Este post nãoé patrocinado pelo Lidl, mas adoramos estes gelados e as suas caixas que depois guardam Legos, cartas de Invizimalz e bolachas FOTO: A Família Numerosa |
Não foi uma estreia: esta família é pródiga em
acontecimentos odontológicos paranormais. Não tendo sido inédito foi o quanto
baste para eu me sentir a pior mãe do mundo.
Mas recuemos no tempo – apertem o cinto de segurança: esta
história vai andar para trás e para a frente; é um recurso estilístico
recorrente e hoje, passados estes dias todos de pousio, quero demorar-me neste
quintal, quero revolver bem esta terra, para depois, com um pouco de sorte e
com todo o trabalho árduo que, só quem ousou plantar um jardim sabe do que falo,
possa colher os frutos desta sementeira.
Não foi novidade, já vos disse e volto à mesma tecla. Uma
das primeiras vezes que me senti o centro do mundo no mau sentido foi numa
cadeira de dentista. Mas esse foi também o princípio de uma grande amizade. Uma
amizade improvável. É que fiz uma amiga à prova de alicates, brocas, seringas
com anestésicos capazes de me adormecer o nariz empinado. E coisa mais preciosa
não há. Nunca fomos ao café, como fazem os amigos, nunca nos vimos sem ela
estar de bata branca. A nossa relação nasceu numa cadeira articulada de um
dentista e envolveu luvas de borracha e instrumentos esterilizados.
Foi a única vez que fiz uma amiga de boca aberta, mas sem
dizer um pio. E isso é obra.
Arrancou-me doze dentes no total, desvitalizou-me outros
tantos, riu e chorou com as minhas histórias mirabolantes e eventos
extraordinários, viu-me crescer, passar fases boas e fases terríveis. Era
talvez um pouco mais velha que eu, nada de muito relevante: a verdade é que
quando somos novos não reparamos nessa coisa da idade, mas a meio de um
tratamento qualquer, dos milhentos a que me submeti naquele gabinetezito à
Praça de Espanha, vi-a crescer e a tornar-se mãe como eu. Éramos da mesma
geração.
A cada desaire, a cada tragédia pessoal assistiu-me a ir ao
fundo e a voltar com o fôlego sôfrego à superfície. Viu-me a ganhar peso e a
quase nunca conseguir perdê-lo na totalidade. Conheceu-me solteira, Lolita
encantadora de dentes encavalitados, a espalhar charme a meio mundo e depois,
de um momento para o outro, já com titânio colado aos dentes e elásticos
cor-de-rosa a alinharem o sorriso, viu-me mãe solteira e a sofrer com isso.
Conheceu dois dos meus filhos e chegou a tratar-me cáries com um bebé agarrado
à mama. Sei que ficou feliz e aliviada quando percebeu que o João não era
efabulação, que existia mesmo, que não era um amigo imaginário, um delírio meu,
e branqueou-me o sorriso, para condizer com o vestido do meu casamento, há quase
oito anos.
Ela endireitou-me não só os dentes mas a vida também. O nome dela era Sofia, Sofia Margarido. Sei que, neste
momento, onde quer que esteja, está a rir à gargalhada com o que eu me fui
lembrar. Mas eu nunca a esquecerei.
Foi há uma vida que nos conhecemos. Conhecemo-nos
aleatoriamente, arranjinho do bom do destino.
Ali estava eu com as mandíbulas abertas e totalmente expostas,
dentes em gigantesco desalinho e apinhamento, sem grande dignidade, diga-se, porque
ninguém mantém a compostura na cadeira do dentista, com tanta gengiva e tanta
saliva à mostra.
Hirta e desconfortável, incapaz de balbuciar fosse o que
fosse de forma perceptível, encontrei-a numa primeira consulta com uma jovem
dentista que tinha acordo com o seguro de saúde que o meu antigo patrão, o rei
dos supermercados e dos jornais de referência, oferecia a todos quantos trazia
para a grande família Sonae.
