Quem faz um blog fá-lo por gosto

terça-feira, 28 de abril de 2015

A Fada dos Dentes (e um fenómeno do Entroncamento)


Este post nãoé patrocinado pelo Lidl, mas adoramos estes gelados e as suas caixas que depois guardam Legos, cartas de Invizimalz e bolachas FOTO: A Família Numerosa

Não foi uma estreia: esta família é pródiga em acontecimentos odontológicos paranormais. Não tendo sido inédito foi o quanto baste para eu me sentir a pior mãe do mundo.

Mas recuemos no tempo – apertem o cinto de segurança: esta história vai andar para trás e para a frente; é um recurso estilístico recorrente e hoje, passados estes dias todos de pousio, quero demorar-me neste quintal, quero revolver bem esta terra, para depois, com um pouco de sorte e com todo o trabalho árduo que, só quem ousou plantar um jardim sabe do que falo, possa colher os frutos desta sementeira.

Não foi novidade, já vos disse e volto à mesma tecla. Uma das primeiras vezes que me senti o centro do mundo no mau sentido foi numa cadeira de dentista. Mas esse foi também o princípio de uma grande amizade. Uma amizade improvável. É que fiz uma amiga à prova de alicates, brocas, seringas com anestésicos capazes de me adormecer o nariz empinado. E coisa mais preciosa não há. Nunca fomos ao café, como fazem os amigos, nunca nos vimos sem ela estar de bata branca. A nossa relação nasceu numa cadeira articulada de um dentista e envolveu luvas de borracha e instrumentos esterilizados.

Foi a única vez que fiz uma amiga de boca aberta, mas sem dizer um pio. E isso é obra.

Arrancou-me doze dentes no total, desvitalizou-me outros tantos, riu e chorou com as minhas histórias mirabolantes e eventos extraordinários, viu-me crescer, passar fases boas e fases terríveis. Era talvez um pouco mais velha que eu, nada de muito relevante: a verdade é que quando somos novos não reparamos nessa coisa da idade, mas a meio de um tratamento qualquer, dos milhentos a que me submeti naquele gabinetezito à Praça de Espanha, vi-a crescer e a tornar-se mãe como eu. Éramos da mesma geração.

A cada desaire, a cada tragédia pessoal assistiu-me a ir ao fundo e a voltar com o fôlego sôfrego à superfície. Viu-me a ganhar peso e a quase nunca conseguir perdê-lo na totalidade. Conheceu-me solteira, Lolita encantadora de dentes encavalitados, a espalhar charme a meio mundo e depois, de um momento para o outro, já com titânio colado aos dentes e elásticos cor-de-rosa a alinharem o sorriso, viu-me mãe solteira e a sofrer com isso. Conheceu dois dos meus filhos e chegou a tratar-me cáries com um bebé agarrado à mama. Sei que ficou feliz e aliviada quando percebeu que o João não era efabulação, que existia mesmo, que não era um amigo imaginário, um delírio meu, e branqueou-me o sorriso, para condizer com o vestido do meu casamento, há quase oito anos.

Ela endireitou-me não só os dentes mas a vida também. O nome dela era Sofia, Sofia Margarido. Sei que, neste momento, onde quer que esteja, está a rir à gargalhada com o que eu me fui lembrar. Mas eu nunca a esquecerei.

Foi há uma vida que nos conhecemos. Conhecemo-nos aleatoriamente, arranjinho do bom do destino.
Ali estava eu com as mandíbulas abertas e totalmente expostas, dentes em gigantesco desalinho e apinhamento, sem grande dignidade, diga-se, porque ninguém mantém a compostura na cadeira do dentista, com tanta gengiva e tanta saliva à mostra.

Hirta e desconfortável, incapaz de balbuciar fosse o que fosse de forma perceptível, encontrei-a numa primeira consulta com uma jovem dentista que tinha acordo com o seguro de saúde que o meu antigo patrão, o rei dos supermercados e dos jornais de referência, oferecia a todos quantos trazia para a grande família Sonae.

