Quem faz um blog fá-lo por gosto

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Dia das Bruxas

Bruxa Pré-adolescente fez sozinha esta grande e maléfica produção. Porque a mãe este ano não foi capaz.
FOTO: A Família Numerosa

Assim mesmo, em Português.
A língua inglesa cai sempre bem, mas eu sou pelo Dia das Bruxas e não pelo Halloween.

Outubro acaba amanhã e estes têm sido dias incrivelmente duros.

Faço de tudo um pouco para não admitir que a vida, por uns tempos, não vai ser igual ao que era.
A minha mãe recupera, mas as limitações são evidentes e as dificuldades gigantescas. É uma luta constante, há melhoras num dia, e recuos brutais no outro. Ela sofre e todos nós sofremos porque depois de sobreviver vem o trabalho mais difícil. E também mais demorado.

Nos primeiros dias, flutamos na bolha poderosa da adrenalina da sobrevivência . Queremos dar graças por tudo, a sensibilidade está à flor da pele - dizemos a toda a hora 'amo-te tanto', 'és tão importante', 'não posso viver sem ti', 'luta por mim', 'vais conseguir', 'vais melhorar', 'não tarda vais para casa'. Olhamos para o céu e ele está cinzento, mas preferimos deter-nos no bando de papagaios loucos, que são verdes, como a esperança, e que andam por ali a fazer razias aos carros, nos parques de estacionamento do Santa Maria.
E depois essa adrenalina esbate-se, fica em lume brando, e o cansaço, pela primeira vez em muitos meses, põe um pezinho fora de casa, e começa a fazer das suas, devagar, devagarinho, vai soltando as gânfeas.

As bebés, que lindas, têm um sexto sentido, anteninhas sensitivas. Que crescidas e responsáveis.
De um momento para o outro, a Isaurinha, que nunca dormira mais do que três horas seguidas, e todas elas ao meu lado, na minha cama, passou a repousar entre oito a onze horas por noite, no seu quarto, dentro do seu berço novo, quase a estrear. Já a Aurorinha decidiu que não quer usar fraldas e, também de um momento para o outro, sem qualquer intervenção parental, decidiu que o controlo dos esfíncteres era prioritário e banal.

Filhinhas queridas, também elas souberam que tinham que dar um pequenino contributo para que estes dias estranhos e difíceis, em que vimos a vida toda revirada, passem depressa para que tudo volte em breve a uma nova normalidade.

A Família está ainda em modo de emergência: dividimos tarefas, revezamo-nos nas responsabilidades acrescidas que agora temos.
Há quase um mês que não vamos todos nadar, uma das nossas rotinas quase diárias de prazer.
Este ano não fiz uma mega-produção de Dia das Bruxas (apenas a Carolina, que já tem idade para se desenvencilhar fez esta produção maléfica).
Isto não é um queixume. É um pedido às bruxas e a todos os Santos que se seguem, e também ao São Martinho, para que nos traga rápido o seu Verão.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Mais Serviço Público - A melhor babysitter do mundo é minha irmã


Passei toda a minha infância rodeada e acompanhada de homens: irmãos homens, primos homens, e nos logradouros de Alvalade também era tudo bons rapazes... Só rapazes, bem mais velhos, e eu, uma espécie de mascote preciosa, talismã da sorte, a protegida.
Os homens da minha infância deixaram-me entrar no seu mundo desde tenra idade. E eu nunca mais de lá saí. Faço parte de uma irmandade subjacente a ter um penduricalho entre as pernas. Não tenho um, mas deixaram-me lá ficar; era pequenina, inofensiva. Com isso ganhei um vocabulário de carroceiro, fui usada como isco e distracção para roubarem Ginas, chocolates e pastilhas e outras pilantragens. Mas protegeram-me sempre. A verdade é que a rapaziada me passou regras de amizade e camardagem bem simples, que poucas mulheres entendem. 
Jamais, e em tempo algum, fui Maria-Rapaz, mas os rapazes incutiram-me o código da rua proibe todas as calúnias menos chamar nomes às mães (tão simples quanto isso). 
São os meus melhores amigos. Ainda hoje lido muito melhor com o universo masculino, e sinto-me muito homem (apesar das mamocas generosas que quatro gravidezes me deram como recompensa). 
Devo muito aos homens da minha infância (incluindo o meu irmão mais velho) e depois aos homens da minha idade adulta, mas acalentei sempre o sonho de ter uma irmã, alguém com quem dividir o quarto, paixões assolapadas, dramas existenciais, e a gilette das pernas.

