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quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Um verão “aborrescente”

Texto original em: http://visao.sapo.pt/opiniao/bolsa-de-especialistas/2016-08-18-Um-verao-aborrescente

Será chuva? Será vento? Fui ver: era a "aborrescência"!
Aconteceu, está a acontecer neste preciso momento.
Eu posso até negar a evidência, como o pior cego de que há memória, apregoar aos ventos que os trinta e muitos quase “entas” são melhores que os sôfregos e angustiantes vintes, conceder, ao espelho, que os deuses têm sido bons comigo e ainda não tenho quase rugas (nós as gordas temos essa bênção; nem tudo é mau no reino fofo do excesso de peso), esquecer que pinto o cabelo de três em três semanas para cobrir teimosos fios brancos, obrigando-me a doar a contragosto um dízimo inflexível às multinacionais de cosmética que me garantem que eu mereço, mas está a acontecer: eu estou a envelhecer.

Se não fossem as quatro crianças que trouxe ao mundo, e que crescem contra o meu desejo e a um ritmo seguramente superior ao das folhas imaginárias do calendário da agenda do meu telemóvel, até era capaz de nem dar por isso, e de descurar todos os outros (tantos) sinais exteriores e interiores da passagem do tempo.

Este é o meu primeiro verão com uma “aborrescente” na segunda fila de bancos do meu carro de proporções numerosas (agradecida ao Fisco pelo desconto de 50 por cento no ISV no meu veículo romeno, mas completamente atónita com o IMI agravado com a exposição solar).
Deve ter vindo escondida na bagageira da mala de tejadilho, juntamente com toda a parafernália das férias grandes, mas juro que não estava na lista mais ou menos trapalhona que preparei para sair de abalada para as merecidas férias.

No início do Verão chegou a Collie mimada. E depois apareceu a melan[coli]a da adolescência
Não estava à espera disto tão cedo, e muito menos no Verão: vim emparedada entre fraldas, carrinhos de bebé, malgas e trelas de cão (as férias são obviamente com TODA a família, incluindo a de quatro patas), quatro malas minimalistas de companhia aérea low-cost com roupas para seis corpos durante três semanas (não viemos passar modelos, viemos para o campo, para a casa da “terra”), mas não contava trazer uma adolescente cheia de manias e suspiros comigo.

Quando engravidei aos 24 anos da minha primogénita, idealizei uma fantasia muito vívida: no futuro, que é hoje o presente, eu seria uma “irmãe”, uma tipa muito nova, muito porreira e descontraída, conivente com todos os caprichos insondáveis da piroseira cor-de-rosa do cromossoma xis. Como justa recompensa, teria o lugar incontestável de melhor amiga da minha filha, a pessoa mais especial de todo o universo e mais além, com quem ela partilharia todas as suas inquietações, dúvidas e angústias existenciais, eu seria uma espécie de alma gémea (nem menos seria exigível, a quem cresceu no meu ventre e foi parte de mim durante nove meses), para quem não há segredos, apenas confidências sobre todos os amores arrebatadores e paixonetas patéticas, e todas as primeiras vezes que estão a acontecer em fast forward.

Só que nada disso aconteceu, e a realidade, essa grande sacana, pariu uma mãe igualzinha a todas as outras: cafona, irritante, implicante, castradora, tal e qual como… a minha mãe!
Filho és, pai serás…

Regressou temporariamente do darkside: deixa lá registar isto em JPEG!

E eis que, quando devia andar eu a banhos e a pôr a leitura em dia, se dá o impensável, e me salta inadvertidamente a minha mãe da minha boca para fora, a todo o instante, como numa possessão demoníaca. Oiço-a distintivamente na sua altivez canalha, quando vomito frases do género: “na tua idade ainda brincava com bonecas”; “não vais assim despida para a rua”; “vai já lavar a cara – estás ridícula assim pintada”.

Sou a rainha dos sermões, dos castigos, das lições de vida. Tenho, como uma adolescente esquizofrénica, certezas absolutas sobre tudo e preocupantes flutuações de humor. Quem sou eu? No que me estou a transformar? Mas afinal, quem é aqui o adolescente?

De repente, tenho a vida toda do avesso, e a minha querida filha, que ainda ontem nasceu, revirando também com esse evento toda a minha existência diletante, e carimbando-me à força o passaporte para a idade adulta, dá-me água pelo bico: fecha-me na cara a porta do quarto quando estou a dizer qualquer coisa que era importante, revira-me os olhos mesmo quando eu não estou em modo de ditador, e já não sou a mamã,  sou a mãe.

Com esse novo estatuto, mais distante e explosivo vêm obrigações e calvários, como trocar a TSF pela RFM, e acumular sabedoria sobre as vidas pessoais e a carreira da Ariana Grande e do Charlie Puth em doses tão cavalares, que só me serão um dia proveitosas se, por um estranho acaso deste mundo louco, fosse seleccionada para um quizz surrealista sobre estes dois cantores pelos quais tanto suspira a minha rapariga.

