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quinta-feira, 19 de março de 2015

Dia do Pai

A menina do seu pai. Ele vai-te proteger de tudo, filha. Para sempre. Foto: Ties

Vivi muitos Dias do Pai com o incómodo de quem anda como uma pedrita minúscula dentro do sapato, gravilha que não impede ninguém de caminhar a passos largos, mas que implica um ligeiro coxeio, primeiro coisa pequena e depois um crescendo que lateja cada vez mais, que não mata mas mói.

Lembro-me da primeira vez que disse ‘eu não tenho pai’, com vergonha e a voz afogada em lágrimas e soluços. Não era um segredo, era um assunto em que simplesmente não se tocava, para a vida se obrigar a continuar sem mais delongas. Mas agora eu estava na escola, saíra debaixo da saia da minha mãe e colo das minhas avós. O mundo abria-se e a redoma perfeita em que me tinham colocado por amor estilhaçou-se chegado o mês de Março e eu sem ter a quem entregar o cinzeiro de pasta de papel (que coisa tão politicamente incorrecta nos dias de hoje) que secava no pátio de uma escola do Estado Novo.

Esse momento rachou-me o coração; sinto até a fissura, como uma velha cicatriz de guerra, que caminha ao meu lado, como uma muleta odiada, há coisa de trinta anos. Até porque não era verdade o que eu disse. Era apenas mais simples explicá-lo assim e evitar conversas e outro tipo de comiserações.

Eu tive um pai. Tive o pai que ele conseguiu ser e isso incluiu falhas grosseiras e injustificáveis, ausências prolongadas e presenças intermitentes, uma boa dose de mágoas de parte a parte e uma pitada de crises existenciais quando chegou a idade do armário e eu tinha problemas que chegavam para atulhar um walk in closet, mas deixei tudo enfiado em sacos pretos do lixo, na esperança que o contentor fosse levado para bem longe pela madrugada fora.

Tive o pai que tinha que ter tido. E hoje não guardo ressentimento algum. Devo-lhe muito apesar da sua ausências, ou se calhar até por causa dela.

Há coisas de que não pude fugir, coisas da tradição e da genética: herdei-lhe um apelido maluco, para começar, e o tom de pele escuro. Mas depois trago-o entranhado em tudo o que faço, em tudo o que sou, de uma forma por vezes sobrenatural: na sensibilidade extrema que me enche de nódoas negras, no amor pelo belo e pelas artes, no refinado sentido de humor e na gargalhada estrondosa que, regra geral, faz sorrir também quem a ouve, no asco a injustiças, na protecção aos mais fracos, no achar que sou sempre o centro do mundo, e também na coxa grossa.

O meu pai errou muito. Mas sei que me amou, que me amava muito também, do seu jeito estranho, mas amava. Era a menina do meu pai. E hoje sou mãe e sei que não é fácil, que às vezes parece ser demais para aguentar. Não tento dourar a pílula e justificar o injustificável, mas há muito que perdoei. Não tenho qualquer revolta, nem nenhum travo a amargor: as coisas são como são e esta couraça que se grudou em mim como uma segunda pele, assenta-me como uma luva macia de pelica.

É que, perdoem o clichê, eu tirei esta vida para ser feliz. E isso dá trabalho, dá muito mais trabalho do que ser miserável, um pobre diabo curvado por queixas e azudemes do que poderia ter sido e não foi. Por vezes, ser feliz, ou continuar para lá a caminhar a passos largos, obriga a umas difíceis digestões de batráquios que encontramos em charcos para onde fomos parar depois de nos desviarmos de trilhos sombrios, cheios de silvas, que nos tentam travar a longa caminhada. E eu já digeri os difíceis Dias do Pai que fingia ignorar ou que rasgava do calendário.

Fiz as pazes há muito com o Dia do Pai, o Dia do Padrasto, como sempre fiz notar com cinismo – São José era o Padrasto e ser padrasto é um dos maiores actos de amor incondicional. Aí não há nenhuma genética a puxar os cordelinhos. Presencio-o esse amor abnegado e paciente desde que conheci o João e ele me aceitou tal como eu era, com tantas virtudes como defeitos e com uma filha loira de olhos azuis atrás.