E, de repente, chega o RX tirado minutos antes, acende-se a
luz fluorescente para ver o state of the art da cremalheira da jovem de pouco
mais de vinte aninhos e vem o silêncio, alguns hmmm, a cabeça da jovem dentista
inclinada para a direita e depois para a esquerda, o RX arrancado da caixa de
luz, eu de boca aberta com o aspirador de baba a um cantinho, e a dentista: ‘é
só um bocadinho, vou só ali a um gabinete mostrar o seu RX’.
Começou o burburinho. Seguiu-se uma peregrinação ao pequeno
consultório com porta de fole. Vieram de muitos gabinetes, em romaria, contar
os dentes revelados em chapa por uma carga catita de radiação. Eu lá continuei
de boca aberta sem perceber o que me acabara de acontecer.
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito. Era muito
juízo junto em tão tenra idade. A chapa do RX revelou um totoloto de dentes do
siso. Eram oito, mais quatro do que a maioria da gente que ainda se dá ao
trabalho de parir estes dentes sem sentido.
Foi assim que nos conhecemos. Uma espécie de fenómeno do
Entroncamento dos estomatologistas. Uma protegida da Fada dos Dentes. Um horror
para os seguros de saúde.
Hoje tenho menos quatro dentes do que era suposto, tantos
quantos foram necessários para poder ter uma boca e um sorriso arrumadinho. As
arrumações têm sempre que começar por algum lado e na minha vida começámos por
ali.
Já não tenho dentes em cima uns dos outros – guardo o molde
em gesso para relembrar esses tempos em desalinho. Trago o peso na consciência
de ter renegado uma característica genética do meu pai, que me unia a ele e aos
meus três irmãos: os dentes encavalitados (agarro-me ao meu canino rilhão). E tal
como uma pessoa que foi muito tempo gorda e depois emagreceu metade da pessoa
que os seus pés sustinham, às vezes ainda não me reconheço.
Tal como um filho da terra que dela parte à procura de
alguma coisa, também os meus dentes se sentem apátridas onde foram metidos à
força e andam sempre com ganas de voltar ao sítio onde foram felizes. Parto o
aro metálico de contenção do sorriso milimetricamente planeado a comer um
entrecosto, ou uma broa de milho e tenho que ir de imediato repô-lo. Porque sem
amarras, eles nem estão de modos: vão sempre regressar a casa. O que nasce
torto…
Adiante.
Tive um molar temperamental que a cada filho parido decidiu
juntar um ‘t’ ao verbo parir, partindo-se (dentes brincando com as palavras,
que delícia).
A Sofia domou esse molar com tendências suicidas das duas
primeiras vezes com arte e mestria – amálgamas perfeitas, danos escondidos em jeito
de escultura.
Tinha a Aurora bebé quando o teimoso molar se estilhaçou de
novo.
Cada filho cada dente - e eu sempre a esquecer-me do cheque dentista do
SNS. Estava a tomar café na Avenida de Roma - junto à linha do comboio. Voltei
aos provérbios e optei por não deixar para amanhã o que podia muito bem ser
feito naquele hoje.
Da esplanada para uma
torre de telemóvel, dali para o consultório, e já a imaginar a cara da Sofia
quando lhe mostrasse a surpresa muito morena que lhe traria.
Do outro lado da chamada, a Sandra, a recepcionista que (re)conheço
há uma vida, fez o melhor que pôde e o incómodo era audível pelo meu tímpano,
que ferveu de imediato. Ninguém devia ser obrigado a dar uma notícia destas
pelo telefone e a Sandra já teve de o fazer vezes e vezes sem conta…
A minha amiga morreu.
Eu tive outro filho.
O meu molar não resistiu. Arranquei-o a semana passada.