Ganhei três irmãs quando casei com o João. Duas ruivas uma morena. A Joana é a mais nova - mana linda-amuleto da sorte, que me deu o sobrinho mais delicioso do mundo que, aos cinco anos, passa horas ao telefone, contando-me todas as suas tagarelices da semana (vai ser jornalista ou assessor de imprensa como a tia). 
A Joana é a mana que eu sempre pedi.
Ela acabou agora o curso de Educadora de Infância e luta por uma oportunidade de trabalho. 
Tem já um currículo e experiência invejáveis: criou duas gémeas desde a nascença (até ingressarem no jardim de infância), enquanto tirava o curso superior, tem experiência em ATL e campos de férias. 
Enquanto (ainda por pouco tempo) continua a engrossar as estatísticas do IEFP e do INE, decidiu oferecer os seus serviços de babysitter.

E é uma honra para mim poder ser a primeira a falar dos serviços da Joana e a recomendá-los: foi a esta menina que entreguei e confiei os meus filhos, pela primeira vez na vida, durante a semana inteira que estive, este Verão, na Noruega. Os miúdos até ficaram tristes quando regressámos.
Aqui fica o serviço público. Usem e abusem, pais. É à garantia.



segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Sobre Viver (um post com serviço público lá para o último parágrafo)

Os anjos não têm costas.
Esta semana o bebé aprendeu a levantar-se. Não tarda nada caem-lhe as asinhas e começa a andar.
Foto: A Família Numerosa.

Ao longo da vida vamos engolindo muitas verdades que tínhamos como absolutas.
Esqueçam sapos que viram príncipes - engolimos sapos, não os andamos para aí a beijar.

A digestão dessas verdades que o deixaram de ser vai-se tornando cada vez mais fácil e menos peçonhenta, porque aprendemos muito com o desconforto da azia que sobe até às bochechas por termos feito figura de parvos, e a vergonha do descaramento e arrogância que tivemos ao achar que tudo sabíamos, do alto do pedestal do nosso ego.

Crescemos, envelhecemos e, à partida, se tudo estiver a correr pelo melhor, vamos ficando mais sensatos e com menos sangue na guelra. Ficamos mais abertos a ouvir o outro, os seus argumentos e, quem sabe, a mudar a nossa opinião sem vir mal ao mundo, sem trairmos os seres únicos e imperfeitos que somos, ou a desviarmo-nos da essência e do projecto em construção que vamos levando por esta existência fora.

Claro está, e daí a ressalva, esta é ordem natural das coisas, quando tudo está bem e encaminhado.

Vivemos e aprendemos. Mas nem sempre assim é. Não há nada mais tóxico do que apanhar com a amargura requintada e requentada da velhice, e ainda ontem tive que levar com a má onda pestilenta de uma velha bruxa, na minha aula semanal de hidroginástica, permanentemente zangada com a alegria contagiante da professora. 'A menina é jovem e não percebe como é que esta gritaria toda me perturba'. Tudo perturbava o raio da velha e dei por mim a desejar que ela tivesse uma caibra para não contaminar a água toda com aquele amargor.

Tentarei ser magnânima para a próxima. 

Durante muito tempo não estive tão aberta à mudança e à certeza de que posso sempre aprender alguma coisa com o próximo. Sempre me senti um extraterrestre em grande parte dos meios onde tive que me adaptar para sobreviver, e usei amiúde a soberba de uma pretensa superioridade intelectual para camuflar algumas das minhas fragilidades e fraquezas.

Não sou perfeita, estou muito longe disso, tenho é um caso severo e galopante de perfeccionismo, que não é bem a mesma coisa.

Não me esqueço nunca o desdém de dondoca afectada com que recebi, certo dia, a sugestão e ajuda que uma simpática cabeleireira me ofereceu para arranjar uma vaga numa creche para a Carolina. Mas a creche era no Intendente. E eu, feita parva, nariz empinado e emproado: «Ó Mila, mas eu tenho cara de quem põe os filhos numa escola no Intendente?»

Que grande idiota.

Pouco mais de ano separa esta cena que aqui conto em jeito de acto de contricção e o soluço monumental que a vida deu. Eu e o João encontrámos a casa mais bela de todas onde já deixámos um rasto da nossa história.
E era onde? No Intendente. 

A Carolina e o António entravam também na melhor escola do mundo: a Associação Pro-Infância Santo António de Lisboa (APISAL), a quem agora confio também a Aurora e a Isaura.
A tal escola que a Mila me falava depois de me cortar uma franja ridícula que me fazia parecer uma menina doce.