Focus, Focus on Me, canta a Ariana Grande!

O primeiro filho é a maior revolução da vida de um pai. Chamo-lhe a minha “filha test-drive”, denominação que acrescentei ao meu léxico de parentalidade depois de a ouvir da sabedoria serena de uma grande amiga, também ela mãe de quatro (e somos cada vez mais, os pais de quatro: parabéns aos meus amigos Mafalda e Abílio). Não faço ideia se estou a fazer bem ou se estou a fazer mal. Gostava de fazer diferente, mas nem isso tenho a certeza de estar a conseguir. Debato-me diariamente com a dúvida de quantos anos de psicoterapia terei de assegurar, pelos meus actos e omissões.

Agora aproveito o palco, e vou eu ao divã, se me dão licença: é que tenho saudades da minha primeira filha antes da adolescência súbita que bateu à nossa porta.

Na minha memória de curto prazo (que não foi tão severamente afectada pelas quatro epidurais a que me sujeitei para os parir), ainda a tenho tão pequenina, no meu regaço, indefesa, mas integralmente protegida por mim, uma espécie de mãe amazona. Nesta dúzia de anos em que tenho o privilégio de a ter como filha, como a minha primeira filha, inchei de orgulho e admiração por um ser tão perfeito e belo, desconhecedora do que era sofrer para lá de um joelho esfolado, ou de uma palmada no rabo para sacudir o pó e repor o respeitinho e a ordem.

Não há mais vestidos no guarda-roupa. E já não há numeros nas lojas de criança.
Mas agora ela tem umas pernas muito grandes e desengonçadas, ja não veste na Zippy e muito menos concede usar um vestido, nem sequer aos domingos: o que ela quer é sapatilhas da moda e romarias à Bershka. Com alguma acne simbólica chegou também a melancolia de uma primeira infância que fica para trás a cada minuto que passa. Pelo menos já me foi concedida essa epifania: percebo que isto é brutalmente mais doloroso para ela do que para mim. O que não quer dizer que não tenha também as minhas dores de crescimento.

Sei que vamos sobreviver, mas que vai haver turbulência, alta tensão e pontualmente decibéis acima do aconselhável. Birras e finca-pés. Lágrimas e rebeldia. Mas, quem sabe, um dia, chegarei perto do estereótipo idílico que sonhei: a filha da mãe, inseparáveis e cúmplices, como éramos até há tão pouco tempo.

Lembro-me agora de algo que me diziam amiúde, e que me tirava instantaneamente do sério, quando começaram as guerras da pespinetice adolescente lá por casa (ainda ontem também  eu era uma adolescente  rebelde), com violentas discussões com a minha mãe, ao colo da qual voltei de mansinho quando cheguei aos vinte, depois de um afastamento que quase soou a repelência durante quase meia dúzia de anos terríveis: “Vocês andam as duas às turras porque são farinha do mesmo saco: tal mãe, tal filha.”

Espero que a história também aqui se repita.

Mãe é mãe. Não há cá "irmães".

Por enquanto, nestes dias de férias, em que tudo é uma seca, em que a obrigamos a ouvir música de velhos (ouviu Simon & Garfunkel noutro dia, na Comercial, e concedeu que essa música de velhos era fixe – o fantasma do meu Natal passado fez-me recordar que senti o mesmo quando os meus pais me deram a ouvir o “Sound of Silence”), em que nem o facto de eu ter ido ao “Monster” com ela na Feira de São Mateus rodopiar em loopings assombrosos que me revolveram o estômago e me puseram na fronteira do ataque de pânico  (mais um sinal óbvio de que estou a envelhecer…) foi proeza suficiente para voltar a ser a sua mãe querida e adorada, apercebo-me de que, agora, é tempo de a deixar descobrir quem ela é sem grandes intervenções, limitar-me a assistir, de forma mais ou menos passiva, em quem ela se transformará, orientando apenas de forma muito subliminar qualquer tentativa de moldar o curso dos eventos (mãe é mãe e sei que vai ser mais forte que eu – mais outra epifania).

Isso e estar preparada para aumentar o volume de cabelos brancos, nesta viagem alucinante que nos chegou nas férias do verão (era só suposto desfraldar as bebés e introduzir a cadelita recém-adoptada também no controlo dos esfíncteres).

E, agora, boas férias! Para quem é pai e mãe (sobretudo de adolescentes), o código do trabalho devia conceder dois ou três dias de bonificação para recuperação: férias das férias!

terça-feira, 24 de maio de 2016

O milagre dos irmãos - a carta que eu não escrevi

*Texto original publicado no Jornal de Notícias de 24 de Maio

Isaurinha, acorda: a mana está aqui!

