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quarta-feira, 23 de julho de 2014

E agora tu, filha*


Tu és a maior surpresa das nossas vidas.
Dizem que aos últimos batimentos cardíacos da  maratona que é a vida, que ao último fio de ar que segue vagoroso e trôpego, em marcha fúnebre, do pelinho à entrada da narina até ao mais longínquo bronquíolo do pulmão, surgirão, em forma de relâmpagos, os acontecimentos mais incríveis da história mais curta ou mais comprida que nos calhou na rifa e que, se não formos incautos, deixaremos algures escrita, ainda que em fragmentos idênticos a um quebra-cabeças, para memória futura.

A manhã em que eu soube que existias em mim será um clarão nessa retrospectiva burlesca da minha vida.

Perdi o chão. Faltou-me o ar. Ouvi um zumbido e o mundo começou a rodopiar como num pião atirado lá do alto com muita corda e a película do filme ficou amarelada - sempre que estou para desmaiar vejo tudo a sépia.

Foste feita na Primavera. Não sabemos bem ao certo quando; nada bate certo nesta gravidez: datas, contracepções, calendários - tudo em desvario.
A Primavera marca as nossas vidas desde o dia do ponto de exclamação. Tu não és excepção; és mais uma tatuagem daquele período feliz do ano em que tudo brota.

Demorei muito tempo a aterrar; tempo de mais a ficar feliz pela tua chegada espampanante sem convite ou aviso.
As melhores coisas acontecem sempre quando menos esperamos; a frase é batida mas é uma verdade absoluta. Não será, portanto, fácil perdoar-me por ter demorado tempo de mais a ficar feliz.
(Não faças grandes planos para a vida; ainda estragas os planos que a vida tem para ti.)

A Medicina diabolizou a quarta cesariana.
A última coisa que o simpático e sorridente médico que arrancou os teus irmãos do meu ventre me disse, nem uma dúzia de meses antes de eu regressar aterrorizada ao seu consultório, no fresquinho e pacato Jardim das Amoreiras, foi: "Eu perdi muito tempo a costurá-la (como se tivesse estado na aula de louvores a fazer ponto de cruz, seguido de ponto de pé de flor); não é para voltar a abrir (já à bruta, como se fosse uma costureirinha de vão de escada a colocar um fecho eclair ou a fazer uma bainha em cinco minutos). Há riscos enormes numa futura gravidez (com a gravidade de um fado em tom menor misturado por um DJ com a trilha de um filme de terror)"

Afinal, não é bem assim: há riscos, alguns são chatos, alguns são assim-assim. Há um desfile de complicações variadas que nos podem apanhar algures pelos nove meses desta gravidez (já vamos a mais de metade), mas à excepção das violentas náuseas e enjoos em modo de estação de serviço, aberta 24 horas por dia, nada a registar, para já, no Livro do Bebé, a não ser menos uns quilos desejáveis na balança.

Ou então, pode correr tudo bem.
Eu nem sou optimista de natureza, filha. Sou estruturalmente deprimida só que sei fingir muito bem que a vida é uma festa e que este é o fabuloso destino dos Leiria-Ralha, realizada por Baz Luhrman e com banda sonora de Yann Tiersen.
E quanto queres apostar que vai correr tudo bem? E que, em Dezembro, vou sentir o coração a explodir, assombrado, quando te colocarem pela primeira vez ao meu lado? (quando a vida se estiver a despedir de mim, vou demorar-me nesse momento em que vos vi pela primeira vez).

Contei ao mundo que vinhas na noite de Santo António.
É a noite dos amores, é a noite do menino, dos manjericos e das sardinhas assadas. É a noite da cidade em que vens nascer.
A gente não vai à igreja mas gosta dos santos. Temos prateleiras cheias de Galos de Barcelos e de santinhos do pau oco; alguns até brilham no escuro, outros têm mantos metereológicos.

O mundo acolheu e espalhou a notícia com uma alegria contagiante. Eu então respirei fundo como quem se prepara para fazer um feito heróico, ou algo tão banal como ter um filho. E fiquei, então, inundada de paz e luz. Com a bênção do santo.

Eu nem sabia que sonhava contigo, filha. Que a história trazia mais uns capítulos, num novo tomo, que nos seria apresentada de surpresa uma nova personagem principal.
Esta história é interminável.
Vem contar-nos o futuro.


*Se fores um menino, desculpa a mãe. O pai encarregar-se-á de fazer o que ele faz como ninguém: limpar gralhas, semear vírgulas, alterar o género do princípio ao fim destas linhas. Posso sempre culpar a médica que nos disse às treze semanas de gestação que eras quase de certeza uma menina; que raramente se enganava e nunca tinha dúvidas, que ela era muito boa no ofício de deslindar sombras indistintas no ecrã, como num teste psiquiátrico de Rocharch.

7 comentários:

  1. E chegamos ao fim da leitura com um sorriso, felizes por partilharmos dessa felicade espantada...

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  2. Finalmente alguém que se lembra da história da princesa!! Já falei variadas vezes sobre essa série, mas ninguém até à data se recordava :( cheguei a duvidar se a minha cabeça teria inventado!! Afinal há outro testemunho ;)

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  3. Ana, estamos juntas :) Fico feliz de saber que alguém a recorda tal e qual como eu!

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  4. Se tivesse que explicar este blogue em uma única palavra - Arrebatador.
    Tão bem escrito, a capacidade de brincar com as palavras é maravilhosa.

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  5. Obrigada Dia por partilhares a tua/vossa vida fico de coração cheio. É de facto arrebatador e contagiante e eu estou tão lamechas desde que fui mãe que fico lavada em lágrimas.

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  6. Encontrei por acaso... Ou talvez não. Vai correr bem, a minha amiga M. fez 4 cesarianas e tem os 4 respectivos filhos lindos! É preciso calma e descontracção. ;)

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