(Arroto, que tonta, que verdade absurda tão bem engolida)

No primeiro dia de escola, a Carolina tornou-se a rainha do primeiro ciclo - e eu recebi logo propostas indecentes dos catraios: 'Ela é tão linda!', disse-me um ao fim da tarde, pedindo-me permissão para namorar. Do lado oposto, na creche, entreguei o bebé gordo, anafado e mimado que era o António a uma mulher negra, de sorriso gigante e coração resplandecente, que se chama Abi.
Ela abraçou-me e secou-me as lágrimas da separação, garantiu-me que não o deixaria chorar. E não deixou mesmo. Algum tempo depois soube que adormecia o seu 'Antoine' ao colo, às escondidas, no seu colo fofo.
É um privilégio ter uma ajuda destas, uma verdadeira escola dos afectos, ali no mal-amado Intendente.

A Isaura com a boneca Abi. Foto: APISAL.

Muitas, tantas outras vezes estive errada nas minhas bujardas e sentenças, e preciso ainda de confessar esta. 

Quando estava grávida do António lembro-me da perplexidade inflamada que exprimia pela opção da minha vizinha Helena, tão jovem, tão trabalhadora, e a caminho do seu sexto filho. Agora sou eu que tenho quatro e atinjo que não é nenhum bicho de sete cabeças. Frases-feitas como 'eu não tenho capacidade para ter mais do que dois filhos', ou 'os miúdos pequenos dão cabo do casamento e do romance', entre outras pérolas, são redutoras, vazias de significado. Para mim, que me vi confrontada com este fabuloso destino, deixaram de fazer qualquer sentido: não me revejo e não me venham dizer que tenho super-poderes, porque não tenho. E as certezas inabaláveis sobre aquilo que vai ser o meu futuro e a minha vida não as tenho.
De repente, tudo muda. 

Haja o que houver tento ter mais tento na língua. Ainda não cheguei ao ponto em que escuto mais do que falo, mas para lá caminho.

É fácil cagar sentenças, alimentar o monstro do preconceito. 

«Devem ser do Opus Dei», «Então mas não sabem o que é a pílula?», «Onde é que arranjam o dinheiro para alimentar aquela gente toda?»

Quando a família atinge as (modestas) proporções da nossa, temos constantemente um elefante na sala. E esse elefante grita-nos que temos que ir comprar leite, pão, fraldas, arroz, massas, carne, peixe... Iogurtes (meu Deus, tantos iogurtes!).

Também temos que vestir as criancinhas, que não aguentam a roupa de uma estação para a outra e, bolas, procriámos cedo de mais e ninguém raramente tem nada para nos passar; nós é que passamos tudo para os primos e amigos! Como já ninguém tem sótãos ou arrecadações - pelo menos quem decidiu ficar por Lisboa sem as comodidades da construção nova do subúrbio -, o exercício de guardar de uns para os outros é cada vez mais difícil (lá está, sobretudo quando já se teve que improvisar um quarto onde existia uma sala, porque houve uma filha linda que decidiu aparecer sem avisar os pais). 

É um constante malabarismo.
E o elefante sempre a chicotar-nos com a tromba para nos mantermos na linha e tocarmos a sineta para recebermos a recompensa pelo trabalho bem feito!

Ter uma família numerosa exige alguma organização e planeamento.
Não somos neuróticos com essa necessidade de planificar tudo ao detalhe - ninguém faz grandes listas, nem menus semanais (tenho um sonho de planificar refeições, confesso), não temos as roupas alinhadas por cores ou tamanhos (apesar de eu já ter tentado quando era solteira e boa rapariga), e também não organizámos a cozinha de uma forma muito lógica, e vemos isso pela inabilidade de a empregada que está connosco há uns cinco anos em dominar o mapa das canecas, pratos, copos ou os tupperwares.
Fazemos deliberadamente uns apontamentos de loucura e arbitrariedade à nossa vida e à organização do lar, porque, caramba, de outra forma, tudo certinho, seria uma monotonia em tons de cinza.

No nosso âmago, eu e o João somos uns despassarados com a cabeça no ar. Somos da matéria que se fazem os sonhadores. Mas vimo-nos obrigados a atinar para levarmos este empreendimento avante. Dominamos todas as burocracias com as Finanças e Segurança Social como ninguém. Vencemos esse labirinto e somos uma espécie de guru para os nossos amigos, que nos vêem como especialistas a vencer a turtuosa máquina do Estado. 

As compras para a casa são uma dor de cabeça, mas temos um ritual, com o qual me tento divertir, como num jogo de telemóvel de encaixar as pecinhas todas umas nas outras, ordenando o caos e ganhando pontos extra. Tiro mesmo grande prazer numa pechincha. Mais do que aquele que retiro ao comer um chocolate.

