[Vou-me habituando a esta coisa de me ter metamorfoseado numa
estranha espécie de marsupial maneta, que se propõe a encarar a vida tal e qual
como ela sempre foi com um bebé colado ao regaço e com um único braço e mão
operacional. A minha mãe, noto agora, arranjou sempre alcunhas de insectos para
os meus filhos: à primeira neta chamou-lhe ‘carochinha’. O António, pela sua
doçura e amor cego pela sua mãe, ficou o ‘melga’. A Aurora, de tão moreninha
que nasceu, ganhou o petit nom de 'cucaracha', nome doce para barata-tonta
que é o meu raiozinho de sol. A pequena Isaura já não teve direito a falinhas-mansas da
sua avó. É o 'carrapato'.]
Morrer de amor. Logo à primeira hora da manhã. Foto: A Família Numerosa |
Estou há 90 dias num ciclo vicioso de amor.
Por vezes, caio em mim e espanta-me todo este
deslumbramento.
Vivi todos os dias deste trimestre como se tudo fosse uma primeira vez, como se o universo me concedesse de novo a benesse irrepetível e emocionante de uma estreia. É bem pior que isso, sei-o bem agora: não é a primeira vez…
é a última. E há toda uma fatalidade arrebatadora nessa certeza.
Ainda há pouco vivi todo este algodão-doce cor-de-rosa, não seria suposto trazer em mim pelo menos uma ténue recordação? Tenho dois bebés em
casa – e isso sim é uma novidade. São 19 meses de diferença, ano e meio. E vou
na quarta repetição, devia estar já de barriga cheia, até um pouco enfartada a
pedir um anti-ácido. Encho-me de espanto. E fico aterrada no segundo seguinte. E
depois penso, penso muito sobre que amor é este que apanhou desprevenida na
curva apertasda que nem vi a chegar ao meu caminho: O que fiz eu para merecer
tanto desta vida?
O último filho é em tudo igual ao primeiro. Descompensei-me
toda: como mal, muito mal, não durmo - fico com insónias, do assombro de ter
achado este tesouro, da vertigem de ter na mão a chave de toda a felicidade do
mundo. Oscilo entre fervorosos estados de humor que se passeiam, frenéticos, em
filinha indiana, pelas 24 horas do meu dia: vou do frenesi desenfreado ao
êxtase num minuto, passo demoradamente por uma paz absoluta e branca que quase
me cega de tanta claridade que me leva ao coração, mas, de um momento para o
outro, agita-se tudo e deixo-me levar por um turbilhão de momentos de terror,
pânico e exaustão.
Às vezes sinto que me falta o ar. Pelo devir. Pela
fragilidade deste castelo de cartas perfeito, construído com enormes fundações
numa nuvem farfalhuda com vista para os sonhos mais lindos de todo o mundo e de toda a gente. Sei, estou
perfeitamente ciente que, de um momento para o outro, tudo se poderá agitar. E do
castelo de cartas pode um dia apenas restar um baralho com que se volta a jogar
às cegas. É tão imprevisível quanto isto. Mas, por enquanto, vou fazendo uns
truques e – confesso – trago muitas cartas na manga para o que der e vier. Tudo
o que me tem vindo a acontecer é pura magia. E eu já tenho os quatro ases na
mão - são os meus filhos.
Estou apaixonada. Estou viciada na minha filha Isaura.
Estava
no bloco operatório gélido do Hospital da Luz, a sofrer na pele todas os
efeitos secundários possíveis e algum dia descritos para uma epidural,
quando o chefe de serviço da Anestesia, que assistia à temível quarta cesariana
(que afinal correu às mil maravilhas), me dobrou as costas e as empurrou para a
frente, para que pudesse assistir a minha última filha a sair do meu ventre. Foi
a primeira vez que um médico me deu essa oportunidade. Foi também a última.
Pouco importa que o momento National Geographic, da vida a
acontecer ao segundo, tenha tido como efeito uma gigantesca quebra de tensão
que fez disparar todos os avisos sonoros da maquinaria que me monitorizava. Vi
sangue, vi o meu corpo todo exposto, com pinças e tesouras espetadas como uma
almofada de alfinetes. E vi-a a ela. Ela deu o seu primeiro grito, respirou ar
pela primeira vez e eu, acto contínuo, senti-me a afogar.
Foi o momento mais violento da minha vida.
A Isaura é o meu último milagre: o meu corpo dividiu-se em
quatro e doravante carrego a graça de morrer todos os dias de amor.
O tempo de repente passou por mim.
Tenho o corpo todo tatuado
por marcas de amor, podia até fazer uma cronologia, um itinerário a cada ruga,
estria, cabelo branco, demorar-me em cada uma destas amolgadelas. O tempo
passou por mim, mas, para já, eu levo a melhor. Trago a força dos sonhos que a
vida há-de trazer aos meus filhos.
Descompensei-me toda com este amor com
quatro lados todos iguais, mas sinto-me capaz de feitos nunca imaginados. Posso
mover montanhas com o meu dedo mindinho e com os outros nove que restam limpar
rabos, fazer poesia, assoar ranhocas, e fazer do mundo um melhor lugar. Por
causa deles e por eles.
Estou chocada por a vida me ter dado tanto. Agradecida a toda a
hora. Por esta família que tão serenamente construo com o meu melhor amigo, com
o amor da minha vida.
E depois há este cheirinho de bebé… Que inebria tudo e a quebra todos, que vicia, que é até altamente contagioso.
A minha mãe, como vos disse, chama a Isaura de carrapato.
Mas se calhar sou
eu a lapa.
'A Isaura é tão linda que até me apetece desmaiar'. Assim fala o meu António. FOTO: A Família Numerosa. |
Post escrito com a mama de fora, e apenas dois dedos da mão direita.
O texto é maravilhoso. Adoro as fotografias, e confesso que esperava ansiosa por este post. Parabéns, está linda!
ResponderEliminarQue bom que é voltar a encontrá-la aqui. Obrigada.
ResponderEliminarMuito prazer em conhecer a Isaura, em reencontrar esta família e ler esta escrita maravilhosa! Ah, e as fotos são de ficar comovida...Bom enamoramento no colectivo dessa casa!
ResponderEliminarQue texto maravilhoso!
ResponderEliminarRecém mamã de duas gémeas lindas que também me tornaram viciada no amor crescente e nas descobertas diárias!
Parabéns!
Que lindo Dia! Tudo aqui é tão lindo e cheira a amor.
ResponderEliminar(e lembro-me de quando escrevias sobre o encontro com o João) que lindo tudo aqui!
que felicidade por ti!
Lyra