sono pesado. Pode cair o Carmo e depois a Trindade que eles continuam angelicais, colados à almofada sem resmungos, apenas desmaiados e inertes.

A certa altura tenho que o chocalhar. E enchê-lo de beijos. Ele há-de dizer alguma coisa muito melosa, como eu sou a mais linda, ou como me ama. Casa-de-banho com ele, o copo de leite e o Manhazitos já estão na mesa à sua espera e sei que, depois de lavar a cara e fazer xixi, vai mudar das notícias para o Cartoon Network, ainda que saiba que não o pode fazer.

O pai é o terceiro a acordar. O tamanho da minha barriga de oito meses não me permite alcançar a minha filha na sua cama de grades fixa. É ao pai, acabadinho de se levantar, que entrego a tarefa de preparar a benjamim deliciosa, uma bonequinha de porcelana morena.

A Aurora tem um acordar doce e feliz. Sigo aquele momento de profunda intimidade entre pai e filha à distância, da cozinha, enquanto chocalho o pó da papa láctea com um garfo e a alquimia acontece transformando leite numa argamassa a que me é difícil resistir. Enche-me a alma ouvi-los de longe. Mas talvez esteja na hora de dar o primeiro berro do dia, porque a Carolina ainda não se calçou, ou o António ainda não tocou no copo do leite.

Ultimamente há uma nova fase da manhã e que dá pelo nome finório de pediculose ou, se preferirem, pelo nome foleiro e preconceituoso de "piolhos". Passo as três cabecinhas a pente fino. Literalmente a pente fino. A expressão ganhou uma nova dimensão para mim.

Hoje, passadas umas boas três semanas de ausência, vamos voltar ao ataque. Acabaram-se todas as vias do diálogo; isto é uma declaração de guerra. Logo à noite vou fumigar preventivamente com champôs caríssimos e com cheiro a talco. Um dia declararei extinta esta raça que teimosamente teima em reaparecer. Espero que sim. Que não seja como o raio das baratas que vivem na Bimby (finórias de um raio).

Entretanto já estamos atrasados.

Mochilas às costas, casacos, bibes e brinquedos da praxe pendurados nos braços. A Carolina vai esquecer-se do cartão da escola e da luz do quarto acesa. Vai ser um corropio até alinhar tudo e todos no elevador. Cá em baixo há que  encaixar crianças em cadeirinhas e apertar cintos. Dispor depois toda a parefernália que acompanha a comitiva no pouco espaço que resta do minimonovolume que há uma década para cá nos acompanha para todo o lado com algumas marcas do tempo e da azelhice de um marido que tirou a carta aos 35 anos. São as suas rugas. Ou as suas dores de crescimento. Calha-nos a todos.

O motor arranca. Marcha-atrás, e depois a primeira a fundo porque a subida é bastante íngreme. Vários atalhos e caminhos secretos se o trânsito estiver inexplicavelmente compacto na Avenida de Roma.

Às nove da manhã está tudo despachado e eu regresso a casa (ou, geralmente, ao trabalho). Suspiro. Tomo um café e como um pão com manteiga.
Vem aí o resto do dia, mas este momento de regozijo pela tarefa cumprida ninguém mo tira.

Daqui a quatro semanas a rotina muda de novo e drasticamente. E este relato será como uma memória longínqua... Como nos tempos em que a minha mãe me acordava, ligando-me pelas 10h00, e a manhã começava lá para o meio-dia numa redacção de um jornal diário...

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

As "músicas-madrinhas" dos meus filhos

Perco muito tempo das nove luas que o meu ventre conta agora, pacientemente, pela quarta vez, a interpretar sinais praticamente invisíveis à vista mais desatatenta, a farejar o ar como um cão perdigueiro à procura de um rasto praticamente indelével, a guiar-me por um qualquer campo magnético que faz girar a terra e que, mais cedo ou mais tarde, me leva direitinha à música que foi feita à medida de cada um dos meus filhos.
Foi assim que cheguei ao fado de Carolina, do Chico Buarque, vaticinando que a minha primogénita traria nela e nos seus olhos azuis todas as dores e também todo o amor do mundo. (e eu serei sempre a voz que lhe diz que o mundo anda lá fora e que ela o poderá ter a seus pés se abrir a janela).



Rodrigo Leão e Ryuichi Sakamoto foram a minha companhia e do António nas longas viagens até Belém, quando a vida me atirou para um museu de arte moderna e contemporânea, no rescaldo daquela que foi a maior perda da minha vida: um filho que não vi nascer.
E foi ao som de um piano sereno, que me lembrava as águas calmas da piscina da minha infância, onde tantas vezes lavei a alma sob o olhar atento de uma lua mentirosa, que consegui sarar a enorme ferida que trazia aberta, e protegi e abracei o António meses a fio, em modo contínuo, repeat one, pelas ruas de Lisboa, na certeza que tudo correria então pelo melhor.
O Tejo ora do meu lado esquerdo, ora do meu lado direito, a furar engarrafamentos como quem fura a cobertura de chantili de um bolo de aniversário, camionetas de turistas asiáticos com poderosas máquinas fotográficas digitais do outro lado do vidro, enquadrados pelo som de uma canção de embalar que fez do meu rapaz a criatura mais leve do mundo e desta família.