E, de repente, chega o RX tirado minutos antes, acende-se a luz fluorescente para ver o state of the art da cremalheira da jovem de pouco mais de vinte aninhos e vem o silêncio, alguns hmmm, a cabeça da jovem dentista inclinada para a direita e depois para a esquerda, o RX arrancado da caixa de luz, eu de boca aberta com o aspirador de baba a um cantinho, e a dentista: ‘é só um bocadinho, vou só ali a um gabinete mostrar o seu RX’.

Começou o burburinho. Seguiu-se uma peregrinação ao pequeno consultório com porta de fole. Vieram de muitos gabinetes, em romaria, contar os dentes revelados em chapa por uma carga catita de radiação. Eu lá continuei de boca aberta sem perceber o que me acabara de acontecer.

Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito. Era muito juízo junto em tão tenra idade. A chapa do RX revelou um totoloto de dentes do siso. Eram oito, mais quatro do que a maioria da gente que ainda se dá ao trabalho de parir estes dentes sem sentido.

Foi assim que nos conhecemos. Uma espécie de fenómeno do Entroncamento dos estomatologistas. Uma protegida da Fada dos Dentes. Um horror para os seguros de saúde.

Hoje tenho menos quatro dentes do que era suposto, tantos quantos foram necessários para poder ter uma boca e um sorriso arrumadinho. As arrumações têm sempre que começar por algum lado e na minha vida começámos por ali.

Já não tenho dentes em cima uns dos outros – guardo o molde em gesso para relembrar esses tempos em desalinho. Trago o peso na consciência de ter renegado uma característica genética do meu pai, que me unia a ele e aos meus três irmãos: os dentes encavalitados (agarro-me ao meu canino rilhão). E tal como uma pessoa que foi muito tempo gorda e depois emagreceu metade da pessoa que os seus pés sustinham, às vezes ainda não me reconheço.

Tal como um filho da terra que dela parte à procura de alguma coisa, também os meus dentes se sentem apátridas onde foram metidos à força e andam sempre com ganas de voltar ao sítio onde foram felizes. Parto o aro metálico de contenção do sorriso milimetricamente planeado a comer um entrecosto, ou uma broa de milho e tenho que ir de imediato repô-lo. Porque sem amarras, eles nem estão de modos: vão sempre regressar a casa. O que nasce torto…


Adiante.
Tive um molar temperamental que a cada filho parido decidiu juntar um ‘t’ ao verbo parir, partindo-se (dentes brincando com as palavras, que delícia).
A Sofia domou esse molar com tendências suicidas das duas primeiras vezes com arte e mestria – amálgamas perfeitas, danos escondidos em jeito de escultura.
Tinha a Aurora bebé quando o teimoso molar se estilhaçou de novo. 
Cada filho cada dente - e eu sempre a esquecer-me do cheque dentista do SNS. Estava a tomar café na Avenida de Roma - junto à linha do comboio. Voltei aos provérbios e optei por não deixar para amanhã o que podia muito bem ser feito naquele hoje.
 Da esplanada para uma torre de telemóvel, dali para o consultório, e já a imaginar a cara da Sofia quando lhe mostrasse a surpresa muito morena que lhe traria.

Do outro lado da chamada, a Sandra, a recepcionista que (re)conheço há uma vida, fez o melhor que pôde e o incómodo era audível pelo meu tímpano, que ferveu de imediato. Ninguém devia ser obrigado a dar uma notícia destas pelo telefone e a Sandra já teve de o fazer vezes e vezes sem conta… 
A minha amiga morreu.
Eu tive outro filho.
O meu molar não resistiu. Arranquei-o a semana passada.
Tentei, mas não consegui voltar à Praça de Espanha, onde a minha amiga Sofia descobriu que eu tinha juízo a dobrar, pelo menos a acreditar na sabedoria popular.