Nunca há monotonia no momento de encher a despensa e, com dois bebés a gastar fraldas, a escolha do supermercado passa simplesmente por apurar onde existem Dodot Activity com 50% de desconto. Não compro por menos de 50%, ou seja 9,99 euros. São as melhores fraldas do mercado, absorvem como nenhumas outras, e acumulo-as sempre que as encontro em promoção, até porque a pilha enorme de pacotes desaparece quase por artes mágicas (o provérbio 'Parece manteiga em nariz de cão' aqui seria 'parece fraldas em rabo de filhas'). 

Este fim-de-semana fomos ao Jumbo. Há duas semanas tinha sido no Lidl. (Abençoados sejam os grupos de Mães do Facebook e a solidariedade entre mulheres - Love you, For Moms!!!)

Foi uma decisão difícil e penosa, mas desistimos das compras online. Recorrentemente os artigos em promoção entram em ruptura de stock e não são entregues. Quando uma família baseia o seu carrinho de compras em promoções, deixaram de estar reunidas as condições para esta ajuda enorme que era fazer as compras pelo computador, pela madrugada fora se necessário fosse e sem crianças descontroladas a exigirem açúcar e snacks cheios de gordura e sal.

Outro dia o Continente deu-se conta que deixámos de gastar milhares de euros por ano no seu serviço online e, viajando perfeitamente na maionese, contactou-me telefonicamente pedindo-me para que perdesse uma tarde da minha vida para um focus group onde pudesse expor e avaliar o que tinha corrido mal!!!!
«Mas não podemos fazer isso por telefone? E por Skype? Não? Opá, vocês são engraçados: então acham que alguém vos vai aí dizer seja o que for??? Está a ver: as pessoas que fazem compras online não têm tempo para ir aos supermercados! Muito menos para estar enfiados em estudos de mercado!».
Enfim, CRM para loucos! Incompreensível.

O meu desencanto com a grande distribuição portuguesa e a Internet na era das promoções bombásticas sai-me do pelo. Obriga-me a perder parte da manhã de um Sábado ou de um Domingo nas grandes compras da semana (e são sempre grandes, mesmo que depois avie os frescos, a carne e o peixe na Praça ou nas mercearias / frutarias de bairro). Vou para arena do hipermercado com quatro crianças atreladas, duas em carrinho de bebé. É pior pesadelo para um jovem casal de pais já muito cansados da semana infindável de trabalho.

Mas tudo se faz. 
E no final do dia há uma sensação de superação e vitória que penso ser idêntica à de um atleta de alta competição.

Ao fim-de-semana os pais também têm trabalhos de casa: vassouras de Halloween pirosas!
O António sobrevive à bebedeira do cor-de-rosa... FOTO: A Família Numerosa.

Nas roupas, quem me conhece, sabe o meu histórico de pirosa em estado terminal. Não sou uma mãe que vive para os lacinhos do cabelo das filhas, ou para as carneiras dos filhos, mas gosto de brincar às princesas - e, minha gente, tenho três miúdas cá em casa: é a mesma coisa que pôr um drogado na Colômbia!

Quando tive a Carolina e a redacção do Público foi muitas das vezes o seu jardim-de-infância, a editora de Política dizia-me sempre, em jeito de gozo e provocação: «Mas porque é que tens que vestir a miúda de reposteiro?»
O tempo passa mas continuo a vestir as minhas filhas de reposteiro.
Não há cá leggings, nem gangas (só em último recurso), nem fatos de treino.

E sabem como é possível?
Porque me deixei de pudores e pruridos ao dado e ao comprado em segunda mão.
Para além dos grupos de Facebook específicos (com grupetas divinas, onde já fiz belos negócios e boas amigas), há uma coisa extraordinária que bate tudo, chamada Humana For People (tem quatro lojas no eixo da Avenida Almirante Reis - desde o Areeiro, passando pelo Chile, em frente à Portugália, e acabando no Intendente).

Passo agora para a parte deste texto de serviço público: esta semana a Humana está a despachar duas peças de criança (quaisquer que sejam as peças - casacões de Inverno incluídos) a 2 euros. Ou seja, cada peça custa uma moeda de eurito - nem um queque se compra por um euro hoje em dia.

Minha gente, a renovação de Outono da Isaura e da Aurora custou seis euros.

Olha eu a fingir que sou um blog de moda, a preços da uva mijona!

Quatro vestidos de boas marcas e duas malhas: meia dúzia de euros. Imbatível. A Farrusca não está à venda. Foto: A Família Numerosa


Isto é não é sobreviver; é sobre viver. É saber viver.


sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Ocaso - A Odisseia

Ulisses virava muitas vezes a cabeça para o sol que tudo ilumina, desejoso de ver o ocaso: pois só pensava no regresso
Homero, Odisseia, trad. Frederico Lourenço, XII, vv.28-30.

Dia 3 da Odisseia. 53 anos separam avó e neta. Só mesmo meio século e três anos as separam: são em tudo idênticas. 

