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quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A família numerosa de quatro patas (um post com miados e latidos, patrocinado por Noé)

Junho de 2013. O tímido, desconfiado e velhote gato Pi, aproxima-se da Aurora pé ante pé.  [Foto: A Família Numerosa]
A Família Numerosa tem muitas patas e pode dividir-se em conjuntos e múltiplos de quatro. É muito peluda, cabeluda e colorida: há pretos, há pardos, há ruivos, há loiros, loiras e morenos. Há olhos castanhos, amarelos, verdes e azuis. A Família Numerosa é assim: uma balbúrdia.

Costumo dizer, a torto e a direito, em jeito de louvor público, que a minha empregada é uma santa sem altar, Nesta casa temos aquilo a que eu chamo o 'ABC' a que nenhuma empregada doméstica no seu perfeito juízo se submete: Animais, Bibelots, Crianças. Abençoada seja Nargiza, que veio da milenar idade de Samarcanda, no Uzbequistão, Ásia Central, para ser o nosso garante de sanidade mental, a senhora organizadora de todas as confusões.

Farrusca, a benjamim, sob a interminável e hipnotizante manta de crochet que ando a fazer há tempo de mais. [Foto: A Família Numerosa]
Durante muito tempo fui conhecida pelo Bairro de Alvalade como a 'filha da senhora dos gatos' (agora serei, eventualmente, conhecida na rua pela 'senhora que tem muitos filhos', ou 'a senhora que está novamente grávida'. De uma coisa tenho a certeza: já sou a senhora; à excepção do porteiro da minha empresa e de uma ou outra peixeira na Praça já ninguém me chama de 'menina'). 

Há um obsessivo-compulsivo em todos nós: há quem preencha os vazios comendo; há quem faça colecções de cromos, mochos, ou memorabilia do Star Wars. Há quem estoire dinheiro em viagens, roupas caras, ou electrodomésticos sofisticadíssimos. Há quem vá ao bingo, aposte tudo na raspadinha ou anestesie a alma na taberna com vinho barato.

Já a minha mãe, dedicou grande parte da sua vida adulta a uma devoção assisiana a estes deuses ronronantes, os gatos, regatando-os, amando-os e compreendendo-os ao ponto de eu estar praticamente convencida de que ela sabe miar e que aqueles grandes bigodes que teima em não arrancar à pinça ou por qualquer outro método à escolha (dizendo por graça que está a tentar tornar-se a primeira mulher a ser aceite no clube restrito dos homens de bigodes) é um sinal inequívoco da sua metamorfose em 'lobisgata'.

Gata Manga apresenta-vos um detalhe do quarto das bebés. Os mais atentos já terão reparado que a minha obsessão é o crochet. [Foto: A Família Numerosa]
Os gatos fazem desde sempre parte da minha vida. 

Ironicamente e, apesar da minha vasta convivência com felinos desde tenra idade, não estou imune à toxoplasmose: aquela doença cque impede as grávidas de comer alface, morangos e carne mal-passada e que leva, estupidamente, ao abandono de milhares de felinos por todo o mundo, por pura ignorância e alarmismo neurótico.

Sou uma grávida muito descontraída, tenho a noção disso. Fui, durante alguns, muitos anos da minha idade adulta uma pessoa muito ansiosa. Pedaços de vida menos doce assim me toldaram. Levei algumas panadas na vida, tropecei em demasiados desaires, fui vítima de estranhas circunstâncias e de injustiças grotescas que, a páginas tantas e durante tempo de mais, me tornaram uma panela de pressão prestes a explodir, apesar do trato tresloucado de falsa extrovertida de que sempre tive fama.

Depois, muito tempo depois, veio a gravidez da Aurora em plena intervenção da troika. As primeiras cólicas da nervoseira do sistema parassimpático surgiram automaticamente com as dúvidas sobre como iríamos sustentar uma família numerosa com um salário cada vez mais confiscado com impostos, taxas e sobretaxas, e um marido a recibos verdes, a descontar mais de 70 por cento do que facturava, entre retenções de IRS, IVA e pagamentos para a segurança social obrigatórios, quando do outro lado havia parcos recebimentos a 60, 120, 360 dias...

Não sei como, nem porque graça, nesse ano em que gerava a Aurora no ventre, baixou em mim a certeza de que tudo se cria e que coisas boas acontecem àqueles que não tiraram esta vida e a outra para embirrar com tudo e todos e à boleia fazer a vida negra ao vizinho do lado. Fiquei submersa numa serenidade que nunca antes tinha vivido - passei até então a minha vida num sobressalto de uma montanha-russa: altos muito altos, baixos muito baixos, bençãos a roçar o milagre, tragédias helénicas deslocadas para a ponta da Península Ibérica. Deixei-me levar por essa calma. Até hoje. Passámos a aproveitar a beleza das coisas pequenas, que não se compram com cartão, sabendo à partida que tudo é efémero e volátil, mas que não vale a pena estar a sofrer por antecipação. Como diz a amiga do peito Catarina Beato: a vida resolve-se sozinha.

Nada nos falta. Nada nos continuará a faltar. Estou certa disso. 

Margot, a rainha-gata-mãe, e o seu incrível e inimitável pantone azul de pelo [Foto: A Família Numerosa]
Desde então os meus níveis de neurose raramente se sobrepõem à razão. Ninguém é perfeito e nem tudo é rosa, mas passei a ser uma pessoa diferente e temo até que os amigos mais próximos desconfiem que ande drunfada em ansiolíticos.

