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quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Louvor - uma espécie de bem haja

Texto originalmente publicado na Visão

Trio-maravilha. Foto: A Família Numerosa

Bem haja.

Desde pequena que esta expressão beirã faz parte do meu dicionário genético, do meu léxico sentimental — património que espero ter passado pelo cordão umbilical aos meus quatro filhos.
Quem a usava amiúde — e não ‘a miúda’, como erradamente todos cantavam na épica canção dos Xutos e Pontapés, hoje uma peça de arqueologia musical, onde ficamos a saber que, de Bragança a Lisboa, eram dez horas de distância num tempo em que Portugal não era trespassado por auto-estradas e SCUT — era o meu avô materno, nascido no virar do século passado numa aldeia longínqua de Lafões.

Muitas coisas se têm vindo a perder no tempo.
Há cada vez menos bem no mundo, e talvez por isso o ‘obrigada’, uma palavra bem mais agressiva e carregada do popularizado conceito de dívida, se tenha substituído a este desejo utópico de que a bondade andasse por aí à solta, com todas as benfeitorias do mundo que os homens (também) são capazes (quando andam para aí virados).

A palavra louvor, por exemplo, caiu em desuso.
Usamos cada vez menos palavras para nos exprimirmos e para dizermos de nossa justiça, apesar de termos quase sempre uma palavra a dizer sobre tudo e em toda a parte (olhem para mim aqui, por exemplo).

O dizer de nossa justiça é cada vez mais um dedo apontado, os pratos da balança num equilíbrio instável e volúvel: os livros de reclamações são sempre demasiado pequenos para todo o queixume que anda afiado na ponta da língua, da caneta, ou do dedo a fazer festinhas nos cristais líquidos de um ecrã sensível do nosso telefone, e as caixas de comentários dos blogues e do Facebook acumulam todo o fel e a face mais badalhoca da humanidade.

Agora, quantos de nós se dedicaram nos últimos tempos à prática do louvor? Quantos de nós deixaram um elogio escrito num livro impresso e encadernado para o efeito que não sai da gaveta ou da prateleira, ou mesmo tímida e anonimamente, algures, por aí, na grande e vasta rede, onde neste momento se cruzaram com este texto?

Bem haja, dizia o meu avô.
É uma maneira de estar e de ser. Que anda de braços dados com o louvor, com o reconhecimento. Anda pelas ruas da amargura, e eu estou longe de os praticar com a dose diária recomendada para a qual a OMS devia alertar, deixando as salsichas em paz.
É impressionante como é tão fácil demolir e tão difícil elogiar: sobe uma timidez grotesca para assumir frontal e inequivocamente o que está bem sem um rubor nas maçãs do rosto, ou um desconforto titubeante que nos dá vontade de fugir ou escondermo-nos atrás de algo a roer uma unha.
E, depois, ainda vem o passo a seguir, a tarefa ainda mais difícil: retribuir ao próximo — que até pode ser o mesmo — na mesma conta, peso e medida. Com um bem-haja, com um louvor público afixado na parede.
Pediram-me para ser especialista de assuntos de ‘Família’ e na minha família usamos palavras e expressões esquisitas, que caíram em desuso, como o bem-haja. E cada vez mais usamos a prática do louvor.

Vocês são maravilhosos, filhos! Desculpem os vossos pais que não vos dizem isso todos os dias. Foto: A Família Numerosa.


Temos muito que dar graças.
Vamos a isso:

Na apresentação aos pais e encarregados de educação no início do ano lectivo, o director de turma da minha filha mais velha, um aparentemente indiferenciado professor da temível disciplina de Físico-Química, leccionada numa escola pública do centro de Lisboa com nome de rainha inglesa com vários milhões de intervenção de uma coisa duvidosa chamada Parque Escolar, desarmou-nos a todos, praticando essa coisa estranha do louvor.
“Os vossos filhos são espectaculares”, disse. “Nunca apanhei na minha vida uma turma tão excepcional”, acrescentou. E nós, pais e mães, claro, desconfortáveis na nossa pele, uma espécie de urticária a alastrar, entre o ardor e a comichão insuportável; uma espécie de culpa, uma espécie de descrença.
Mas então não são umas pestes? Uns mal-educados? Uns pré-adolescentes insuportáveis que ninguém consegue controlar e ter mão? Uma geração de arrogantes autocentrados?
E o professor de Fisico-Química, recém-colocado num concurso que, neste ano de eleições, não deu barraca, continuou com a sua lenga-lenga do bem, com um sorriso franco e aberto, deambulando pelas filas de carteiras da sala de aula, esbracejando: “Que miúdos fantásticos! Vocês, pais, estão de parabéns.”
Desde quando nos esquecemos disto?
Qual foi o momento em que passámos do oito para o oitenta? Desde quando é que deixámos de nos maravilhar com toda e qualquer gracinha dos nossos filhos, que durante um enorme período de estado de graça foram sempre os mais lindos, os mais talentosos, os mais precoces e os mais especiais? Por que raio deixamos nós, pais, de nos deslumbrar com os filhos a certa altura da sua infância, e lhes passamos a cobrar uma perfeição absurda, à prova de erro, negando-lhes parte da sua humanidade e, ainda mais triste, amputando-lhes parte da sua infância?


Qual é a maior façanha do professor de Fisico-Química?
A mim fez-me corar de vergonha, revolver em fracções de segundo a minha consciência, que ficou subitamente pesada por todas as vezes em que cuspi, sem hesitar, “És sempre a mesma coisa” à mínima falha, e nos momentos em que ela foi sublime (e, caramba, já o foi vezes sem conta nos doze anos de vida que vai completar daqui a um par de semanas) ter  raras vezes disparado com a mesma força: “Carolina, tu és uma miúda espectacular; és a melhor filha do mundo.”
Mas o maior contributo do professor de Físico-Química não é para os pais — e temo até que alguns, perdidos na sua vidinha, nem tenham ouvido o alarme que ele subtilmente fez soar em surdina.
Este professor vai mudar o curso de muitas vidas; e vê-se que já o fez antes, que já leva um certo jeitinho, que se revela pelo brilho nos olhos e os braços agitados por estar a mudar a ordem pré-estabelecida da história das vidas nos nossos filhos, que ainda não estão contaminados pelo culto do bota-abaixo — as suas defesas ainda são altas; têm um escudo fortíssimo.
Eis que, de repente, os miúdos estão sentados nas carteiras, numa disciplina nova e com fama de diabólica quando, de repente, um professor indiferenciado lhes diz, sem rodeios, e com toda a lata do mundo, o que é óbvio, e que nós todos nos esquecemos — por pudor, por cansaço, por uma ditadura das notas e dos rankings, por mero descuido — de repetir todos os dias: “Vocês são uns miúdos fantásticos!”
Desde quando nos esquecemos que isso basta para mudar a maneira como eles encaram o mundo e como se encaram a si próprios?
A turma da minha filha mais velha — tenho a certeza — vai ter resultados extraordinários este ano. Vão ser miúdos incrivelmente mais felizes e muito mais seguros de si. E isso vai reflectir-se nas pautas.
E é tudo por causa do professor de Físico-Química, que se chama José Andrade.
Este é o meu louvor público. O meu bem-haja.

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