Gostava de ter escrito, em jovem, uma carta para mim, em adulta, à beira dos quarenta, e de juntá-la assim à bola de neve de balanços, crises e dores de crescimento que aparecem por esta idade.
Queria ter adoptado tiques e rituais importados da América, como nos filmes e na televisão, preservando, intacta e esquecida num lugar seguro e secreto, uma cápsula do tempo, reluzente de sonhos, a abarrotar de planos, amontoando cartografias de caminhos cheios de possibilidades, mas também cheios de certezas absolutas sobre tudo e mais alguma coisa. Gostava de ter parado um instante, de ter paralisado um instante da minha vida, e de me ter dedicado ao acto solene de escrever-me. Do presente até ao futuro, de uma estranha para outra estranha (e só a escrita tem esse poder, de inscrever um destino daqui até à eternidade).Não o fiz. Só posso perder-me em suposições e guardar a gargalhada que soltaria (e também um embaraço) a ler essa carta imaginada. Sei hoje que nunca poderia imaginar o que estava prestes a acontecer-me, o que a vida me tinha reservado. Nem em sonhos. Segui sem rede e na corda bamba — é sempre assim.

Não há manhãs cizentas em nossa casa

E aconteceu sem um aviso ou premonição: a vida fez de mim mãe de quatro filhos, de quatro irmãos, que crescem (rápido de mais), lado a lado, ruidosa e desarrumadamente, entre cumplicidades e rivalidades, companheirismo e invejas, gargalhadas e birras, panelinhas e queixinhas, acusações e entreajuda, drama e leveza.É uma montanha-russa. Mas é bonito demais. É um quadro perfeito, apesar das pinceladas aleatórias. A tal carta que gostaria de ter escrito nunca o poderia ter pintado, nenhumas palavras conseguem descrever a fortuna de poder assistir à magia dos quatro irmãos que, partilhando algumas semelhanças entre si, são tão únicos e diferentes uns dos outros, ao ponto de, às vezes, me questionar se são realmente  filhos dos mesmos pais.
Hoje, sabe-me a pouco ter apenas quatro filhos, mas em jovem, debaixo de uma carapaça de modernidade, glamour (outra vez Hollywood), e uma certa militância por uma independência feminista um tanto ou quanto bacoca, teria alvitrado que este que é o meu destino seria menor. E não poderia estar mais enganada.

Sou feminista. E mãe de quatro.
Hoje sei, também, que, pontualmente, ao longo da vida, temos momentos determinantes, que podem mudar o curso do futuro. Pode ser um golpe de sorte, pode ser um acaso ou uma coincidência, pode ser uma pessoa que se atravessa no nosso caminho, um estranho ou um amigo próximo que esteve sempre disponível em todas as horas, as boas e as más, pode ser uma clarividência divina, ou uma epifania vinda de dentro de nós. Assume todas as formas. Cabe-nos em poucos segundos ter a clarividência de perceber o que está a acontecer, fazer uma escolha e continuar a navegar.Quando soube que esperava o meu quarto filho, a minha preciosa Isaura, senti que o chão firme que pisava me engolia sem contemplações. Acabara de fazer uma terceira cesariana, e tinha a Aurora ainda a mamar. Regressara ao trabalho há pouco mais de dois meses, e estava de novo grávida, numa gestação de altíssimo risco, com uma mão-cheia de probabilidades de as coisas correrem muito mal.Uma mãe — acho — dá sempre o corpo às balas por um filho e o risco para a minha saúde não foi o que me paralisou. Tropecei, sem querer, para  dentro de uma espiral de pânico, e teimei que a Aurora odiaria este bebé, esta irmã surpresa e milagre, que chegara sem ter sido chamada, e que lhe roubaria o colo com ela tão pequenina.
Dei o corpo às balas, mas tenho um escudo poderoso
Dramatizei (outra vez os filmes) e levei ao extremo uma angústia irracional de duas irmãs quase gémeas, inimigas e rivais desde a nascença, até que se deu o tal advento determinante que mudou o curso da minha vida: uma psicóloga do Hospital de Santa Maria foi o meu garrote e estancou a minha insanidade temporária. Disse: “Elas vão ser as melhores amigas. Para toda a vida. Este é o melhor presente que lhes vai dar, e os mais velhos vão sempre protegê-las. Vai haver tanta alegria na sua casa; está na hora de parar de chorar.”

Foi a 29 de Abril de 2014. A médica chama-se Sofia Coimbra e nunca mais a vi. Mas todos os dias assisto incrédula ao milagre dos irmãos, e agradeço o nosso fabuloso destino.

Ninguém roubou o colo a ninguém. O colo da mãe não tem fim.
Não escrevi a tal carta, mas agora redimo-me, e conto-vos como é a magia dos irmãos, subscrevendo a petição pela criação do Dia Nacional dos Irmãos.

Diana Leiria Ralha
Mãe dos irmãos Carolina, António, Aurora e Isaura

Um bem-haja ao José Ribeiro e Castro, mentor incansável para a criação do 'Dia dos Irmãos', que me deu a honra de poder integrar este projecto com o meu testemunho.



domingo, 14 de fevereiro de 2016

O quinto Orçamento do Estado ao qual vamos sobreviver...


IRS, IMT, IMI, IVA, ISP, IS: é a lócura!!! Mas ninguém taxa o amor multiplicado por seis cá de casa. Foto: Pau Storch

Dupliquei o tamanho da minha família — passando de dois para quatro filhos — durante a estadia da troika em Portugal.