Regressar a casa.
Ulisses só queria voltar a casa. Esse desejo norteou-o, guiou-lhe os passos na sua incrível Odisseia. Guerras sangrentas, ciclopes, sereias, feiticeiras, a ira e a compaixão dos Deuses, profecias e prenúncios, esperança e coragem, desespero e agonia. Mas Ulisses, o herói da grande Odisseia, empreendeu toda as suas forças e engenho para voltar a casa.

O ocaso. 
Ulisses desejava o ocaso, o dia a quedar-se no horizonte.
O dia que nasce e ilumina tudo nada encerra: traz consigo a angústia do leque aberto com todas as possibilidades. Depois há dias para todos os gostos - há dias mornos, em que nada de extraordinário acontece, há dias de tempestades no mar e na terra, em que a força dos Deuses se faz sentir como um rugido das profundezas mais longínquas do coração da terra. Há dias em que sol corta como uma faca afiada, e outros há em que se limita a aquecer a alma e a guiá-la por atalhos piedosos que encurtam a viagem. 
Os dias deixam tudo em aberto. Mas o ocaso encerra sempre um dia da jornada, um dia a menos para o chegarmos ao sítio onde somos esperados. E somos sempre esperados algures.

Dez dias passaram desta Odisseia. 
Ulisses esperou dez anos e outros dez para voltar a Ítaca.
Connosco os Deuses foram mais brandos.

Teria talvez a idade da minha filha mais velha quando eles, os Deuses, me acordaram com um ruído ensurdecedor que me fez expandir os pulmões em toda a sua capacidade, e abrir muitos os olhos com uma explosão de negro da pupilas, num acto de automática sobrevivência. 

Uma tarde destas, uma mulher sofrida descrevia-me em detalhe o momento em que sobreviveu e, acto contínuo, renasceu, numa cama de hospital. Ouviu, segredou-me ela, o barulho das suas pestanas a baterem umas nas outras, como as asas de borboleta. Nessa manhã em que eu era menina e, que agora recordo, numa odisseia pelas minhas recordações mais profundas, cicatrizes que não podemos - espero - esquecer ou camuflar, levantei-me da cama em sobressalto e alarme, e fui atingida, à porta do meu quarto, pela primeira imagem de caos em que a vida se pode transformar, de um breve instante para o outro: os gatos da minha mãe haviam tombado um frasco de vidro muito alto e estreito, recheado de berlindes e abafadores de vidro de todas as cores (os meus favoritos eram os nacarados, como as pérolas), que, libertos, rolavam, esgazeados e barulhentos, numa maré-viva descontrolada por toda as assoalhadas da nossa casa.

Os guelas andam por aí soltos há dez dias.

Era um dia de chuva, o mar estava revolto, zangado, e eu revoltada e zangada com ele, porque não era dia para maus fígados de Neptuno. 

Acabara de casar a minha madrinha de casamento -- feiticeira que me ajudou a passar ilesa por mares povoados de sereias mortíferas, para poder chegar à porta de um prédio de seis andares com vista para o Jardim da Estrela --, quando o telefone tocou, e o frasco de berlindes se estilhaçou de novo aos meus pés, com um estrondo tão forte como o de um relâmpago de uma trovoada seca de Verão.

Só que agora eu não era menina, mas tinha comigo quatro meninos, que não podia assustar com o pânico que me invadia e rebentava, uma a uma, as mais automáticas funções do meu ser: falar, respirar, mexer os braços e as pernas, piscar os olhos (ouvi, porém, as minhas pestanas a bater umas nas outras, numa agitação de asas de colibri).

Fiquei congelada, o sangue fugiu-me das bochechas, e uma tontura quis levar-me a dançar uma valsa louca. Fiquei a olhar fixamente para os olhos do João, e contei-lhe detalhadamente por telepatia o que acabara de acontecer. Fiquei à espera de uma ordem dele para começar a reagir. Rápido e coordenadamente, sem atropelos, ou pânicos.
A bebé chorou e eu dei-lhe de enfiada duas papas da Bledina. Talvez tenha batido o recorde de dar papas Bledina do mundo. 

O tempo parou, ou eu parei-o para conseguir processar tudo.
O espaço também se bifurcou, na sua linha contínua: noutro local, precisamente ao mesmo segundo, a minha mãe estava a ter um AVC, ia a caminho do hospital, já perdera a capacidade de falar. E nós acabáramos de casar a nossa amiga Teresa, madrinha do nosso casamento, havia pétalas de rosa e arroz no chão, frente ao mar revolto da Linha, e ela seguia tão bela e feliz para o copo de água onde eu não a poderia beijar e abraçar.

