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quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Um verão “aborrescente”

Texto original em: http://visao.sapo.pt/opiniao/bolsa-de-especialistas/2016-08-18-Um-verao-aborrescente

Será chuva? Será vento? Fui ver: era a "aborrescência"!
Aconteceu, está a acontecer neste preciso momento.
Eu posso até negar a evidência, como o pior cego de que há memória, apregoar aos ventos que os trinta e muitos quase “entas” são melhores que os sôfregos e angustiantes vintes, conceder, ao espelho, que os deuses têm sido bons comigo e ainda não tenho quase rugas (nós as gordas temos essa bênção; nem tudo é mau no reino fofo do excesso de peso), esquecer que pinto o cabelo de três em três semanas para cobrir teimosos fios brancos, obrigando-me a doar a contragosto um dízimo inflexível às multinacionais de cosmética que me garantem que eu mereço, mas está a acontecer: eu estou a envelhecer.

Se não fossem as quatro crianças que trouxe ao mundo, e que crescem contra o meu desejo e a um ritmo seguramente superior ao das folhas imaginárias do calendário da agenda do meu telemóvel, até era capaz de nem dar por isso, e de descurar todos os outros (tantos) sinais exteriores e interiores da passagem do tempo.

Este é o meu primeiro verão com uma “aborrescente” na segunda fila de bancos do meu carro de proporções numerosas (agradecida ao Fisco pelo desconto de 50 por cento no ISV no meu veículo romeno, mas completamente atónita com o IMI agravado com a exposição solar).
Deve ter vindo escondida na bagageira da mala de tejadilho, juntamente com toda a parafernália das férias grandes, mas juro que não estava na lista mais ou menos trapalhona que preparei para sair de abalada para as merecidas férias.

No início do Verão chegou a Collie mimada. E depois apareceu a melan[coli]a da adolescência
Não estava à espera disto tão cedo, e muito menos no Verão: vim emparedada entre fraldas, carrinhos de bebé, malgas e trelas de cão (as férias são obviamente com TODA a família, incluindo a de quatro patas), quatro malas minimalistas de companhia aérea low-cost com roupas para seis corpos durante três semanas (não viemos passar modelos, viemos para o campo, para a casa da “terra”), mas não contava trazer uma adolescente cheia de manias e suspiros comigo.

Quando engravidei aos 24 anos da minha primogénita, idealizei uma fantasia muito vívida: no futuro, que é hoje o presente, eu seria uma “irmãe”, uma tipa muito nova, muito porreira e descontraída, conivente com todos os caprichos insondáveis da piroseira cor-de-rosa do cromossoma xis. Como justa recompensa, teria o lugar incontestável de melhor amiga da minha filha, a pessoa mais especial de todo o universo e mais além, com quem ela partilharia todas as suas inquietações, dúvidas e angústias existenciais, eu seria uma espécie de alma gémea (nem menos seria exigível, a quem cresceu no meu ventre e foi parte de mim durante nove meses), para quem não há segredos, apenas confidências sobre todos os amores arrebatadores e paixonetas patéticas, e todas as primeiras vezes que estão a acontecer em fast forward.

Só que nada disso aconteceu, e a realidade, essa grande sacana, pariu uma mãe igualzinha a todas as outras: cafona, irritante, implicante, castradora, tal e qual como… a minha mãe!
Filho és, pai serás…

Regressou temporariamente do darkside: deixa lá registar isto em JPEG!

E eis que, quando devia andar eu a banhos e a pôr a leitura em dia, se dá o impensável, e me salta inadvertidamente a minha mãe da minha boca para fora, a todo o instante, como numa possessão demoníaca. Oiço-a distintivamente na sua altivez canalha, quando vomito frases do género: “na tua idade ainda brincava com bonecas”; “não vais assim despida para a rua”; “vai já lavar a cara – estás ridícula assim pintada”.

Sou a rainha dos sermões, dos castigos, das lições de vida. Tenho, como uma adolescente esquizofrénica, certezas absolutas sobre tudo e preocupantes flutuações de humor. Quem sou eu? No que me estou a transformar? Mas afinal, quem é aqui o adolescente?

De repente, tenho a vida toda do avesso, e a minha querida filha, que ainda ontem nasceu, revirando também com esse evento toda a minha existência diletante, e carimbando-me à força o passaporte para a idade adulta, dá-me água pelo bico: fecha-me na cara a porta do quarto quando estou a dizer qualquer coisa que era importante, revira-me os olhos mesmo quando eu não estou em modo de ditador, e já não sou a mamã,  sou a mãe.