E isto tudo vem a propósito de gatos e toxoplasmose. Para explicar que, cá em casa, não se abandonam gatos só porque o teste de gravidez deu positivo. Aliás, grávida de 32 semanas e com desgosto de ter perdido a minha felina matriarca, a incrível gata azul Margot, para um devastador cancro, rumei a Sete Rios, até ao gatil da União Zoófila, e foi lá que tive a sorte de poder ser a dona do mais inesquecível gato preto de bruxa à prova de todas as superstições: o Neco. 

Fomos nessa Primavera a 'estrela da companhia' da União Zoófila. Habituados que estamos a quebrar estereótipos e clichés, foi com gosto que participámos, já no estatuto de família numerosa com três filhos, numa dupla campanha de sensibilização à adopção de gatos pretos (os preteridos por estúpidas crendices), e pela queda do mito que uma grávida, não imune à toxoplasmose, não pode ter contacto algum com felinos.

Neco e Aurora, com uma semana de vida - amor sem fim. [Foto: A Família Numerosa]
Neco, o gato mais inesquecível desta casa, protege a Aurora das cólicas e dos sonhos maus [Foto: A Família Numerosa] 
O meu amor pelos meus gatos é idêntico e inspirado na sua personalidade independente (diria até displicente). Não lhes compro roupinhas, não os apaparico com saquetas gourmet com descrições e ingredientes idênticos à nova ementa do Eleven, não os trato como filhos, mas sim como gatos que são. 

Sei bem que eles é que marcam a agenda nesta casa, sei que eles é que escolhem quem é o seu dono, apesar de ser sempre eu a alimentá-los e sempre o João a limpar-lhes o caixote - isso não interfere com as suas preferências ou escolhas. A decisão de compra de um sofá também nunca é motivo de angústia: há-de ser sempre o maior e o mais barato da loja sueca, pois nesta casa amam-se mais os gatos que os sofás onde eles afiam as garras alegremente. 

Mas são gatos, não são filhos. Mas é claro que fazem parte da família. Fazemos por eles tudo o que estiver ao nosso alcance. Amamo-los a uma certa distância porque é assim que eles mais gostam.

O Neco, porém, foi um dos gatos que mais me marcou, apesar de ter esgotado as suas nove vidas num curto espaço de dez meses felizes que esteve ao nosso lado, sucumbindo súbita e fulminantemente a uma misteriosa doença na véspera do passado ano novo. Quem cresceu com uma mãe armada em 'Noé da Gataria' ganha um calo e uma imunidade à sua perda à prova de bala, Vai-se adquirindo uma certa insensibilidade. Dizem os entendidos que essa é, até, uma das grandes virtudes de uma criança conviver com um animal de estimação: ter conhecimento e experiência da morte, essa inevitabilidade da vida. 

E eu há muito que eu não chorava pela perda de um gato. Ainda hoje, quase um ano depois de o ter perdido, escrevo estas palavras de olhos marejados. Há coisas que não se explicam.

A Montanha Mágica - Cenoura, Manga e o Livro de Thomas Mann lá atrás na prateleira [Foto: A Família Numerosa]
Falta apresentar o Cenoura. É também um ex-inquilino da União Zoófila. Era o António bebé hiperactivo e soubemos que ele estava destinado a ser o nosso cão, quando se deixou abraçar violentamente pela peste loira endiabrada, sem exibir qualquer reacção de excitação, medo, ou terror. 

Trouxemo-lo à experiência, sem que as voluntárias da Associação estivessem convencidas que trazer um cão abandonado, traumatizado, e já adulto a virar para o sénior, para uma casa com crianças barulhentas e gatos peneirentos, ia dar bom resultado. Nós não duvidámos que era uma boa ideia. A sorte protege os audases, a vida resolve-se sozinha e o canídeo queria um sofá quentinho onde se aninhar.

O resultado está à vista. É que cá em casa há uma regra muito simples: a chave de tudo é o amor e é o respeito.

Chamem-nos subsversivos, liguem para a Protecção de Menores horrorizados, mas cá por casa damo-nos como cão e gato. Somos fiéis a esse princípio como um cão que segue incondicionalmente o seu dono até ao fim do mundo. Claro que nos sabemos diferentes em feitios e manhas: há uns independentes, outros carentes e ainda uns mais submissos que outros. Rosnamos alto, às vezes até bufamos uns aos outros. Já houve dias de valentes uivadelas (sei lá se estava lua cheia...).

Mas, no final, amamo-nos e somos felizes como um rom rom do fundo das entranhas, e levamos a vida com a mesma alegria de um cão a escavar um buraco muito fundo na terra, para guardar aquele osso.

Este é o nosso tesouro.

3 comentários:

  1. Em casa dos meus pais, sempre tive gatos e cães. Agora na minha tenho dois que adoro, ambos do mais rafeiro que há. O Trico, ninguém dava nada por ele de tão enfezado quando era bebé, é agora um gatarrão doce e esgrouviado. A Syrah calma mas desconfiada veio-lhe fazer companhia depois de abandonada em bebé. Ter animais é tudo isso que tão bem escreveste, é serem peça única de um puzzle sempre em construção.

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  2. Caramba!!!! Escreves mesmo bem!

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  3. Ai esse cenoura...tão lindo e paciente.
    Obrigada pela escrita.

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