Nesse instante, o dia ainda ia a meio, o sol debaixo das nuvens carregadas, acabar de chegar ao seu ponto mais alto, mas eu passei apenas a importar-me com o ocaso, no dia que se encerra e encurta o caminho escarpado que falta trilhar.

No primeiro pôr-do-sol pedi a cada um dos gatos da minha mãe uma vida emprestada. 
Não lhes custava nada: têm tantas, e eles, obviamente, nem hesitaram, tão aterrorizados pela possibilidade da perda como eu. Acederam. Estou-lhes grata.

E depois veio o ocaso. 
Tudo passou a centrar-se no ocaso seguinte.

A noite, claro, foi dura: foi a mais dura e escura de todas as noites. 
Fumei de enfiada, à janela, todos os Português Suave amarelos da minha mãe. Do alto do vertiginoso sétimo andar sobre Alvalade, piscou, pela noite fora, um clarão intermitente vindo de um candeeiro de jardim, que encadeou todos os meus sentidos, que já de si funcionavam descompensados, em modo de sobrevivência.




Guio toda a minha vida por sinais, escolho o certo e o errado pela lente de uma intuição bacoca, quase infamtil. Mas a realidade é nesse dia eu que tinha os sentidos, incluindo o sexto, em curto circuito, como o candeeiro do jardim. A desesperança tomou conta da noite, quando, entre o fumo do cigarro, me deixei hipnotizar pela luz morrente do candeeiro do jardim. Assim interpretei o clarão.

Por instantes, por longos instantes, acreditei que o pior ia acontecer, e revivi o momento em que a minha mãe passou por mim e pelo meu irmão, mudos, à porta do corredor dos cuidados intensivos, com o olhar desesperado de quem está preso em si, sem se conseguir libertar, e sem ter sequer a capacidade de gritar um ai. Acreditei que o prenúncio do dia de tempestade, do ano terrível que já me levou tantas pessoas, continuaria no seu propósito devastador, imparável.

Mas não eram as intermitências da morte: li tudo mal; era um farol que a guiava pela noite mais longa de toda a sua vida.

A luz do dia seguinte, a tal que tudo ilumina, trouxe angústias, receios, dificuldades.
Chamam-lhes sequelas. 
É esse o termo médico apropriado.
A cada ocaso uma conquista, um dia a menos para o regresso.

Sou, neste momento, uma menina-soldado, assustada e em permanente modo de luta armada.
Nunca estive tão frágil e vulnerável, nunca precisei de tanto da minha mãe, nem mesmo quando nasci. Enfrentei a sua mortalidade e, portanto, enfrentei também a minha própria mortalidade. Trago as lágrimas guardadas num poço sem fundo, para o dia em que, finalmente, possa libertar as represas, num alívio violento. Travo uma guerra, a minha pequena odisseia, desde a primeira hora de luz até ao próximo ocaso: o dia em que me tornei mãe da minha mãe chegou. 

A minha mãe sobreviveu. Renasceu há dez dias e já regressou a casa.

A cada ocaso continua a sua odisseia.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A Esquerda. A Direita. A Família Numerosa foi votar.


'Bom dia, República!", diz a Princesa Aurora. FOTO: A Família Numerosa.

Os meus filhos são crianças com consciência política. Como todas as crianças, aliás. Não conheço nenhuma que não tenha uma consciência política inata, a revelar-se nos pequenos detalhes e desde os primeiros dias de vida. Não é precisa lupa ou faro apurado: basta estarmos atentos às pequenas nuances destes pequenos e adoráveis seres. Somos animais políticos e eles são aprendizes de feiticeiros. E eu nunca li Platão para sabê-lo.

Há um déspota iluminado e um ditador sul-americano em cada um dos meus filhos.
Coexistem, na verdade, vários sistemas políticos nesta família.

Eu por vezes também suspendo a Democracia de manhã e instauro uma Ditadura Militar à hora de deitar.
Há regimes para todas as ocasiões; é à escolha do freguês: elas são princesas e ele é o príncipe perfeito.
Sem títulos, sem brasões, sem sangue real ou apelidos catitas, nós, os pais, por vezes somos do povo, aquele que trabalha o dia inteiro em troca de um salário que não cresce como com os bolos que faço na cozinha aos fins-de-semana, carregando no fermento, e que não estica, como as calças pingonas do chinês, que dão com tudo e resistem às minhas flutuações de peso entre gravidezes, amamentações, dietas loucas e outros disparates diversos.

