A menina do seu pai. Ele vai-te proteger de tudo, filha. Para sempre. Foto: Ties |
Vivi muitos Dias do Pai com o incómodo de quem anda como uma
pedrita minúscula dentro do sapato, gravilha que não impede ninguém de caminhar a passos
largos, mas que implica um ligeiro coxeio, primeiro coisa pequena e depois um
crescendo que lateja cada vez mais, que não mata mas mói.
Lembro-me da primeira vez que disse ‘eu não tenho pai’, com vergonha
e a voz afogada em lágrimas e soluços. Não era um segredo, era um assunto em que
simplesmente não se tocava, para a vida se obrigar a continuar sem mais
delongas. Mas agora eu estava na escola, saíra debaixo da saia da minha mãe e
colo das minhas avós. O mundo abria-se e a redoma perfeita em que me tinham
colocado por amor estilhaçou-se chegado o mês de Março e eu sem ter a quem
entregar o cinzeiro de pasta de papel (que coisa tão politicamente incorrecta
nos dias de hoje) que secava no pátio de uma escola do Estado Novo.
Esse momento rachou-me o coração; sinto até a fissura, como
uma velha cicatriz de guerra, que caminha ao meu lado, como uma muleta odiada, há coisa de trinta anos. Até porque não era verdade o que eu disse. Era apenas mais simples explicá-lo
assim e evitar conversas e outro tipo de comiserações.
Eu tive um pai. Tive o pai que ele conseguiu ser e isso incluiu falhas grosseiras e injustificáveis, ausências prolongadas e presenças intermitentes, uma boa dose de mágoas de parte a parte e uma pitada de crises existenciais quando chegou a idade do armário e eu tinha problemas que chegavam para atulhar um walk in closet, mas deixei tudo enfiado em sacos pretos do lixo, na esperança que o contentor fosse levado para bem longe pela madrugada fora.
Eu tive um pai. Tive o pai que ele conseguiu ser e isso incluiu falhas grosseiras e injustificáveis, ausências prolongadas e presenças intermitentes, uma boa dose de mágoas de parte a parte e uma pitada de crises existenciais quando chegou a idade do armário e eu tinha problemas que chegavam para atulhar um walk in closet, mas deixei tudo enfiado em sacos pretos do lixo, na esperança que o contentor fosse levado para bem longe pela madrugada fora.
Tive o pai que tinha que ter tido. E hoje não guardo
ressentimento algum. Devo-lhe muito apesar da sua ausências, ou se calhar até
por causa dela.
Há coisas de que não pude fugir, coisas da tradição e da
genética: herdei-lhe um apelido maluco, para começar, e o tom de pele escuro. Mas
depois trago-o entranhado em tudo o que faço, em tudo o que sou, de uma forma
por vezes sobrenatural: na sensibilidade extrema que me enche de nódoas negras,
no amor pelo belo e pelas artes, no refinado sentido de humor e na gargalhada
estrondosa que, regra geral, faz sorrir também quem a ouve, no asco a
injustiças, na protecção aos mais fracos, no achar que sou sempre o centro do
mundo, e também na coxa grossa.
O meu pai errou muito. Mas sei que me amou, que me amava muito
também, do seu jeito estranho, mas amava. Era a menina do meu pai. E hoje sou mãe e sei que não é fácil, que às vezes parece ser demais para aguentar. Não
tento dourar a pílula e justificar o injustificável, mas há muito que perdoei. Não tenho
qualquer revolta, nem nenhum travo a amargor: as coisas são como são e esta
couraça que se grudou em mim como uma segunda pele, assenta-me como uma luva
macia de pelica.
É que, perdoem o clichê, eu tirei esta vida para ser feliz. E isso dá trabalho,
dá muito mais trabalho do que ser miserável, um pobre diabo curvado por queixas
e azudemes do que poderia ter sido e não foi. Por vezes, ser feliz, ou
continuar para lá a caminhar a passos largos, obriga a umas difíceis digestões
de batráquios que encontramos em charcos para onde fomos parar depois de nos
desviarmos de trilhos sombrios, cheios de silvas, que nos tentam travar a longa
caminhada. E eu já digeri os difíceis Dias do Pai que fingia ignorar ou que rasgava do calendário.
Fiz as pazes há muito com o Dia do Pai, o Dia do Padrasto,
como sempre fiz notar com cinismo – São José era o Padrasto e ser padrasto é um dos maiores
actos de amor incondicional. Aí não há nenhuma genética a puxar os cordelinhos.
Presencio-o esse amor abnegado e paciente desde que conheci o João e ele me
aceitou tal como eu era, com tantas virtudes como defeitos e com uma filha
loira de olhos azuis atrás.