No dia em que soube que estava grávida pela terceira vez, da minha filha Aurora (que ganhou este nome porque o futuro parecia sombrio, sem ponta de luz ao fundo do túnel no qual estava encurralada toda uma Nação), Pedro Passos Coelho anunciava, em conferência de imprensa, o aumento da TSU para os trabalhadores, para poder baixá-la para os patrões. Está inscrito no livro do bebé da minha filha: “Chorei a noite toda com medo do devir.”


A medida não vingou — milhares de portugueses foram para a rua protestar e, da nossa parte, até o cão vira-latas que resgatámos do abrigo desfilou —, mas o clima de inquietação manteve-se, vindo depois a confirmar-se o pior, com o “enorme aumento de impostos” de Vítor Gaspar, que nos pôs a todos a receber subsídio de férias e de Natal em duodécimos, mascarando assim o facto cristalino de que acabáramos de ter confiscados mais de dois salários, em impostos directos e indirectos.


Esta artimanha foi prática recorrente do anterior Governo: atirava-se para a praça pública ou para os media, em jeito de fuga de informação, uma medida estapafúrdia, para, depois, face ao clamor generalizado, se recuar ligeirissimamente, fazendo passar uma solução em tudo semelhante no seu impacto para os portugueses. A TSU e a sobretaxa de IRS abriram apenas quatro anos de hostilidades às quais os portugueses foram sujeitos..


Foi então ao nosso terceiro filho que tudo mudou — entrámos lá em casa em modo de sobrevivência. Primeiro chorei, aflita (permiti-me essa fraqueza momentânea) e, depois, enfrentei o touro pelos cornos. Não podia ser de outra forma.

Filha da Troika? Por aqui enfrentou-se a austeridade pelos cornos! FOTO: Pau Storch

Não cheguei a vender o ouro das avós, nas lojas de penhores que abriram nesse ano, a cada esquina (e que depois desapareceram como magia, quando já não havia mais anéis), mas recorri várias vezes ao OLX para vender uma série de parafernálias inúteis que tinha cá por casa, para compensar o défice estrutural que me foi imposto pelo Governo, com a sua dose cavalar de austeridade. Também comprei muita coisa que me fazia falta ao desbarato naquele site. E desmultipliquei-me em canais de Facebook de trocas, cupões e outras dicas de poupança.


Foi pelas minhas ausências prolongadas do café e da mercearia do bairro que vi pequenos negócios de família fecharem as suas portas, engrossando as estatísticas do desemprego. Por oposição, engrossei os lucros das grandes cadeias de distribuição, com as suas promoções imperdíveis de fraldas, de leite, do básico dos básicos. Essas cadeias, por sua vez, fizeram repercutir todos os 50 por cento em cartão de que usufruí nos produtores e fornecedores, na grande maioria das vezes esmagando-os. Também me passaram a cobrar os sacos e a impedir-me de pagar com cartão em compras inferiores a vinte euros.


Os meus filhos deixaram de ter pediatra privado — regressei ao serviço nacional de saúde, do qual me tinha afastado escudada por um seguro de saúde privado pago pela entidade empregadora, mas deixou de haver pão para as franquias altíssimas do mesmo. Encontrei uma equipa inexcedível — e também ela ceifada por cortes cegos — na Unidade de Saúde Familiar do Parque, em Lisboa, que devia ser notícia e exemplo da excelência nos cuidados de saúde primários em Portugal. Ali apercebi-me do verdadeiro significado do “médico de família”, pelo qual estou grata.


A minha mãe faz pelo menos três coisas impossíveis até ao pequeno-almoço. Esticar o orçamento e estas pinturas catitas incluídas. OTO: Pau Storch


A mais velha foi para a escola pública, intervencionada pelos milhões sem fim da Parque Escolar e, para além dos quadros interactivos e instalações luxuosas a lembrar um colégio privado, nunca teve professores por colocar, apesar de ter tido alguns das AECs dos tempos livres, pagos abaixo dos três euros à hora e a recibos verdes. Não obstante, numa interrupção lectiva da Páscoa, foi sugerida uma visita de estudo a Londres de uma semana, com o valor estimado de mil euros — dois salários mínimos nacionais. Outras realidades…

Fui também salva por uma notável IPSS, localizada há mais de cem anos num multicultural bairro de Lisboa, que garantiu resposta social para os meus filhos mais novos. A mensalidade de três creches equivale a uma renda de um T1 em Lisboa, sendo apenas suportável porque a avó desta família ofereceu uma casa sua, que ficou vaga pela Lei das Rendas, prescindindo desse rendimento para si. Se não fossem os avós deste país, não sei o que seria da minha geração…


Quando, ao terceiro filho, entrámos, modesta e timidamente, no lote das famílias numerosas, decidi, sem grande fé, submeter os papéis na segurança social para o abono de família. Tenho a cronologia de todas as maldades dos sucessivos Governos constitucionais bem guardada, para memória futura. Devemos a José Sócrates, e ao seu PEC III, o roubo do abono de família a milhares de crianças.