Esta vida não é uma incrível bolha mágica do País das Maravilhas o tempo todo, 24 horas por dia, e por vezes roça a escravidão.
Somos escravos de muitas coisas, elementares, básicas, corriqueiras, comezinhas - somos subjugados pela roupa e loiça suja (anda para aí um anúncio de televisão a um detergente de máquina de lavar a loiça genial que fala deste ciclo interminável de sujidão), e no gigantesco mês de Setembro, o mês de todas e das mais sufocantes despesas, com quatro crianças na escola, rendemo-nos à evidência que precisávamos de uma máquina de lavar a roupa de 11 kg para deixar de fazer duas máquinas por dia. Vivemos agrilhoados aos banhos e às rotinas básicas de uma família qualquer, e que incluem o planeamento e a elaboração de refeições, e também as inesgotáveis actividades e experiências diversas - lúdicas, culturais e de toda a ordem - que os nossos amos pequeninos nos exigem. Sem chicote.

Vivemos em permanente luta de classes nestas quatro paredes.
E às vezes ascendemos na longa escada social e sentamos o nosso rabo burguês num sofá magenta um bocado desconfortável, e respiramos fundo, todos satisfeitos por tudo o que temos, por tudo o que alcançámos em 37 anos de vida e nove de vida em comum.
Partimos com um avanço considerável e a nossa felicidade não é a mera listagem e contabilidade de tudo o que temos; a equação é mais complexa e concede maior ponderação ao que somos. E somos mais, muito mais do que a soma das partes. Essa é a magia de uma família grande.
Mas é fácil, foi mais fácil para nós porque nós já nascemos burguesinhos. E os meus filhos - deixemo-nos de rodeios e de tretas; temos que ter noção da situação de privilégio e as águas calmas pelas quais navegamos sem tormentas de maior  - também.

Temos uma casa grande, com quatro quartos - um improvisado, mas são quatro quartos, não deixa de ser um luxo -, num bairro chique, um apartamento que não pagamos, porque nos foi oferecida, assim de mão beijada, pela minha mãe. E essa casa, cheia de coisas bonitas, algumas velhas, outras de família, e ainda uns tarecos iguais a todas as outras casas, que comprámos na loja sueca, é a base de tudo. A nossa sorte começa aqui.

Depois, conduzimos dois carros muito velhos, mas que não deixam de ser dois carros, oito rodas, dois motores, com seguros, gasolinas, revisões e inspecções feitas (infelizmente ou felizmente, não temos um Volkswagen). Há quatro computadores cá em casa (dois muito velhos e dois em segunda-mão), um smartphone de 99 euros com o monitor todo estilhaçado e uma bateria viciada e um tablet Android oferecido a uma criança com seis anos.
Há orçamento suficiente para uma despesa inesperada - como uma junta da cabeça do motor queimada, ou um aparelho fixo nos dentes da mais velha -, e ainda sobra qualquer coisita para um indecente rodízio de carnes sul-americanas (onde as duas mais novas não pagam e o do meio só paga metade).Depois de tantos anos juntos, até conseguimos, finalmente, fazer umas férias na Europa, e lá fomos ao sol da meia-noite da Noruega (bela pontaria para um destino tão caro quanto civilizado).

Não é só o regime político e a classe social que estão em constante mudança nesta casa.
O sistema económico também passa do capitalismo selvagem, do consumismo desenfreado, para a troca directa, e para o consumo responsável e sustentável, sem fundamentalismos quanto ao óleo de palma, sacos de plástico e outras maradices biológicas (tudo o que é demais é moléstia).

Os Manos Ralha - serão eles os próximos irmãos da Política Portuguesa? Por enquanto ficam-se pelo consenso das bolas-de-Berlim. Foto: A Família Numerosa.

E tudo isto a propósito de eleições.
As voltas de sempre.

Eu não estava preparada para comprar um soutien para a minha filha mais velha há um ano, e também não estava à espera que aos onze anos de idade ela me perguntasse:

'Qual é a diferença entre a esquerda e a direita?'

Os meus filhos têm muita consciência política.
A culpa é nossa. Não a praticamos em São Bento, nem nos Paços do Concelho da mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa - o que é uma pena até; não tenho a menor dúvida que seríamos inacreditáveis políticos, em bancadas opostas -, mas ambos vivemos a Política com um fervor religioso, um entusiasmo contagiante. E isso não tem nada a ver com partidos. É um estado de espírito, uma predisposição. E as crianças, adoráveis esponjinhas aparentemente desligadas da realidade dos 'adultos' percebem tudo, apanham tudo.
Duplicámos o tamanho da nossa família durante a estadia da Troika neste rectângulo: a Aurora e a Isaura têm como madrinhas a tia Austeridade. Escusado será dizer que a madrinha não manda folar pela Páscoa e no Natal nem umas míseras peúgas.

Filha da Troika. Afilhada da Austeridade. Vestida para votar num dia de Outono de Outubro. Foto: A Família Numerosa.

