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sexta-feira, 8 de maio de 2015

A filha 'Test Drive'


Mãe, faz o test drive à vontade, que eu tenho o cinto de segurança apertado. FOTO: A Família Numerosa.

A Carolina é a minha filha 'test drive'.

A brilhante analogia não é minha: eu queixava-me da água na barba que ela, inexplicavelmente, me começara a dar de há um ano para cá, à conversa com uma amiga que levou com um rosário de ais só por ter tido a má sorte de me perguntar como estavam as coisas com a mais velha:

‘Ai, o que me haveria de calhar, ai que adolescência tão longa, ai, que ninguém merece, ai, logo agora quando eu ando para aqui num difícil equilibrismo em cima da corda bamba, a fazer acrobacias circenses com um bebé no colo, uma recém-nascida pendurada na mama e um puto charila com défice de concentração para acalmar e apoiar na complexa missão de aprender a ler e a escrever...’

E a minha amiga-guru Raquel Brinca alertou-me do alto da sua sabedoria serena: 'Cuidado, vai com calma, ela é a tua filha 'test drive''.

Junho de 2014 - A Carolina faz o 'test drive' de pegar ao colo na irmã Aurora. Saiu-se muito bem. Foto: A Família Numerosa
Franzi o sobrolho e, passado um segundo ou dois, abanei a cabeça para cima e para baixo em sinal afirmativo.
Depois comecei a gingar o pescoço para um lado e para o outro, em negação, cheiinha de culpa: ando aqui preocupada com os filhos-sanduíche, os entalados e nem parei para fazer essa óbvia reflexão. É com o filho mais velho que testamos tudo; é com a Carolina que pomos à prova que tipo de pais estamos e queremos ser. E, por vezes, mudamos de estratégia abruptamente, travamos a fundo, guinamos o volante, inversão de marcha, tracção às quatro rodas. E quando a viagem não nos leva ao destino que esperávamos, e pomos em causa o que achávamos serem verdades absolutas da parentalidade, lá está o filho 'test drive' no banco de trás, como um 'crash test dummy'.

Andamos aos apalpões, às cegas, a jogar ao quarto escuro com os filhos. É divertido, claro que é; é viciante o abismo de seguir em frente sem ter bem a certeza do que se encontrará no segundo a seguir: prego a fundo e depois venha o teste dos travões.

Mas às vezes atropelamos, amassamos, mandamos uma cotovelada ou um encontrão ao filho 'test drive'. Sem querer, sem maldade: são mesmo assim as regras do jogo. E o primeiro filho é o que sai com mais nódoas negras. Não há sistema de segurança que nos valha. No banco da frente ou no banco de trás: vamos testando tudo, ligando os faróis, tocando a buzina, vamo-nos habituando a conduzir os filhos. 

Andamos nisto sem mapa ou bussola. Com o filho mais velho é sempre uma primeira vez e vamos pela intuição. Navegar é preciso, mesmo que às vezes seja à deriva. à tentativa e ao erro.

Depois acontece o triste espectáculo de engatarmos a mesma mudança e cairmos no ridículo. Damos uma de saudosistas. Na verdade, nem é isso: estamos tão à rasca, sem saber o que fazer, para que lado virar o leme, que encarnamos os nossos pais (eles são o nosso maior exemplo, mesmo que o psicoterapeuta os culpe por todos os danos colaterais do seu amor).

E então, e sempre por oposição, sacamos da nossa infância, douramos a pílula e temos alucinações colectivas – que outra explicação se pode dar para justificar como éramos uns santinhos, meninas e meninos obedientes e cheias de respeito pelos mais velhos?

Enunciamos chorrilhos de lamúrias que jurámos nunca pronunciar: de como era difícil a vida, que não comíamos bolachas todos os dias, que a televisão só começava ao final da tarde e dava uns desenhos animados marados, que comíamos fígado e mão de vaca, ah e geralmente também nos dá para dizer que só tínhamos um par de sapatos.

Mãe, a avó disse-me que nunca comeste mão de vaca na vida! Foto: A Família Numerosa

A minha filha ‘test drive’ é uma boa miúda, e eu tenho que ir com calma, relaxar; a pressão nunca fez bem a ninguém a não ser à panela quando coze leguminosas, e que eu saiba, até mesmo a panela explode de vez em quando, entornando o caldo em proporções nunca antes imaginadas.

São só onze anos de idade, a vida toda à espera, e está bem que é a primeira vez a haver negativas nesta casa, a haver mentiras descaradas e com a perna mais curta que a minha, a haver portas fechadas, pudores e segredinho. Mas nada disso é o suficiente para vaticinar um futuro sombrio, um cadastro eterno a perseguir a filha 'test drive': são infracções ridículas face ao que ainda está para vir, face ao que todos nós, pais, fizemos, se formos a desembaciar bem a parede de vidro da memória.

Ela tem muitos primeiros. Mas só nos lembramos dos maus com o filho 'test drive' quando a amiga nos pergunta: 'como vai a mais velha?'. Primeiras vezes que foram só dela e também nossos, que ela nos entregou sem lhe termos pedido nada. Lembras-te? Foram dela os primeiros cincos nas pautas dos exames nacionais, a melhor aluna da escola, foram dela as primeiras lágrimas de orgulho, a pele a eriçar, quando ela começou a cantar com voz de anjo em frente a toda uma escola, sem lhe tremer a voz ou sem fechar os olhos de medo.

A excelência às vezes chateia, às vezes revolta, queremos ser iguais, deixar de sobressair. 
Eu sei bem, filha, como é, desculpa se só cobro nada mais do que a perfeição. Ao contrário do que eu te disse outro dia ao jantar não tem mal nenhum deixar cair o extra de extraordinário e ser vulgar, normalzinho, nem que seja só para perceber que não há nada tão bom como ser o primeiro.


E tu serás sempre a primeira (mesmo que estejas a meio de uma tabela, serás sempre a primeira). Isso ninguém, mas mesmo ninguém te tira, minha primeira filha.


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