Upside down. O querubim moreno endoidou. Foto: Ties |
Não estava à espera de sair da
maternidade com uma adorável e cor-de-rosinha recém-nascida ao colo, primeiro
apanhar um frio do caraças que enregelou todos os ossos do esqueleto e depois
só o da queixada, quando o temido momento da factura do aquecedor em cada
assoalhada chegou, rodar a chave na fechadura, as luzes da árvore de Natal branca
e encarnada a piscar como que dizendo ‘bem-vindos a casa’ e, do outro lado, lar
querido e doce lar, ho ho ho, joy to the world, e ter à minha espera
não uma mas duas adolescentes: uma com 11 anos e a outra com 19 meses.
Não tive direito a aviso prévio,
pombo-correio, mensagem na garrafa ou mesmo pedra da calçada a voar pela janela
a dentro – não houve curso de formação, nem pude treinar uma ou duas vezes. Agora
sei-o, era uma bomba-relógio, uma panela de pressão, mas eu não ouvi o tic-tac
nem a chiadeira, andava num outro mundo, com o centro gravitacional alterado
por um barrigão de nove meses, e embriagada por um mundo de folhinhos,
rendinhas e cueiros com cheiro a alfazema.
Rebentou-me esta granada nas mãos
ao mesmo tempo que fazia malabarismos com fraldas, cólicas, fissuras nos
mamilos, mastites e privações de sono. Tenho duas adolescentes em casa: uma com
11 anos e a outra hoje com 23 meses.
De repente, não (re)conheço as
minhas meninas.
Não fazemos mais pose: somos as terrible twos (e a foto recusa-se a rodar, é karmico). Foto: A Família Numerosa. |
Neste momento, aliás, a mulher mais previsível desta casa é,
seguramente, a pequena Isaura (comigo incluída – também eu me metamorfoseei
numa outra coisa nos últimos meses; as hormonas em cocktail Molotof que em vez
de explodir deu o efeito de ter tropeçado para dentro de um caldeirão de Xanax
com cheirinho a bebé). Sei de cor as manhas e os caprichos da pequenina: a bebé
Isaura funciona numa espécie de sistema binário muito simples: fome, xixi, desconforto,
dor, rabujice. E tudo, mas mesmo tudo, se resolve com uma mama. É fácil; é
mesmo muito fácil… E a minha mãe insiste na lenga-lenga que cai em saco roto,
como há três filhos atrás: ‘quando eles forem mais velhos e tiverem um
problema, o que é que fazes? Dás-lhes uma bola de Berlim? Fazes-lhes cozido à
portuguesa?’Pois, mãezinha, lamento,
infelizmente não funciona: já tentei encher o bandulho às duas adolescentes cá
de casa e caiu tudo em saco roto.
Socorro, mãe! É uma adolescente aqui ao meu lado! Foto: A Família Numerosa |
A mais nova está de greve de fome
até mesmo antes de a irmã nascer. O pouco que come vai preferencialmente para
os hidratos de carbono, com preferência para o arroz. Somos pais permissivos (isso
ou não queremos – é mais não aguentamos - gritaria): se não quer não come,
nunca ninguém morreu à fome com um prato cheio de comida à frente e o conduto
deve-lhe vir de algum lado, pois continua uma matulona maciça.
Já a adolescente mais velha, a
que antecipou a puberdade um bom par de anos face aos meus cálculos e melhores
expectativas, é o terror dos buffets
onde as crianças até aos 12 anos só pagam metade: os preferidos das famílias
numerosas de filhos pequenos. A moça dá prejuízo à casa – daria prejuízo mesmo
que pagasse a dose de adulto. Tudo nela germina à velocidade de uma Primavera a
mamar esteróides ao almoço ao jantar e à ceia – até o mau-feitio, ou sobretudo
ele, a par com o tamanho do nariz –, mas quem me dera que a medida da anca da
minha mais velha (a começar a puxar perigosamente ao meu lado) fosse o único ou
o maior problema com que tivéssemos a enfrentar nos próximos tempos.
Melancolia. Coisas de Adolescentes. Foto: A Família Numerosa. |
Nesta casa vivem-se tempos de mudança.