A Aurora foi a luz brilhante que clareou tudo como um relâmpago que nos acordou de repente, que nos pôs no trilho certo, como um aviso à navegação que nos sobressalta porque só assim é possível retomar as rédeas do destino.
Ela cobriu as nossas vidas como um manto branco que espantou o medo do escuro, um temor infantil que trazíamos entranhado na pele, por todo o lado, despojados de grandes esperanças, deixados levar por um país trespassado por um resgate cruel, paralisado por uma crise selvagem. 
Ela é a luz das nossas vidas; ela é a possibilidade de tudo o que queiramos para futuro - e é por este seu condão que a sua "canção-madrinha" é Daylight and the Sun, de Antony and the Johnsons.


A Isaura esteve muitos meses sem nome, demasiados, ou talvez precisamente a conta certa para chegarmos à escolha de um nome que não agrada a todos mas que é a mais abençoada (quase consigo ver a minha avó a sorrir-lhe, sentada no seu cadeirão de couro, a rebentar de orgulho pela mulher que sou apesar dos desaires para os quais fui arrastada e tantos outros para onde me meti deliberadamente e sabendo bem ao que ia). 
Há muito, porém, que lhe escolhi a música. Tudo o que eu desejo para a minha filha-milagre, para a minha filha linda, bem-amada, está na canção "Menina da Lua", do compositor mineiro Renato Motha, aqui interpretada por Maria Rita. 



segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Fumo branco! Habemus nomen!

A Aurora quer-vos contar um segredo: o sofrimento de ter uma irmã anónima acabou. Sim, acabou! A partir de hoje, não vamos mais ficar encabelados, deprimidos, corados e, sobretudo, mudos, quando, a torto e a direito, esquina sim, esquina não, todo e qualquer ser humano que se depara com a proeminente barriga pergunta, natural e inocentemente : 'E como se vai chamar o bebé?'

A minha irmã mais nova vai chamar-se Isaura.

(Como a minha bisavó paterna que, um dia, lá pelos anos 30 do século passado, pouco tempo antes de se apaixonar por um rapaz com um apelido esquisito nos corredores da Faculdade de Farmácia, picou o olho numa roseira de uma quinta senhorial do Barreiro, para onde ia ver os golfinhos a saltar felizes pelo Tejo. Mas isso há-de ser para outra história.)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Ontem à noite...

Não quero ir à escola. Eu tenho uma doenxa!!!

As noites têm sido chorosas, por tudo e por nada diz que nunca mais me faz olhos de bambi se não lhe fizer as vontades todas. Amua, choraminga, pede colo e mimo. Ontem à noite, lágrimas gordas, agarrado a um peluche da irmã mais nova:

- Mãe, amanhã não quero ir para o primeiro ano!!!
- Filho, mas porquê, meu anjo? Vais aprender as letras, a contar até a um milhão...

Com voz de falsete, e sotaque de ogre Shreck:

- É que eu tenho uma doenxa!!!


(ai)

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Mudam-se os tempos... mudam-se as mochilas do primeiro dia de aulas...

[Fixem o meu nome, parece ela dizer ao mundo]

Mudam-se os tempos mudam-se as mochilas e aquilo que lá vai dentro para o primeiro dia de aulas.

Hoje foi a vez da mais velha se estrear no sexto ano (este ano há exames nacionais outra vez...). Regresso às aulas molhado (e espero que seja como nos casamentos e que, pelo menos, abençoe todas as crianças neste novo ano lectivo que agora começa) e as mochilas dos meus filhos este ano têm menos cheirinho a novo.

Revimos na fila de trânsito interminável que, inexplicavelmente, se forma a qualquer hora da manhã ao longo da Avenida de Roma (e um percurso de dois minutos passa a demorar 15 ou mais apenas porque sim, sem qualquer explicação racional ou lógica), o que NÃO vai e NÃO pode acontecer este ano lectivo.