Para minha surpresa, ao terceiro filho, passei de imediato para o segundo escalão da segurança social. Queria isto dizer que estava oficialmente pobre, porque, em Portugal, só os pobres têm direito a abono de família, uma coisa verdadeiramente inexplicável e insólita num país com um Inverno demográfico de proporções glaciares, e sem oferta universal de cuidados na primeira infância (creches e berçários).

Cortes, impostos, taxas e taxinhas: Cortem-lhes a cabeça! Foto: Pau Storch
O quarto filho veio de surpresa um ano depois. Num acto de fé, agarrámo-nos ao provérbio que diz que “atrás de um filho vem o pão”. É certo que nunca mais houve contas de somar: apenas subtracções e divisões passaram a constar no meu léxico familiar. Nada nos faltou, porém: a economia do terceiro filho adensa-se ao quarto, e creio que seja assim a cada filho que a vida nos traz a mais dos nossos planos iniciais.


Passei a dominar com mestria todas as burocracias e caminhos labirínticos dos diversos serviços públicos — escolas, hospitais, segurança social, finanças e o que mais tiver de ser — e, tal e qual um douto catedrático da escola da vida, dou explicações à maioria dos meus amigos (e agora aqui nesta oportunidade que a Visão me deu), que têm uma iliteracia dos seus direitos e obrigações fiscais e laborais idêntica à minha antes de ter estes filhos todos.


SASE, IRS, IMI, IVA, IUC, IS, TSU: tantas siglas que passaram a fazer parte da minha vida!


A apresentação do Orçamento do Estado passou a ser, por força das circunstâncias, um momento-chave da nossa família: analisamo-lo pela lupa dos media, ao detalhe, e tentamos prever o seu impacto nas nossas vidas no ano que se seguirá.


O ano passado, a novidade era o quociente familiar. Ouvi: “Ah, agora é que vais receber dinheiro à grande do Fisco!” Os jornais não explicam as coisas como deve ser, e as pessoas acham que o Estado, o Fisco ou a segurança social dão o que quer que seja (roupa, livros, despensa cheia) a uma família com muitos filhos. E apesar de ter só quatro, a estatística revela-me que tenho mais do triplo dos filhos da média portuguesa, portanto: tenho muitos filhos.


O quociente familiar era-nos indiferente; para ter algum impacto, seria imprescindível que os salários da minha família não estivessem ao nível de há uma década. O meu agregado, tal como a esmagadora maioria dos agregados portugueses, com salários a rondar entre os 530 euros do salário mínimo (que não é alvo de qualquer desconto de IRS) e os 800 euros do salário médio, não faz grandes retenções em sede de IRS.

Eu fui a filha do tempo em que vivíamos acima das nossas possibilidades. Foto : Pau Storch
Ou seja, tudo o que descontamos/emprestamos ao Estado é devolvido no santificado reembolso de IRS, que é guardado para Setembro, para enfrentarmos sem angústias o famigerado início das aulas, e depois o que ainda resta aplica-se para o Natal (e para os aniversários dos três filhos que nasceram no mês do menino Jesus, fazendo cá em casa de Dezembro o mês da Natalidade), sobrando ainda qualquer coisita para pagar a revisão do (auto)carro de sete lugares e onze anos de vida.

Este ano caem os exames nacionais que a minha filha mais velha teve de fazer, e desaparece também o quociente familiar. Entra, em seu lugar, a dedução de 550 euros por filho. Passa a ideia de que o Estado me vai entregar 550 euros por cada filho. Dizem-me: “Este ano vais de férias!” Mais uma vez, propaganda enganosa, e totalmente indiferente ou marginal para quem tem salários baixos. De classe média-baixa.


Os filhos dos ricos valem sempre mais do que os filhos dos pobres. No quociente familiar valiam mais. Com esta medida valemos todos menos. Essa é a grande diferença entre as duas formas de cálculo. Maior justiça social?


Diz-me a imprensa — que por vezes é brutalmente contraditória nas análises efectuadas de título para título — que um português sem filhos e com rendimentos mensais de 1000 euros (essa fortuna!) pagará menos IRS do que um português com o mesmíssimo rendimento mas tendo um descendente a cargo. Por outro lado, pela voz da Associação das Famílias Numerosas, que, de acordo com esta nova medida do Governo que fez convergir todas as esquerdas, todos os rendimentos mensais superiores a 690 euros sofrerão um aumento real do imposto com a aplicação das deduções anunciadas de 550 euros por descendente.
Más notícias, não é?


Na imprensa nunca encontro simulações com mais de dois filhos a cargo; fico sem saber que impacto terá a medida… Sei que tenho de acrescentar ao histórico aumento de impostos de que se fala o aumento do ISP — mais uma sigla catita que vai encarecer tudo o que nos rodeia e não só o depósito do automóvel — e umas taxas e taxinhas na utilização dos cartões de pagamento electrónicos que se repercutirá sabemos nós bem em quem.