Tentei, mas não consegui voltar à Praça de Espanha, onde a
minha amiga Sofia descobriu que eu tinha juízo a dobrar, pelo menos a acreditar
na sabedoria popular.
Temos muitas formas de caminhar por esta vida. A minha não é
mais nem menos válida que a vossa, que a do meu vizinho ou mesmo que a do meu
marido, aqui ao meu lado, o único ser com quem consigo trabalhar em equipa, a
criatura que tem o condão de revelar o melhor que há em mim e de o multiplicar
por duas criaturas loiras e duas criaturas escuras, com quem partilho tanta
coisa, quase tudo menos a maneira como vejo o grande plano desta vida, a
metáfora perfeita de que sentido terá ela.
Eu sinto que esta
vida anda toda entrelaçada. É coisa de crocheteira, de quem, na infância,
ajudou a mãe a desenredar muitas meadas de lã eriçadas umas nas outras, num
Mikado diabólico. Era preferível se fosse um tear: tudo certinho, linhas certas
onde não se conseguiria escrever o destino torto.
Mas não é bem assim e eu vejo a minha vida toda como uma
meada de uma lã grossa de uma cor muito vibrante, como um magenta, que se
enredou com outras meadas de muitas cores, de muitas fibras, umas ásperas,
outras macias, umas finíssimas como uma teia de aranha, outras fortes como um
cabo de aço. E para todas elas, para todas as vidas, há uma saída desse
turbilhão de fios. Por vezes, o emaranhado foi deliberado, mas outras houve em
que pode ter sido apenas um gato brincalhão deliciado com um novelo a amarfanhar
todos os fios-destinos das marionetas que somos todos nós. Há sempre mais do
que uma saída, mais ou menos atribulada, mexendo em mais ou menos fios,
abraçando-os, tropeçando neles, armando mais confusão ainda, chegando a
bom-porto sozinho ou acompanhado.
Não estaria onde estou se não tivesse oito dentes do siso. E
apesar dela já cá não estar neste mundo, foi graças à Sofia Margarido que posso
hoje escrever esta história – fui ali buscar o seu novelo e comecei a tricotar
esta história (há muitos fios para rematar, espero não deixar cair uma malha
que desabe toda esta história.)
É graças à Sofia que conheço outra dentista que trata do
sorriso dos meus filhos. Elas nem se conhecem, acredito que isto esteja sempre
a acontecer entre médicos – recomendam-se mutuamente sem grandes conhecimentos
a não ser o da reputação que os precede.
Como disse: não me deveria ter chocado assim tanto. A
Carolina começou com o fado da mandíbula aos seis anitos, quando fui para uma
consulta de rotina e a Dra. Joana Farto me fez ver que a rapariga não conseguia
fechar a boca porque os seus maxilares não lho permitiam. Seguiram-se dois anos
de consultas mensais e de amizade a cada apertão de um aparelho chato que foi a
tempo de resolver a grande parte do problema.
Não foi portanto a primeira vez que me senti uma péssima
mãe. A Carolina não fechava a boca e não cuidei de reparar. E assim como assim,
vamos ao dentista em excusrão,à clínica futurista da Dra. Joana e do marido, no
meio do campo e só por isto já nos sentimos num filme de ficção científica, na
twilight zone entre a broca, a tecnologia de ponta, as diversas especialidades
e as ovelhas e o eucaliptal do vizinho.
Achei que ia ter
imensa graça, que a história ficaria por aqui, o alicate puxava o de leite e o
definitivo avançava. Até daí a seis meses.
Mas então a Doutora Joana Farto diz: ‘Rico filho, está tão
mal acabadinho! Então e os pais já contaram os dentes do miúdo?’
(Foi a segunda vez que um médico me falou dos acabamentos do querubim.
À nascença foram os dedos dos pés e os desabafos do corpo clínico: ‘pelo menos
não é uma menina…)’
Eu respondi: ‘Sim, tem duas filas de dentes, os de leite e
os definitivos. Foi por isso que cá viemos!’