'Pai à vista!' Foto: Ties |
Soube, aliás, que teria que lutar por este amor com quando,
um par de dias depois de nos conhecermos, há quase nove anos, adoeci com uma
febre inexplicável (o amor dará febre e vómitos?) e quando acordei, estremunhada,
de madrugada, preocupada porque não tinha mudado a fralda ou dado o leite à
minha filha, ele respondeu, da assoalhada ao lado, uma cozinha muito velha com
o chão em xadrez carmim e bege, que tinha tratado dela muitas horas antes.
Hoje os meus filhos hão-de trazer desenhos, canecas,
aventais, bases para os copos do melhor pai do mundo. O doce, presente, sensato e
bonito pai (e padrasto também) dos meus filhos. É por ele que eu fiz as pazes
com o Dia do Pai. Ele é o melhor pai que podia ser e, mesmo assim, não se resigna e vai mais além todos os dias.
Pazes feitas, siga para bingo, mas este ano o Dia do Pai dói-nos.
A vida, a nossa vida, não é feita em cinquenta sombras de
rosa. Há fotografias de bebés, há filhos loiros e morenos, há reportagens na televisão e na imprensa com
relatos idílicos, posts cheios de sol
e luz celestial, há sorrisos e gargalhadas, famílias enormes e barulhentas em
piqueniques fandangos e desarrumados no Jardim da Estrela, o nosso jardim de
sempre e para sempre. Este é o retrato perfeito, sem mácula e também sem photoshop, que guardamos com toda a
força do ser na moldura dourada da nossa memória.
´'O meu pai é o melhor do mundo!!!' Foto: Ties |
Depois há o que fica atrás da lente, que não ousamos
escrever: a vida real, crua, tal como ela é. E há momentos em que a vida é insuportavelmente
cruel. Porque, aconteça o que acontecer, ela continua. Nem uma alegria
inebriante, nem a tristeza de uma perda irreparável a paralisam sequer por
segundos.
Ela lá vai, segue segura. Ela assim continua, desde que de há três semanas para cá, perdi o meu pai ruivo, um pai que adoptei e que me adoptou, a quem roubei um apelido e o sonho de poder vir a ter um filho ruivo.
Ela lá vai, segue segura. Ela assim continua, desde que de há três semanas para cá, perdi o meu pai ruivo, um pai que adoptei e que me adoptou, a quem roubei um apelido e o sonho de poder vir a ter um filho ruivo.
Durante o mês de Fevereiro, com a Isaura tão pequenina
sempre ao meu lado, acompanhei, sobretudo com as minhas irmãs-cunhadas Rita
e Joana, a última batalha do meu sogro António, numa guerra desigual contra um
cancro batoteiro e devastador, que ele travou, olhos nos olhos, com uma
incrível dignidade e com uma impressionante vontade de viver sempre mais um dia.
'O avô vai de barco Pirata para o céu com chapéu com uma flor. Eu vou lá atrás a mandar bolas de canhão'. Foto: A Família Numerosa. |
Em jeito de confidência, ou em jeito de acto de contrição,
não sei bem, disse-me, a olhar embevecido para a sua barulhenta família, que
soprava as velas do segundo aniversário da sua adorada neta Alice: ‘Eu fiz
tanta asneira na vida, mas no final estão todos bem; ficou tudo bem’.
Senti um arrepio a percorrer-me o corpo como a chicotada de um esticão eléctrico porque senti o meu próprio pai a sussurrar-me confidências através das palavras do meu sogro.
Senti um arrepio a percorrer-me o corpo como a chicotada de um esticão eléctrico porque senti o meu próprio pai a sussurrar-me confidências através das palavras do meu sogro.
E esse é também o vosso legado, Pais.
Mensagem dos anjos e aviso muito sério à porta do velório do meu sogro. Foto: A Família Numerosa. |
Caramba! Que texto tão bem escrito e cheio de doçura.
ResponderEliminarBolas, este texto é um murro no estômago... É a vida como ela é, cheia de coisas boas, mas cruel também.
ResponderEliminarBeijinho
Dois texto importantes para a Vida Eterna do Zé Ralha. O do teu irmão, publicado aquando da morte do vosso pai e este agora ... Não tenho dotes mediúnicos, mas diria que, completando agora o outro texto do teu irmão, acabas de fechar a abóboda com a pedra imperfeita que foi rejeitada pelos construtores. E vê só... com a descrição do purgatório do Zé que estava em tí ("não tenho Pai" ) consegues a correcta remissão dos pecados do pintor do Sonho de S Bernardo. Ora como sabemos o Pintor já estava no Céu pois a Obra assim mandava ( e não a Sociedade Nacional de Belas Artes que canoniza a torto e a direito). Faltava apenas o Pai que, por intervenção vossa (com os textos) agora se lhe junta. Os teus avós agradecem.
ResponderEliminarEste texto é muito mais que um conjunto de caracteres. É a vida real com a doçura que nem sempre fica.
ResponderEliminarBem, que texto tão bem escrito, explicado e sentido!
ResponderEliminarObrigada por escrever assim desta forma tão real!