'Pai à vista!' Foto: Ties
Soube, aliás, que teria que lutar por este amor com quando, um par de dias depois de nos conhecermos, há quase nove anos, adoeci com uma febre inexplicável (o amor dará febre e vómitos?) e quando acordei, estremunhada, de madrugada, preocupada porque não tinha mudado a fralda ou dado o leite à minha filha, ele respondeu, da assoalhada ao lado, uma cozinha muito velha com o chão em xadrez carmim e bege, que tinha tratado dela muitas horas antes.

Hoje os meus filhos hão-de trazer desenhos, canecas, aventais, bases para os copos do melhor pai do mundo. O doce, presente, sensato e bonito pai (e padrasto também) dos meus filhos. É por ele que eu fiz as pazes com o Dia do Pai. Ele é o melhor pai que podia ser e, mesmo assim, não se resigna e vai mais além todos os dias.

Pazes feitas, siga para bingo, mas este ano o Dia do Pai dói-nos.

A vida, a nossa vida, não é feita em cinquenta sombras de rosa. Há fotografias de bebés, há filhos loiros e morenos, há reportagens na televisão e na imprensa com relatos idílicos, posts cheios de sol e luz celestial, há sorrisos e gargalhadas, famílias enormes e barulhentas em piqueniques fandangos e desarrumados no Jardim da Estrela, o nosso jardim de sempre e para sempre. Este é o retrato perfeito, sem mácula e também sem photoshop, que guardamos com toda a força do ser na moldura dourada da nossa memória. 

´'O meu pai é o melhor do mundo!!!' Foto: Ties
Depois há o que fica atrás da lente, que não ousamos escrever: a vida real, crua, tal como ela é. E há momentos em que a vida é insuportavelmente cruel. Porque, aconteça o que acontecer, ela continua. Nem uma alegria inebriante, nem a tristeza de uma perda irreparável a paralisam sequer por segundos.

Ela lá vai, segue segura. Ela assim continua, desde que de há três semanas para cá, perdi o meu pai ruivo, um pai que adoptei e que me adoptou, a quem roubei um apelido e o sonho de poder vir a ter um filho ruivo.


Durante o mês de Fevereiro, com a Isaura tão pequenina sempre ao meu lado, acompanhei, sobretudo com as minhas irmãs-cunhadas Rita e Joana, a última batalha do meu sogro António, numa guerra desigual contra um cancro batoteiro e devastador, que ele travou, olhos nos olhos, com uma incrível dignidade e com uma impressionante vontade de viver sempre mais um dia.

'O avô vai de barco Pirata para o céu com chapéu com uma flor. Eu vou lá atrás a mandar bolas de canhão'. Foto: A Família Numerosa.

Em jeito de confidência, ou em jeito de acto de contrição, não sei bem, disse-me, a olhar embevecido para a sua barulhenta família, que soprava as velas do segundo aniversário da sua adorada neta Alice: ‘Eu fiz tanta asneira na vida, mas no final estão todos bem; ficou tudo bem’.

Senti um arrepio a percorrer-me o corpo como a chicotada de um esticão eléctrico porque senti o meu próprio pai a sussurrar-me confidências através das palavras do meu sogro.

Tudo assim continuará, essa é a nossa promessa.
E esse é também o vosso legado, Pais.


Mensagem dos anjos e aviso muito sério à porta do velório do meu sogro. Foto: A Família Numerosa.

5 comentários:

  1. Caramba! Que texto tão bem escrito e cheio de doçura.

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  2. Bolas, este texto é um murro no estômago... É a vida como ela é, cheia de coisas boas, mas cruel também.

    Beijinho

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  3. Dois texto importantes para a Vida Eterna do Zé Ralha. O do teu irmão, publicado aquando da morte do vosso pai e este agora ... Não tenho dotes mediúnicos, mas diria que, completando agora o outro texto do teu irmão, acabas de fechar a abóboda com a pedra imperfeita que foi rejeitada pelos construtores. E vê só... com a descrição do purgatório do Zé que estava em tí ("não tenho Pai" ) consegues a correcta remissão dos pecados do pintor do Sonho de S Bernardo. Ora como sabemos o Pintor já estava no Céu pois a Obra assim mandava ( e não a Sociedade Nacional de Belas Artes que canoniza a torto e a direito). Faltava apenas o Pai que, por intervenção vossa (com os textos) agora se lhe junta. Os teus avós agradecem.

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  4. Este texto é muito mais que um conjunto de caracteres. É a vida real com a doçura que nem sempre fica.

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  5. Bem, que texto tão bem escrito, explicado e sentido!
    Obrigada por escrever assim desta forma tão real!

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