Sabíamos isso desde que a bebé-milagre decidiu que tinha que
vir parar a este agregado barulhento. Estávamos preparados – ou pelo menos
achámos que sim: eu fiz muitos excel’s e outros planos maléficos e metafísicos –
para as mudanças da visita da cegonha.
Mais uma vez, tempo perdido, para quê perder tempo a planear
seja o que for? A bebé é um amor e nós temos o arcaboiço de quem já está a
lidar com um recém-nascido pela quarta vez. Mas, surpresa!!! Toma lá duas
adolescentes irrascíveis e leva ao forno para ver o que sai. E, por enquanto,
ainda cheira a esturro…
As primeiras três semanas de vida da Isaura foram críticas
para a minha adolescente de ano e meio e de cachos de caracóis e olhos negros.
Pontaria das pontarias a família cresceu e essa adição de amor e coisas fofas coincidiu
com a chamada ‘adolescência do bebé’ – os terrible
two’s. Ou despoletou-a. Tanto faz. Deal
with it!
Já ando neste ofício de criar filhos há mais de uma década,
mas, talvez porque a paciência é outra aos vinte anos, nunca me dei conta de
tal fase nos meus primeiros filhos. Ou então lia menos. E não havia Facebook e
grupos de mães em frenesi de partilha ao segundo.
Greve de fome. Tudo começou suave discretamente com a greve
de fome. E porque uma greve anda sempre a par de um barulhento protesto e
manifestação houve gritos (e muitas lágrimas, ai tantas lágrimas). A vizinha do
lado, octogenária bisavó, veio aflita perguntar-me o que se passava: ‘Não se
ouve a bebé; só se houve a Aurora a chorar e a gritar… Está tudo bem?’
Não. Não estava tudo bem. E foi o suficiente para me
esfrangalhar os nervos, acabadinha de parir. Fartei-me de chorar também. Um
choro hormonal, mas de lágrimas gordas e desesperadas.
E como uma greve e uma manifestação não se fazem sem
palavras de ordem, a minha terrível Aurora – outrora um ser celestial, entre o
querubim seráfico e a perfeição de boneca de porcelana de edição limitada – começou a falar. A falar tudo feito papagaio
moreno de bico que já nada tem de sereno.
Visto à distância foi uma espécie de duelo: ‘Ai vens para casa com um bebé cabeludo com ares
de feto engelhado? Então toma lá, que eu estou cada vez mais linda a cada dia
que passa e agora, ainda por cima, falo e cuspo trapalhonices fofas que
derretem toda a família!’. Sem pudor assumo: ela ganhou esse round. Ninguém resiste à voz de bagaço
meia belfa da menina. Dá vontade de lhe trincar as bochechas.
Mas não ficou por aqui. Como é da praxe, não é raro o
registo de altercações nas greves, nas manifestações e nos protestos. E a
Aurora está nesta luta de corpo e alma. ‘Ai o bebé arrotou e estão todos
deliciados com o cheiro a requeijão azedo? Então espera, vou trepar a esta
cadeira e atirar-me daqui para baixo. Ups, abri o lábio? Ups, isto está a doer!
Paiiiiiiiiii!!!!’
Sim, pai! Eu deixei de existir na equação dos seus afectos –
a Aurora está magoada e não é com o bebé; é comigo.
A mão que embala a pequena adolescente. Não é a minha. Foto: A Família Numerosa. |
O pai agora é chamado para tudo, ela arrasta-lhe a asa e
agarra-se-lhe às calças com aderência que lembra um anúncio da minha infância
que envolvia cientistas colados ao tecto.
São inseparáveis; a Aurora passou a ser Electra, antecipando
alguns anos o que reza a literatura sobre o assunto: o pai dá a comida, dá o
banho, muda a fralda, adormece, consola, dá mimo, o pai brinca, o pai veste, o
pai leva à escola e, coitado, é o pai quem vai sonâmbulo, pelas quatro da
matina, hora em que o passarinho começa a fazer os seus primeiros gargarejos,
sonhando com suculentas minhocas, e que passou a ser o primeiro momento de
drama e birra do meu querido papagaio-gralha.