Temos muitas formas de caminhar por esta vida. A minha não é mais nem menos válida que a vossa, que a do meu vizinho ou mesmo que a do meu marido, aqui ao meu lado, o único ser com quem consigo trabalhar em equipa, a criatura que tem o condão de revelar o melhor que há em mim e de o multiplicar por duas criaturas loiras e duas criaturas escuras, com quem partilho tanta coisa, quase tudo menos a maneira como vejo o grande plano desta vida, a metáfora perfeita de que sentido terá ela.
Eu sinto que esta vida anda toda entrelaçada. É coisa de crocheteira, de quem, na infância, ajudou a mãe a desenredar muitas meadas de lã eriçadas umas nas outras, num Mikado diabólico. Era preferível se fosse um tear: tudo certinho, linhas certas onde não se conseguiria escrever o destino torto.
Mas não é bem assim e eu vejo a minha vida toda como uma meada de uma lã grossa de uma cor muito vibrante, como um magenta, que se enredou com outras meadas de muitas cores, de muitas fibras, umas ásperas, outras macias, umas finíssimas como uma teia de aranha, outras fortes como um cabo de aço. E para todas elas, para todas as vidas, há uma saída desse turbilhão de fios. Por vezes, o emaranhado foi deliberado, mas outras houve em que pode ter sido apenas um gato brincalhão deliciado com um novelo a amarfanhar todos os fios-destinos das marionetas que somos todos nós. Há sempre mais do que uma saída, mais ou menos atribulada, mexendo em mais ou menos fios, abraçando-os, tropeçando neles, armando mais confusão ainda, chegando a bom-porto sozinho ou acompanhado.

Não estaria onde estou se não tivesse oito dentes do siso. E apesar dela já cá não estar neste mundo, foi graças à Sofia Margarido que posso hoje escrever esta história – fui ali buscar o seu novelo e comecei a tricotar esta história (há muitos fios para rematar, espero não deixar cair uma malha que desabe toda esta história.)

É graças à Sofia que conheço outra dentista que trata do sorriso dos meus filhos. Elas nem se conhecem, acredito que isto esteja sempre a acontecer entre médicos – recomendam-se mutuamente sem grandes conhecimentos a não ser o da reputação que os precede.

Como disse: não me deveria ter chocado assim tanto. A Carolina começou com o fado da mandíbula aos seis anitos, quando fui para uma consulta de rotina e a Dra. Joana Farto me fez ver que a rapariga não conseguia fechar a boca porque os seus maxilares não lho permitiam. Seguiram-se dois anos de consultas mensais e de amizade a cada apertão de um aparelho chato que foi a tempo de resolver a grande parte do problema.

Não foi portanto a primeira vez que me senti uma péssima mãe. A Carolina não fechava a boca e não cuidei de reparar. E assim como assim, vamos ao dentista em excusrão,à clínica futurista da Dra. Joana e do marido, no meio do campo e só por isto já nos sentimos num filme de ficção científica, na twilight zone entre a broca, a tecnologia de ponta, as diversas especialidades e as ovelhas e o eucaliptal do vizinho.

Entrámos e disse à Dra. Joana Farto: “Doutora, o António está como os tubarões, não lhe caem os dentes de leite por nada e estão a nascer atrás os definitivos”.
Achei que ia ter imensa graça, que a história ficaria por aqui, o alicate puxava o de leite e o definitivo avançava. Até daí a seis meses.
Mas então a Doutora Joana Farto diz: ‘Rico filho, está tão mal acabadinho! Então e os pais já contaram os dentes do miúdo?’

(Foi a segunda vez que um médico me falou dos acabamentos do querubim. À nascença foram os dedos dos pés e os desabafos do corpo clínico: ‘pelo menos não é uma menina…)’

Eu respondi: ‘Sim, tem duas filas de dentes, os de leite e os definitivos. Foi por isso que cá viemos!’