Façamos um à parte: o meu filho é perfeito. Partiu os dentes da frente com 18
meses, e a cada trambolhão foi encavalitando ainda mais a dentadura. Aos dois
anos ganhou uma cicatriz no canto do olho num acidente idiota, que me valeu uma
semana de choro de Madalena (a Aurora abriu o lábio e já não levou nem uma
gotinha, nem uma lágrima para amostra; estou um couraçado!). À parte os dedos
dos pés, o António é perfeito, com as suas pestanas de ouro, a sua covinha na
bochecha, a sua pele branca como o leite.
‘Ò Mãe, o seu filho tem três dentes da frente. Três
incisivos! Nunca reparou?’
Já repararam que não se vende Pepsodent cá no burgo, mas ainda usamos a expressão 'sorriso Pepsodent'? |
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Não, nunca reparámos. Ninguém reparou. Um, dois, três. Três
dentes da frente, bem à frente, e não reparámos; ele é perfeito: é o meu menino
de ouro que me faz sempre rir, que está sempre a rir, que importa que tenha um
dente a mais.
Um fenómeno do Entroncamento.
Uma mãe galinha com alguns
genes de coruja míope que não contou os dentes à sua cria, que nunca foi boa de
contas e por isso nem deu conta tão gritante assimetria. Uma dor de cabeça para
a Fada dos Dentes que em tempos de crise vê-se na contingência de ter que
aumentar o orçamento para deixar a sua magia debaixo da almofada do tubarão
Ralha. Já sem para falar que, com tanto dente que vai ter que vir cá buscar, mais valia montar aqui a barraquinha, montar uma sucursal ou coisa que o valha.
Uma história que se podia resumir a dez palavras – o António
tem três dentes à frente e ninguém reparou– mas que andou aqui às voltas, às
voltas, retirada do turbilhão de linhas cruzadas que é a nossa vida.
Uma história que me encantou. E o miúdo é giro que se farta. Perfeito.
ResponderEliminarPois olha, eu gostei bastante desta história. Já agora, eu só tenho 24 dentes. Nunca tive os do siso, e em miúda o dentista tirou-me quatro para que os que ficavam tivessem espaço. Mesmo assim, não são a coisa mais direita que existe...
ResponderEliminarQue história linda! Já a tinha ouvido noutra versão. Já vos conhecia sem nunca vos ter encontrado. Pela minha filha, a Sofia Margarido.
ResponderEliminarA amizade que lhe dedicou foi recíproca. A ternura com que a recorda comoveu o meu coração e roubou-me sentidas lágrimas.
Bem Haja pela beleza que viu nela, pelos momentos bons que passaram juntas, pelas gargalhadas que soltaram. Bem Haja por a ter lembrado por a ter incluído na sua história familiar e por manter viva a sua memória.
Este post deixou-me tão triste que nem imagina! Conheço a Dra. Sofia Margarido, mas há anos que deixei de ir ao consultório porque o acordo com a ADM terminou. Queria lá voltar, precisamente com os meus filhos e agora quando li pensei - Não! Não pode ser... até porque a recepcionista se chama Fátima.
ResponderEliminarAté tive medo de ligar para a clínica, mas liguei e infelizmente falava da minha Dra. Margarida.
Foi a primeira a saber que eu estava grávida e que me arranjou os dentes com uma enorme paciência, durante e depois da gravidez. Que viu o dente do meu filho quando deu uma queda e o rachou.
Que me contava os seus episódios quando estava a tentar voltar para as forças armadas :(
Lamento imenso.
Infelizmente partiu, mas deixou para trás muitos amigos e pacientes que não a esqueceram e que têm dela uma grata recordação.É bom para mim, sua mãe, sentir que não foi esquecida e que na sua passagem espalhou alegria e fez algo de positivo pelos outros. Bem haja por a ter lembrado.
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