O pai vai paciente buscá-la à cama, solta baixinho um ‘shiu,
não acorda o bebé’, e seguem juntos para o sofá, onde dormem tortos e tapados
com uma matilha de três gatos solidários com a desgraça madrugadora que assolou
aquela casa, até que, um bom par de horas depois, me levanto eu, dou corda à
caixinha mágica que é esta família, e começa tudo a girar com a precisão de um
relógio suíço em que cada minuto é tão frenético quanto precioso e eterno.
Nos primeiros momentos do dia é-me concedido um vislumbre da
vida antes de a Isaura chegar, e volto a dar colo à bebé que foi forçada a
crescer antes do tempo. Às primeiras horas da manhã, ou não se chamasse ela
Aurora, ela concede que me adora e que também sente a minha falta. Vem com os caracóis
ripados pelas almofadas, um despenteado volumoso que lhe tapa os olhos, tropeça
desajeitada para cima de mim, e ficamos abraçadas uns cinco minutos, um abraço
forte e beijos dorminhocos. Dura pouco tempo, mas eu agradeço a esmola.
Com sete pedras na mão e sem direito a nenhuma migalha de
doçura. A minha adolescente de onze anos evita há muito todo o contacto físico
que seja sinónimo de demonstração de afecto. Dar beijo de até já em frente à
porta do liceu, por exemplo, é o mesmo que ter lepra. ‘Menos, mamã, menos…’
(ainda me chama mamã, já não é mau).
Me, myself and I. Foto: A Família Numerosa |
A arrogância e soberba estão tão assanhadas como os pontos
negros no nariz. A casa passou a ter portas fechadas – coisa nunca antes vista
e que me implica com o sistema nervoso muito dado a um feng shui de aqui
ninguém tem nada a esconder.
‘Preciso da minha privacidade!’, atirou outro dia, de dentro
de um quarto imundo e desarrumado. De manhã, outra estreia: filas de espera
para a casa-de-banho. A miss teen demora-se, novamente de porta
fechada, há todo um ritual de beleza e de treino de poses ao espelho, apesar de
as escolhas de roupa da sua lavra deixarem muito a desejar. Lembro-me que a mãe
também me deixou desfilar com sapatos de verniz quando eu tinha 11 anos e que
experimentar o mau gosto me fez, mais tarde, ter bom gosto, por antítese. E por
isso encolho os ombros e já nem me dou ao trabalho de tentar direccionar a
escolha do vestuário para o que acho que a favorecerá. Tudo funciona por
psicologia invertida.
E depois há o raio do telemóvel que a avó lhe deu no Natal
em reconhecimento das suas notas a pique e ausência de qualquer método de
estudo e concentração – os avós têm comportamentos bizarros, razões que a razão
não consegue descortinar.
Todas as conversas são sobre novos modelos, novas app’s,
novos tarifários, qual é a password do wifi,
o candy crush e o my boo, as selifies
e, de quando a quando, algum mito urbano que envolva o aparelhómetro.
Quase todas as discussões são sobre este novo apêndice do
corpo da minha primogénita, todos os castigos implicam-no invariavelmente, e
tudo é sobre o dito. Não sei como ainda não voou pela janela em momentos de
autênticos braços-de-ferro à minha paciência, ou como não o desfiz com um
martelo no dia em que gritou, desesperada, quando lho confisquei por uma
qualquer má criação: ‘eu não posso viver sem ele!!!!’ Já estive mais longe…
Sim, tenho a certeza, tenho uma cellfish em casa: eu, o meu umbigo, o meu telemóvel e mais nada. E a certeza que a procissão ainda está no adro.
Eu faço pendant com a estátua e com o grafitti. Foto: A Família Numerosa |
Entalado entre as minhas terrible
twos, de onze anos e 23 meses, fica o rapaz-sanduíche por quem não dávamos nada e
que, sem nos apercebermos, já lê, já escreve e teve muito boas notas, mesmo
mantendo o seu registo de bobo da corte e no meio deste universo feminino em erupção.
Mas isso é para outra história…
fiquei zonza...
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