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sexta-feira, 18 de julho de 2014

Aurora, a 'fadinha carrancuda'


[Foto: Raquel Brinca (www.hug.pt) - ela tem o melhor emprego do mundo]


O meu irmão Leonardo, varão primogénito e génio da família, conta muitas vezes esta história: quando eu era pequenina e a mira técnica estática e hipnótica da RTP era pontualmente interrompida para uma curta emissão com muitos interlúdios musicais e locutoras de continuidade, passava no bloco infantil, entre animações de leste do Vasco Granja, uma série que não era o Marco nem a Heidi mas parecida, que eu, seguia com afinco adicto, ansiando o desvendar da premissa aterrorizadora mas básica da narrativa, que contava a história de uma menina procurava pelo mundo inteiro pela sua desaparecida mãe. A cada pista, surgia outra, a cada porta, novo enigma, até que, muitas dezenas de episódios depois, a menina finalmente encontra a mãe. Sepultada num cemitério.

O Leonardo diz que eu chorei durante dias a fio; que tive terrores nocturnos, que me alapei à minha mãe, pedindo-lhe imortalidade durante meses e meses. Esta terá sido a minha primeira confrontação com a morte de uma mãe, mas, apesar do choque e do trauma que vai sendo recordado em jantares de família, não me lembro de nada.

O que eu me lembro é de uma série, com bonequinhos de plasticina, ou animação muito rude, que contava a história de uma princesa que não sorria por nada deste mundo. A cada episódio, que tinha menos de um minuto, pelo menos na minha lembrança, e sempre o mesmo cenário e alinhamento da acção, vários candidatos desfilavam e tentavam a sua sorte, recorrendo a todo o tipo de truques para fazê-la sorrir.

Apesar das esforçadas tentativas, a princesa continuava inexpressiva, carrancuda no seu balcãozito real.
O episódio acbava com umas cortina de veludo fechadas sobre a princesa sisuda, numa enorme frustração do rei, criatura simpática e sorridente, até que um dia, um príncipe tímido, provavelmente com poucas competências sociais como o meu,  traz um par de óculos à princesa, desvendando a todos que o seu único problema era apenas uma miopia do raio. E assim viveram felizes para todo o sempre, vestido de noiva a condizer com os óculos de fundo de garrafa, e sorrisos e gargalhadas contagiantes pela vida fora, compensando todo o tempo perdido.

A Aurora, a minha linda terceira filha, lembra-me muitas vezes esta princesa e esta série que gravei na memória da primeira infância. Ao contrário dos irmãos, ao mês de vida, a Aurora, que podia muito bem ter-se chamado Serena, ainda não sorria. Só aos anjos, enquanto dormia, sonhando com sabe-se lá o quê.

Todos nós nos atropelávamos em palhaçadas, caretas, cantilenas, danças exóticas para fazê-la sorrir, mas era e foi tudo em vão: a menina muito morena (a primeira morena da família numerosa) permanecia seráfica, com os seus olhos muito negros, atenta a tudo ao seu redor, mas sem esboçar qualquer sorriso.

Ao segundo dia de vida, ainda na Maternidade, a recuperar da terceira cesariana como quem vai fazer a manicure ou ao spa, o quarto com magotes de visitas, sob o olhar gélido de reprovação e censura da enfermeira, e a Aurora também permanecia impávida no seu berço de design, em acrílico, sem sombra de cólicas ou outros desconfortos desse acto violento que é nascer. De repente, e sem aviso, sou atacada por aquilo a que as enfermeiras mais tarde me contaram ter o nome pouco científico de 'dores tortas'. Pedi todas as drogas disponíveis, supliquei por morfina com menos graça que o Doutor House, mas deram-me Benurons. Uma pessoa é atropelada por um camião e dão-lhe benurons de oito em oito horas... É o calvário da abstinência de fármacos da amamentação...

'Como é que eu me fui meter nesta outra vez?', lembro-me eu de ter pensado, sem querer saber do prémio de consolação que a enfermeira trazia com as unidoses de paracetamol: 'Quando a mãe tem as dores, o bebé é um santo; vai ser uma santinha, aguente-se e agarre-se a isso, que já passa!'

A minha Aurora ainda hoje não sorri muito - só o António lhe arranca gargalhadas, de uma forma quase violenta, entre sustos e gritarias. E ela segue serena e segura pela vida. Impassível.


Com poucas semanas de vida, esta menina com nome de princesa Disney adormecida por um feitiço da fada despeitada por não ter sido convidada para a festa de baptizado, ganhou a alcunha 'fadinha carrancuda'.

É gabada e endeusada pelas educadoras da creche, onde ingressou com apenas cinco meses (nesta família numerosa a mãe trabalha, tem uma carreira intensa e stressante, e não é baptizada nem vai à missa), que a elegem o bebé do ano, como na revista Maria, derretendo-se pela facilidade no trato. É certo que eu a levo sempre vestida de princesa - tenho a teoria que se forem sempre bem vestidos são sempre mais bem tratados do que aqueles que vão de pijama ou fato-de-treino - e que os seus caracóis pretos, decorados por bandoletes com florinhas coloridas e em pendant com os vestidinhos pirosos ajudam à festa. Mas o magnetismo seráfico desta menina tem o que se lhe diga. Todos a rodeiam para a fazer feliz.

A 'fadinha carrancuda' é a única filha não sagitariana da prole.
Foi concebida em dia de Tempestade, a meio de Agosto e do Atlântico, na Ilha onde o Arcanjo São Miguel cavou o seu quintal na Terra. Na noite em que a Tempestade Gordon atingiu a ilha, despenteando-a violentamente , a Aurora decidiu que estava na hora de vir com a força do vento, embalada pelas ondas revoltas do mar . Ela é, porém, a antítese da tempestade. É talvez o dia seguinte; é a bonança, o dia de sol luminoso; é a esperança que a primeira luz do dia traz sempre quando bate pela janela.

A Aurora teve o epíteto de filha mais nova por muito pouco tempo. A pequenina, doce e serena Aurora (cujo único detalhe perturbador é o de gostar de dormir e brincar com um livro de Trotsky) será, não tarda, a irmã... nem sei que irmã é... talvez a do meio? Será pouco mais do que um ano e meio mais velha que a sua irmã / irmão - numa quarta cesariana de alto risco, dizem os médicos.

Estou a rezar pelas "dores tortas". Porque a Aurora roça a perfeição.




4 comentários:

  1. Adorei encontrar-vos, família numerosa!

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  2. Minha linda amiga escritora, a tua amiga "leitora"adorou recordar estas hitórias anteriormente contadas em primeira mão!! :)
    Promete-me uma coisa: arquiva e compila estes espisódios para poder lê-los mais tarde editados em livro... Prometes?!?!?!! :)
    Adoro-vos!! E... Parabéns!! Que tenhas um dia muito feliz. Joana Vilela

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  3. Vim a "convite" do blogue da Catarina, e dizer o quê quando uma 1ª página nos preenche de tal forma e deixa assim sem palavras? Obrigada e felicidades :)

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  4. Muito obrigada pelas vossas palavras.

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