Façamos um à parte: o meu filho é perfeito. Partiu os dentes da frente com 18 meses, e a cada trambolhão foi encavalitando ainda mais a dentadura. Aos dois anos ganhou uma cicatriz no canto do olho num acidente idiota, que me valeu uma semana de choro de Madalena (a Aurora abriu o lábio e já não levou nem uma gotinha, nem uma lágrima para amostra; estou um couraçado!). À parte os dedos dos pés, o António é perfeito, com as suas pestanas de ouro, a sua covinha na bochecha, a sua pele branca como o leite.

Menino de oiro da sua mãe. FOTO: A Família Numerosa
‘Ò Mãe, o seu filho tem três dentes da frente. Três incisivos! Nunca reparou?’

Já repararam que não se vende Pepsodent cá no burgo, mas ainda usamos a expressão 'sorriso Pepsodent'?

Um, dois, três incisivos. É isto. A Fada dos Dentes pode arranjar um saco-cama cá para casa. Foto: A Família Numerosa


Não, nunca reparámos. Ninguém reparou. Um, dois, três. Três dentes da frente, bem à frente, e não reparámos; ele é perfeito: é o meu menino de ouro que me faz sempre rir, que está sempre a rir, que importa que tenha um dente a mais.
Um fenómeno do Entroncamento. 
Uma mãe galinha com alguns genes de coruja míope que não contou os dentes à sua cria, que nunca foi boa de contas e por isso nem deu conta tão gritante assimetria. Uma dor de cabeça para a Fada dos Dentes que em tempos de crise vê-se na contingência de ter que aumentar o orçamento para deixar a sua magia debaixo da almofada do tubarão Ralha. Já sem para falar que, com tanto dente que vai ter que vir cá buscar, mais valia montar aqui a barraquinha, montar uma sucursal ou coisa que o valha.


Uma história que se podia resumir a dez palavras – o António tem três dentes à frente e ninguém reparou– mas que andou aqui às voltas, às voltas, retirada do turbilhão de linhas cruzadas que é a nossa vida.

5 comentários:

  1. Uma história que me encantou. E o miúdo é giro que se farta. Perfeito.

    ResponderEliminar
  2. Pois olha, eu gostei bastante desta história. Já agora, eu só tenho 24 dentes. Nunca tive os do siso, e em miúda o dentista tirou-me quatro para que os que ficavam tivessem espaço. Mesmo assim, não são a coisa mais direita que existe...

    ResponderEliminar
  3. Que história linda! Já a tinha ouvido noutra versão. Já vos conhecia sem nunca vos ter encontrado. Pela minha filha, a Sofia Margarido.
    A amizade que lhe dedicou foi recíproca. A ternura com que a recorda comoveu o meu coração e roubou-me sentidas lágrimas.
    Bem Haja pela beleza que viu nela, pelos momentos bons que passaram juntas, pelas gargalhadas que soltaram. Bem Haja por a ter lembrado por a ter incluído na sua história familiar e por manter viva a sua memória.

    ResponderEliminar
  4. Este post deixou-me tão triste que nem imagina! Conheço a Dra. Sofia Margarido, mas há anos que deixei de ir ao consultório porque o acordo com a ADM terminou. Queria lá voltar, precisamente com os meus filhos e agora quando li pensei - Não! Não pode ser... até porque a recepcionista se chama Fátima.
    Até tive medo de ligar para a clínica, mas liguei e infelizmente falava da minha Dra. Margarida.
    Foi a primeira a saber que eu estava grávida e que me arranjou os dentes com uma enorme paciência, durante e depois da gravidez. Que viu o dente do meu filho quando deu uma queda e o rachou.
    Que me contava os seus episódios quando estava a tentar voltar para as forças armadas :(
    Lamento imenso.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Infelizmente partiu, mas deixou para trás muitos amigos e pacientes que não a esqueceram e que têm dela uma grata recordação.É bom para mim, sua mãe, sentir que não foi esquecida e que na sua passagem espalhou alegria e fez algo de positivo pelos outros. Bem haja por a ter lembrado.

      Eliminar