O António e a Carolina (sem esquecer o cão Cenoura) participaram, que me lembre, em pelo menos duas gigantescas manifestações de indignados, e sempre que passam pela Assembleia da República gritam: "Olha o Povo Unido!" (o pai faz sempre questão de os avisar que o povo já foi vencido, no picanço).
Nas últimas autárquicas, fizemos, durante a licença de maternidade da Aurora e a partir da nossa casa sem água potável de São Félix, em São Pedro do Sul, o projecto Sexy Autárquicas, que saiu em todos os jornais e televisões, e concluiu, sem margem para qualquer discussão, que há uma maioria absoluta à esquerda se os programas eleitorais se resumissem à beleza, e que o PCP é uma incubadora de borrachos.
Foi também nessas autárquicas que, pela primeira vez na vida, estivemos todos, sem excepção, ao lado do Partido Socialista, na candidatura do nosso gigantesco amigo-para-a-vida Pedro Coelho dos Santos à Câmara Municipal de Sobral de Monte Agraço (sim, aquela terra dos parques infantis e das cartas de condução duvidosas). Com comícios, arruadas e jantares-convívio incluídos. A amizade tem destas coisas, que transcendem ideais e convicções políticas.

As minhas crianças percebem mesmo muito de Política.
Sabem reconhecer o Passos, o Portas, o Costa, a Marilu, como carinhosamente chamamos a mulher-de-ferro das Finanças portuguesas, e têm um gigantesco núnero de professores candidatos e cabeças-de-lista pelo PAN. Ainda se lembram do Gaspar e das maldades colossais que nos fez, e nestas Legislativas passaram a reconhecer a Catarina e a saber qual a diferença entre uma sigla e um acrónimo. Aprenderam também o verbo 'concatenar' (a televisão e a campanha tem destas coisas também).


Os meus filhos, os vossos filhos são o futuro deste país.
Aos meus, ensino-lhes Política desde o berço, segue pela mama: rejeito a ideia de que os políticos são todos iguais e que a abstenção e o cuzinho sentado farão mais por Portugal do que os políticos possíveis neste momento. Talvez não sejam os melhores, mas são os que temos. E se a crise me ensinou algo foi que tenho que saber fazer o melhor possível com o pouco que me é apresentado. Isso abarca tudo, Política incluída.

Os meus filhos serão de Direita, de Esquerda ou de Centro, Monárquicos, Anarquistas, Revolucionários. Tanto faz. Os meus, os vossos filhos serão os Políticos do futuro.
Há cem anos anos as minhas três filhas não teriam direito a votar; eu e elas seríamos pessoas de segunda categoria.
Há 40 não havia eleições livres no meu país.


Núcleo do PAN na nossa casa. FOTO: A Família Numerosa
Mamã. qual é a diferença entre a Direita e a Esquerda?

Filha, não é simples a pergunta, e por favor a seguir não me peças para te responder se Deus existe e se há vida depois da morte.
Olha, não há ninguém de Direita, como a mãe, que não acredite na esmagadora maioria dos princípios que a Esquerda defende: a liberdade, a igualdade, a justiça social, o emprego digno, os direitos básicos, o progresso colectivo. As pessoas de Direita acreditam noutras coisas, no lucro, na propriedade e iniciativa privada, e depois em algumas em que eu não acredito nada. Lembras-te do cartaz dos idiotas do PNR? Lembras-te o que a mãe te explicou, que os refugiados não são terroristas, que não nos vêm roubar nada, como tinhas ouvido? Que tudo lhes foi roubado e que nós temos que ajudar? Pois, olha, nisso a mãe não é de Direita. A mãe gosta muito de imigrantes. A nossa querida D. Nargeeza é muçulmana e achas que ela é terrorista? Quanto muita acha-vos a vocês uns talibans!
O importante, filha, não é ser de Direita ou de Esquerda, de um partido ou de outro, como num clube de futebol. O importante é conhecer as propostas, ler os programas, ouvir o que esta gente tem para Portugal. O importante é votar. Sempre votar. Se calhar, umas vezes à Direita, outras à Esquerda. Saltar de um lado para o outro. Mudar de ideias. Acreditar. Desiludir. Voltar a tentar. Fazer a melhor escolha possível. Em consciência. Nunca desistir. Da Democracia. Promete-me que vais votar sempre. Que vais tentar sempre votar.

E Domingo de chuva, véspera da República, lá seguimos os seis para a escola primária colada à igreja, um cavaquistão em Lisboa, e nós, à boca da urna cheios de filhos, quem nos visse não teria dúvida: 'Olha que linda família PAF!"
E no entanto...
Não cabemos na maioria dos carros em circulação e em nenhum esterótipo...