A lista de "nãos" que fui enumerando com a força anímica das férias a ser sugada pelas bátegas de chuva que caíam no pára-brisas (entretanto, a nossa carrinha de sete lugares, a única na qual poderemos seguir todos daqui a um par de meses entrou em negação com as partidas de mau-gosto de São Pedro e o pára-brisas deixou de funcionar) inclui:

"Não me vais trazer recados na caderneta dos professoras ou da DT; não vais arranjar sarilhos picuinhas com as tuas amigas e dramas imbecis; não me vais perder casacos, guarda-chuvas e equipamento da ginástica por puro desleixo; não me vais extraviar o cartão da escola à razão de três vezes por semana; não te vais atrever a andar com folhas do dossiê rasgadas, dobradas e escritas com uma letra garrafal inexplicável; não me vais esconder o lanche que não comeste na escrivaninha..."


E preparava-me para continuar na minha lista de nãos quando me lembrei da psicologia positiva, e tentei inverter o discurso e mudar de faixa ao mesmo tempo para não chegarmos atrasados para o primeiro dia de aulas. Respirei fundo e declarei: "Vais fazer tudo como deve ser, tenho a certeza. Este ano vai correr muito bem; vais entrar com o pé direito!"

Deixo-a à porta da escola - já não fico ali a dizer adeus e de lágrima ao canto do olho (essa lamechice acabou o ano passado; correria o risco de a envergonhar perante os pares, para mais com aquela manada de irmãos mais novos, que aos 10/ 11 anos têm sempre o condão de ser irritantes por mais adoráveis que sejam).

Pela primeira vez não tive nada a ver com a roupa do primeiro dia de aulas da minha filha mais velha. Nunca teria escolhido a tee shirt pindérica da Violetta, as calças de ganga pingonas, os ténis da Nike. Ontem à noite pediu-me para lhe fazer caracóis e foi a minha única intervenção no seu primeiro dia de aulas do sexto ano de escolaridade. Dividi o couro cabeludo em madeixas, torci-as, e enrolei-as nuns papelotes improvisados com elásticos coloridos que lhe deram um colorido afro ao visual.Acho que anda com inveja dos caracóis da Aurora, tão gabados como a cor dos seus olhos. E, por isso, dormiu com a cabeça cheia de puxinhos a noite toda - já tem idade suficiente para saber que mulher bonita não tem frio, dores nos pés e passa por alguns desconfortos abnegadamente sem queixume - e hoje tinha o desejado penteado que seria o seu uau factor do primeiro dia de aulas. Deixou-me pôr-lhe uma fita no cabelo, concordou com a sugestão. Resumo-me à minha insignificância.

A semana passada também me deu dores de crescimento. Pediu, ainda que com jeitinho, para que parasse de lhe comprar roupa de criança, com folhinhos e rendinhas; que agora teria as bebés (a pequenina inclusa continua anónima) para acalmar os meus fervores de piroseira pura. Andámos depois à caça de uma saia de tule para usar com botas da tropa rosa shock (encontrámo-la a muito bom preço, ainda em saldos, na Vertbaudet) e o mais temido momento da compra do primeiro soutien está também ao virar da esquina, mas vai ficar para mais tarde, pois o meu pobre coração de mãe de quatro não aguenta isto tudo ao mesmo tempo.

Mas este ano as compras do regresso às aulas foram mesmo muito limitadas. Não gastei mais do que vinte euros nos dois filhos em escolaridade obrigatória. A Carolina nasceu em tempos de vacas gordas, foi filha única anos a fio, e é certamente quem mais está a estranhar esta nova realidade do estica, reutiliza, poupa, passa de irmão para irmão.

O meu querido António leva para o seu primeiro ano de doze de escolaridade uma mochila e estojos usados nos anos anteriores do pré-escolar; os lápis de cor eram da irmã; os de carvão também (o que não falta lá por casa são dezenas e dezenas de lápis e canetas), novo novo só mesmo o caderno diário (o dossiê e capa do colégio também eram da irmã, assim como o fato de treino e tee shirts da farda - eles ainda não lêem, por isso, ainda tenho uns meses para retirar o bordado 'Carolina Ralha' para 'António Ralha'), os lápis de cera e a borracha.

A Carolina continua a ter privilégios de primogénita mimada e a avó materna comprou-lhe mochila e estojo novos a fazer pendant. Há um dossiê, três canetas Bic básicas, dois lápis de carvão e uma borracha novos, mas lápis de cor, canetas de feltro, esquadros, réguas, compassos, transferidores é tudo reaproveitado do ano passado. Não aderimos ainda aos livros em segunda mão (para já) e, por mais apertado que esteja o orçamento, de uma coisa não abdicamos: fazemos as compras do regresso às aulas na papelaria do bairro; é lá que encomendamos os livros escolares com os mesmos dez por cento de desconto que as gigantescas cadeias revertem em talão ou em cartão. Gastamos mais um euro ou outro na meia dúzia de coisa que comprámos novas, mas temos ali uma amiga e garantimos dois postos de trabalho.

Mudam-se os tempos, mudam-se as mochilas... vamos lá ver que mais mudanças nos vão bater à porta...