Com esse novo estatuto, mais distante e explosivo vêm obrigações e calvários, como trocar a TSF pela RFM, e acumular sabedoria sobre as vidas pessoais e a carreira da Ariana Grande e do Charlie Puth em doses tão cavalares, que só me serão um dia proveitosas se, por um estranho acaso deste mundo louco, fosse seleccionada para um quizz surrealista sobre estes dois cantores pelos quais tanto suspira a minha rapariga.

Focus, Focus on Me, canta a Ariana Grande!

O primeiro filho é a maior revolução da vida de um pai. Chamo-lhe a minha “filha test-drive”, denominação que acrescentei ao meu léxico de parentalidade depois de a ouvir da sabedoria serena de uma grande amiga, também ela mãe de quatro (e somos cada vez mais, os pais de quatro: parabéns aos meus amigos Mafalda e Abílio). Não faço ideia se estou a fazer bem ou se estou a fazer mal. Gostava de fazer diferente, mas nem isso tenho a certeza de estar a conseguir. Debato-me diariamente com a dúvida de quantos anos de psicoterapia terei de assegurar, pelos meus actos e omissões.

Agora aproveito o palco, e vou eu ao divã, se me dão licença: é que tenho saudades da minha primeira filha antes da adolescência súbita que bateu à nossa porta.

Na minha memória de curto prazo (que não foi tão severamente afectada pelas quatro epidurais a que me sujeitei para os parir), ainda a tenho tão pequenina, no meu regaço, indefesa, mas integralmente protegida por mim, uma espécie de mãe amazona. Nesta dúzia de anos em que tenho o privilégio de a ter como filha, como a minha primeira filha, inchei de orgulho e admiração por um ser tão perfeito e belo, desconhecedora do que era sofrer para lá de um joelho esfolado, ou de uma palmada no rabo para sacudir o pó e repor o respeitinho e a ordem.

Não há mais vestidos no guarda-roupa. E já não há numeros nas lojas de criança.
Mas agora ela tem umas pernas muito grandes e desengonçadas, ja não veste na Zippy e muito menos concede usar um vestido, nem sequer aos domingos: o que ela quer é sapatilhas da moda e romarias à Bershka. Com alguma acne simbólica chegou também a melancolia de uma primeira infância que fica para trás a cada minuto que passa. Pelo menos já me foi concedida essa epifania: percebo que isto é brutalmente mais doloroso para ela do que para mim. O que não quer dizer que não tenha também as minhas dores de crescimento.

Sei que vamos sobreviver, mas que vai haver turbulência, alta tensão e pontualmente decibéis acima do aconselhável. Birras e finca-pés. Lágrimas e rebeldia. Mas, quem sabe, um dia, chegarei perto do estereótipo idílico que sonhei: a filha da mãe, inseparáveis e cúmplices, como éramos até há tão pouco tempo.

Lembro-me agora de algo que me diziam amiúde, e que me tirava instantaneamente do sério, quando começaram as guerras da pespinetice adolescente lá por casa (ainda ontem também  eu era uma adolescente  rebelde), com violentas discussões com a minha mãe, ao colo da qual voltei de mansinho quando cheguei aos vinte, depois de um afastamento que quase soou a repelência durante quase meia dúzia de anos terríveis: “Vocês andam as duas às turras porque são farinha do mesmo saco: tal mãe, tal filha.”

Espero que a história também aqui se repita.

Mãe é mãe. Não há cá "irmães".

Por enquanto, nestes dias de férias, em que tudo é uma seca, em que a obrigamos a ouvir música de velhos (ouviu Simon & Garfunkel noutro dia, na Comercial, e concedeu que essa música de velhos era fixe – o fantasma do meu Natal passado fez-me recordar que senti o mesmo quando os meus pais me deram a ouvir o “Sound of Silence”), em que nem o facto de eu ter ido ao “Monster” com ela na Feira de São Mateus rodopiar em loopings assombrosos que me revolveram o estômago e me puseram na fronteira do ataque de pânico  (mais um sinal óbvio de que estou a envelhecer…) foi proeza suficiente para voltar a ser a sua mãe querida e adorada, apercebo-me de que, agora, é tempo de a deixar descobrir quem ela é sem grandes intervenções, limitar-me a assistir, de forma mais ou menos passiva, em quem ela se transformará, orientando apenas de forma muito subliminar qualquer tentativa de moldar o curso dos eventos (mãe é mãe e sei que vai ser mais forte que eu – mais outra epifania).

Isso e estar preparada para aumentar o volume de cabelos brancos, nesta viagem alucinante que nos chegou nas férias do verão (era só suposto desfraldar as bebés e introduzir a cadelita recém-adoptada também no controlo dos esfíncteres).

E, agora, boas férias! Para quem é pai e mãe (sobretudo de adolescentes), o código do trabalho devia conceder dois ou três dias de bonificação para recuperação: férias das férias!

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