Não tenho ambições políticas, também não sou de esquerda, mas posso partilhar algumas dicas preciosas de multiplicação de um orçamento espartilhado e sujeito a cortes erráticos aos quais sou totalmente alheia. Já o faço para amigos, posso dar uma perninha ao primeiro-ministro, ao ministro das Finanças, ou ao secretário de Estado das Finanças.
A reposição do abono de família para TODAS as crianças portuguesas era um primeiro sinal de que tínhamos entrado num novo ciclo político, com políticas sérias de apoio às famílias e à natalidade. Com um valor máximo de 36,42 euros por mês (tabela de Fevereiro de 2016), um filho não chega a valer 437 euros anuais para o Estado — muito abaixo do falso valor anunciado.


O IRS negativo, do qual o PS andou a falar no final do ano passado e que não se viu plasmado no Orçamento, seria uma medida muito útil, bem mais útil que as 35 horas — acabavam-se os empréstimos sem juros ao Estado.


Mas isto digo eu, que sou uma das afortunadas desta crise. Sou da geração marmita, da geração dos sonhos adiados, de famílias reunidas ao serão pelo Skype, dos milhares de casas entregues ao banco, de penhoras selvagens aos salários por falta de pagamento de portagens de estradas concessionadas a lucrativas empresas privadas.

Mas fiz as minhas contas este ano e elas batem novamente certo: dupliquei o número de filhos durante a intervenção da troika em Portugal. Faço este caminho orçamental de 2016 com o meu marido e com os meus quatro filhos ao lado, e posso dizer, com confiança: este é o quinto orçamento de Estado inimigo das Famílias ao qual vou sobreviver.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Ano novo...

Quero a vida sempre assim.

... e não quero vida nova.

Está tudo bem e se eu pudesse, se eu mandasse, queria a vida sempre assim: com tanto amor (como se ele tivesse encontrado finalmente a sua casa), com tanta tragédia (sempre a farejar), com uma paz que me faz dormir quase todos os dias sem sonhos, com ansiedades várias que escondo o melhor que posso a ranger os dentes, ou no tique nervoso de beliscar o anelar direito com o polegar, com tanta sorte, uma coisa de milagre de bênção divina, com tanto azar, tantos desencontros, tantas vidas estupidamente interrompidas.
A vida a acontecer no seu curso absolutamente implacável - um dia após o outro, de forma tão rápida que é quase ridículo escrever uma mensagem de ano novo ao dia 21 do primeiro mês. Mas eu não quero uma vida nova.

"Num instante tudo muda."
Para o bem e para o mal. Seja dia 1 de Janeiro ou de 31 de Dezembro.
"Num instante tudo muda" é a primeira entrada da minha agenda, em 2016 (e já ninguém oferece agendas a ninguém; antigamente tínhamos a secretária em Janeiro cheia delas e com dezenas de cartões de Boas Festas para responder), uma espécie de lembrete, de tatuagem na primeira página e na primeira das 52 semanas que vou enfrentar.

Os últimos minutos de 2015 passei-os ao telefone com um amigo que o tempo e a distância afastaram. Achámos nós os dois que o tempo e a distância tinham feito isso. Enganámo-nos: os verdadeiros amigos interrompem a continuidade espacio-temporal, paralisam momentos, fazem rewind ou fast forward conforme é preciso e todas as vezes que for preciso.


Os amigos interrompem a continuidado do espaço e do tempo
Estava um céu muito bonito, a Sul, naquela última noite do ano, cheio de estrelas. Eu disse ao meu amigo, pedindo-lhe para não se recriminar por não me ter procurado em momentos de maior aflição, e assegurando-lhe isto: "Eu sei quem tu és; eu conheço o teu direito; posso lidar com o teu avesso. Posso sempre lidar com o teu avesso."

Aquela conversa foi talvez das melhores coisas de 2015.
Fez-me fechar a porta a 2015 com e em paz.
Não fiz resoluções, não contei doze M&Ms ou doze pinhões (a minha versão para as terríveis sultanas), bastou-me o bom augúrio de dois velhos e bons amigos e uma ligação de telefone que só se extinguiu pelo frenesi anunciado das doze badaladas e pelos miúdos a ensaiarem a orquestra de tachos e testos.
Enquanto isso, nessas últimas horas do ano, a Isaura descobria os ares do Algarve e ensaiava os seus primeiros passos, a medo e com um entusiasmo que lhe fazia brilhar o rosto todo. Esta minha filha sorri com os olhos, com toda a cara, estremece-lhe a felicidade nas feições.
No dia seguinte, como se tivesse nascido com aquele dote, como se o tivesse feito desde sempre, a minha filha mais nova começou a andar.
Passos seguros.
Na semana seguinte, deixou de mamar. Sem aviso, mas sem angústias, sem qualquer tipo de inquietação de parte a parte. Um pouco mais tarde que os irmãos, que deixaram matematicamente de mamar ao ano certinho, a Isaura decidiu que a posição bípede lhe abria uma nova vida fora do colo e da protecção da mãe.

Em 1972, o meu avô Oliveira madnou pelo correio 'O Meu Menino", da Bertrand, à sua filha, minha mãe. A edição é de 1950 e faz arrepiar com tanto disparate junto sobre gravidez e maternidade. No capítulo 'O desmame' a coisa safa-se.


A profecia cumpre-se, logo em Janeiro, sem contemplações: num instante tudo muda.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O(s) meu(s) segundo(s) filho(s)

Amanhecer de dia 20 de Dezembro de 2008. Voltei a sorrir. Larguei o luto.
No outro dia o António fez sete anos.

O meu segundo filho, o meu único rapaz, é um anjo: vê-se de longe a sua aura, mas de perto desmascaram-no os filamentos de ouro fino das longas pestanas encaracoladas, que fazem brilhar ainda mais uns olhos que sorriem sempre. A pele muito branca e pálida, quase transparente, e a maneira desconcertante como espalha alegria e paz por onde quer que passe, denunciam que um querubim se fez menino nesta vida. 

O meu menino é um anjo, que expõe toda a beleza que a vida tem. É o ser mais consensual e doce que conheço. Faz umas pilantragens, arma umas confusões, mas é um ser único, capaz das coisas mais improváveis.

O feito mais incrível do António é ele ser quem é, tão leve, tão feliz, tão mágico, apesar dos pesares. 

Porque eu passei toda a gravidez do António de luto, a morrer de tristeza. 


Hoje, há oito anos, comecei a perder o meu segundo filho, o primeiro fruto desta incrível história de amor que aqui relato, quase toda ela luz e gargalhadas.

Tinha sido o nosso presente de Natal - eu estava finalmente grávida.

Contámos a toda a gente, foi um dos momentos mais felizes da minha vida: aquela tão esperada e desejada gravidez. 
Passáramos jantares de família de Domingo, durante meses e meses a fio, a escolher nomes estapafúrdios para o nosso primogénito, e finalmente acontecera, imediatamente após o momento de desalento e preocupação no qual eu tivera a coragem de questionar o meu médico se haveria algum problema, e sobre que opções teríamos ao dispor para concretizar este sonho que começava a tardar, o de termos o nosso primeiro filho em comum.

Flutuámos com a notícia, com o teste de gravidez que guardo numa caixa de latão dourada. Decidimos comemorar, a três: eu o João e a Carolina.
A vida, a nossa nova vida começava ali, depois de tanta tormenta, tanto sofrimento, tanta solidão que tínhamos enfrentado e enterrado quando o destino nos juntou, começava agora um novo capítulo, e era o mais feliz de todos: a nossa família, a nossa história interminável, estava prestes a começar.

A viagem seria curta, e o cenário escolhido era Óbidos e o seu castelo, uma escolha quase óbvia, quase cliché, para o conto de fadas que se seguiria nos próximos meses até ao Verão.
Fomos ao jardim da Estrela antes de seguir viagem. 
O chão junto ao portão da Basílica estava coberto de ouro. As folhas amarelas, quase fluorescentes, em forma de coração, da centenária Ginkgo, compunham um tapete triunfal e cinematográfico. A Carolina atirava-as ao ar, e andou naquilo, aos rodopios, um tempo sem fim, que ficou congelado numa parte demasiado dolorosa da memória.

Sem qualquer aviso, sem qualquer ai, sem uma dor, sem o grasnar lá do alto de uma ave de mau agoiro, sem o repique estridente do carrilhão de sinos da imponente basílica, eu comecei a perder o meu segundo filho por debaixo da chuva de folhas amarelas em forma de coração da Gingko do Jardim da Estrela. 
No nosso jardim. 
Onde nos conhecemos. 
Onde casámos. 
Onde achei que nunca mais poderia ir depois do que aconteceu há oito anos.

O médico, na primeira urgência para onde corremos, no Hospital onde a Carolina nasceu, disse - não consigo esquecer-me disto nunca: 'Descambou'.
A confirmação que a gravidez era 'não evolutiva' surgiu na urgência da Maternidade Alfredo da Costa, ao cair da noite de dia 31 de Dezembro.

Os primeiros bebés do ano nasciam.
O meu não nasceria.

Não conheço palavras - creio que estão por inventar; são mais esgares - para conseguir descrever o vazio do gabinete, e da imagem silenciosa, escura, vazia que o ecógrafo revelava. 
O meu coração partiu-se.
Senti o estalo, e a dor física, sufocante, generalizada, pelo corpo todo, em convulsão, a serpentear-se.

Quando a porta da urgência se abriu estavam as pessoas a quem devo o mundo: a Hermínia e a Teresa. Apararam-me. Nos meses que se seguiram foram elas que me ampararam.

Em casa, o Stucky, que vivia connosco no sofá da nossa casa de Santa Marta, tinha feito lentilhas para o jantar. Passou-me para a mão o Santo António que era da sua amada mãe, e entregou-me um caçador de pesadelos que trazia sempre consigo e que está sempre à minha cabeceira.

Passaram-se dias e dias.
A primeira noite foi a pior delas todas: o desgosto vinha às golfadas, marés vivas de dor latejante.

O médico falou de estatísticas absurdas, que a culpa não era de ninguém, que a Natureza era sábia, que tudo ficaria bem, que eu ia esquecer. Advertiu também que não era expectável conseguir engravidar até ao Verão.

Senti-me sozinha como nunca me senti.
Por vezes senti-me ridícula com as proporções daquele luto.
Senti-me por um fio, a enlouquecer.
Nunca senti uma dor tão grande.

Trouxe a mim toda a tristeza do mundo.
Acredito que o João tenha querido um bocadinho dela para si também, mas eu açambarquei-a toda para mim sem pensar em mais nada – era eu, a minha dor, o meu desespero e a minha desesperança. Queria-os todos para mim. Como um castigo, uma penitência.

E três meses depois estava grávida do António.
Não consegui ficar feliz: vivi permanentemente aterrorizada e a culpar-me ainda mais por não estar feliz, como era devido e merecido. Levei os nove meses de gravidez do António de luto carregado, a chorar diariamente pelo meu filho que não nasceu.

Na primeira ecografia, a da confirmação da gravidez do António, surgi o primeiro sinal que ele era um anjo que vinha para me resgatar do pântano triste para onde eu me deixava arrastar. A data prevista do parto era o dia 31 de Dezembro, um ano depois do dia mais triste de toda a minha vida.
Mas eu não via isso como uma segunda possibilidade, um atalho para a felicidade imaginada e interrompida; interpretava-o como um presságio, como uma maldade do destino, a gozar sem vergonha com a minha cara e com o minha dor.

Todos os dias, de manhã, durante 39 semanas de gravidez, enfiava-me no carro e percorria a Almirante Reis pelo rio, até Belém, a ouvir a mesma música em repeat one, e todos os dias me concedia o direito de chorar, sem rédeas, até ao desligar do motor do carro junto aos jardins do Império.
Recompunha-me o suficiente, e fazia um esforço para esconder o desgosto que não diminuía com o crescente volume da minha barriga e da vida que gerava no meio de tantas lágrimas e tanto medo.

Inexplicavelmente pari a criança mais feliz do mundo.

A cinco dias do Natal, o António foi-me arrancado do ventre, no parto mais traumático e também mais libertador de todos. Houve complicações e durante horas acreditei que morreria. O tempo todo em que estive consciente, entre tremores violentos e maquinarias que berravam incessantemente, em alarme constante, lembro-me de me deter naquele pequenino sereno ao meu lado. Queria recordar tudo antes de partir. Não deixei que o João saísse da sala vigiada por um segundo – achei mesmo que morreria. Sei agora que me libertava de tudo pelo que tinha passado.

Mas o António - que se chama António nem sei bem porquê, porque nunca gostei deste nome - nasceu miraculosamente protegido de toda esta dor e terror que eu tinha de o perder também a ele.

E eu vivi, sobrevivi àquela madrugada de há oito anos, e à outra em que há sete anos o António nasceu.

Os dias passaram-se. 
A história continuou. Houve becos e houve reviravoltas. Houve dias muito felizes. Ficou tudo bem, como garantiu o médico da MAC naquela noite. Mas o tempo não perdoa nem acalma a perda: eu trago tudo isto tatuado, segue sempre comigo, está sempre comigo, geralmente só comigo, ainda me vergasta uma espécie de dor que é paralisante, que abre a velha e incurável ferida. 

Hoje soube que era a hora de falar sobre ele, sobre o meu filho que não nasceu. Ele faz parte da nossa história - e nunca, mas mesmo nunca será esquecido.


Eu sou a irmã mais velha, diz a Carolina.

No outro dia, o meu filho António fez sete anos.

Estava a levitar pelos disparates que inventa para me fazer rir, num bajulanço que é quase idolatria religiosa, e eu perguntei-lhe:

Meu amor, como é que tu és tão feliz?
Mostrou-me a língua, revirou os olhos, e bateu as pestanas. Desenhou-se uma cova na bochecha deliciosa.

Então, eu contei-lhe esta história:
Tu és o segundo filho, mas não és o segundo filho.
Quando tu vieste do céu para a minha barriga, a mãe tinha estado grávida, de um outro bebé, que não nasceu. A mãe estava muito feliz por tu vires, mas estava também estava muito triste pelo bebé que não tinha nascido. Eu acho que tu vieste para me fazer sorrir outra vez. Diz-me lá como é que tu nasceste tão feliz, quando a mãe estava tão tão triste?

É simples.
É que o(s) meu(s) segundo(s) filho(s) é (são) anjo(s).


E não há um dia dos últimos oito anos que eu agradeça por ter ambos na minha vida.

Meu amor, como é que tu és tão feliz?
Bom Ano para todos.

(David, Inês - Obrigada por me terem ajudado no dia 20 de Dezembro de 2008 e em todos os anos que já nos conhecemos)