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sexta-feira, 3 de abril de 2015

Terrible Twos



Upside down. O querubim moreno endoidou. Foto: Ties

Não estava à espera de sair da maternidade com uma adorável e cor-de-rosinha recém-nascida ao colo, primeiro apanhar um frio do caraças que enregelou todos os ossos do esqueleto e depois só o da queixada, quando o temido momento da factura do aquecedor em cada assoalhada chegou, rodar a chave na fechadura, as luzes da árvore de Natal branca e encarnada a piscar como que dizendo ‘bem-vindos a casa’ e, do outro lado, lar querido e doce lar, ho ho ho, joy to the world, e ter à minha espera não uma mas duas adolescentes: uma com 11 anos e a outra com 19 meses.

Não tive direito a aviso prévio, pombo-correio, mensagem na garrafa ou mesmo pedra da calçada a voar pela janela a dentro – não houve curso de formação, nem pude treinar uma ou duas vezes. Agora sei-o, era uma bomba-relógio, uma panela de pressão, mas eu não ouvi o tic-tac nem a chiadeira, andava num outro mundo, com o centro gravitacional alterado por um barrigão de nove meses, e embriagada por um mundo de folhinhos, rendinhas e cueiros com cheiro a alfazema.

Rebentou-me esta granada nas mãos ao mesmo tempo que fazia malabarismos com fraldas, cólicas, fissuras nos mamilos, mastites e privações de sono. Tenho duas adolescentes em casa: uma com 11 anos e a outra hoje com 23 meses.

De repente, não (re)conheço as minhas meninas. 

Não fazemos mais pose: somos as terrible twos (e a foto recusa-se a rodar, é karmico). Foto: A Família Numerosa.

Neste momento, aliás, a mulher mais previsível desta casa é, seguramente, a pequena Isaura (comigo incluída – também eu me metamorfoseei numa outra coisa nos últimos meses; as hormonas em cocktail Molotof que em vez de explodir deu o efeito de ter tropeçado para dentro de um caldeirão de Xanax com cheirinho a bebé). Sei de cor as manhas e os caprichos da pequenina: a bebé Isaura funciona numa espécie de sistema binário muito simples: fome, xixi, desconforto, dor, rabujice. E tudo, mas mesmo tudo, se resolve com uma mama. É fácil; é mesmo muito fácil… E a minha mãe insiste na lenga-lenga que cai em saco roto, como há três filhos atrás: ‘quando eles forem mais velhos e tiverem um problema, o que é que fazes? Dás-lhes uma bola de Berlim? Fazes-lhes cozido à portuguesa?’Pois, mãezinha, lamento, infelizmente não funciona: já tentei encher o bandulho às duas adolescentes cá de casa e caiu tudo em saco roto.

Socorro, mãe! É uma adolescente aqui ao meu lado! Foto: A Família Numerosa

A mais nova está de greve de fome até mesmo antes de a irmã nascer. O pouco que come vai preferencialmente para os hidratos de carbono, com preferência para o arroz. Somos pais permissivos (isso ou não queremos – é mais não aguentamos - gritaria): se não quer não come, nunca ninguém morreu à fome com um prato cheio de comida à frente e o conduto deve-lhe vir de algum lado, pois continua uma matulona maciça.

Já a adolescente mais velha, a que antecipou a puberdade um bom par de anos face aos meus cálculos e melhores expectativas, é o terror dos buffets onde as crianças até aos 12 anos só pagam metade: os preferidos das famílias numerosas de filhos pequenos. A moça dá prejuízo à casa – daria prejuízo mesmo que pagasse a dose de adulto. Tudo nela germina à velocidade de uma Primavera a mamar esteróides ao almoço ao jantar e à ceia – até o mau-feitio, ou sobretudo ele, a par com o tamanho do nariz –, mas quem me dera que a medida da anca da minha mais velha (a começar a puxar perigosamente ao meu lado) fosse o único ou o maior problema com que tivéssemos a enfrentar nos próximos tempos.

Melancolia. Coisas de Adolescentes. Foto: A Família Numerosa.
Nesta casa vivem-se tempos de mudança.
Sabíamos isso desde que a bebé-milagre decidiu que tinha que vir parar a este agregado barulhento. Estávamos preparados – ou pelo menos achámos que sim: eu fiz muitos excel’s e outros planos maléficos e metafísicos – para as mudanças da visita da cegonha.

Mais uma vez, tempo perdido, para quê perder tempo a planear seja o que for? A bebé é um amor e nós temos o arcaboiço de quem já está a lidar com um recém-nascido pela quarta vez. Mas, surpresa!!! Toma lá duas adolescentes irrascíveis e leva ao forno para ver o que sai. E, por enquanto, ainda cheira a esturro…

As primeiras três semanas de vida da Isaura foram críticas para a minha adolescente de ano e meio e de cachos de caracóis e olhos negros. Pontaria das pontarias a família cresceu e essa adição de amor e coisas fofas coincidiu com a chamada ‘adolescência do bebé’ – os terrible two’s. Ou despoletou-a. Tanto faz. Deal with it!

Já ando neste ofício de criar filhos há mais de uma década, mas, talvez porque a paciência é outra aos vinte anos, nunca me dei conta de tal fase nos meus primeiros filhos. Ou então lia menos. E não havia Facebook e grupos de mães em frenesi de partilha ao segundo.

Greve de fome. Tudo começou suave discretamente com a greve de fome. E porque uma greve anda sempre a par de um barulhento protesto e manifestação houve gritos (e muitas lágrimas, ai tantas lágrimas). A vizinha do lado, octogenária bisavó, veio aflita perguntar-me o que se passava: ‘Não se ouve a bebé; só se houve a Aurora a chorar e a gritar… Está tudo bem?’

Não. Não estava tudo bem. E foi o suficiente para me esfrangalhar os nervos, acabadinha de parir. Fartei-me de chorar também. Um choro hormonal, mas de lágrimas gordas e desesperadas.

E como uma greve e uma manifestação não se fazem sem palavras de ordem, a minha terrível Aurora – outrora um ser celestial, entre o querubim seráfico e a perfeição de boneca de porcelana de edição limitada  – começou a falar. A falar tudo feito papagaio moreno de bico que já nada tem de sereno.

Visto à distância foi uma espécie de duelo:  ‘Ai vens para casa com um bebé cabeludo com ares de feto engelhado? Então toma lá, que eu estou cada vez mais linda a cada dia que passa e agora, ainda por cima, falo e cuspo trapalhonices fofas que derretem toda a família!’. Sem pudor assumo: ela ganhou esse round. Ninguém resiste à voz de bagaço meia belfa da menina. Dá vontade de lhe trincar as bochechas.

Mas não ficou por aqui. Como é da praxe, não é raro o registo de altercações nas greves, nas manifestações e nos protestos. E a Aurora está nesta luta de corpo e alma. ‘Ai o bebé arrotou e estão todos deliciados com o cheiro a requeijão azedo? Então espera, vou trepar a esta cadeira e atirar-me daqui para baixo. Ups, abri o lábio? Ups, isto está a doer! Paiiiiiiiiii!!!!’
Sim, pai! Eu deixei de existir na equação dos seus afectos – a Aurora está magoada e não é com o bebé; é comigo.

A mão que embala a pequena adolescente. Não é a minha. Foto: A Família Numerosa.
O pai agora é chamado para tudo, ela arrasta-lhe a asa e agarra-se-lhe às calças com aderência que lembra um anúncio da minha infância que envolvia cientistas colados ao tecto.

São inseparáveis; a Aurora passou a ser Electra, antecipando alguns anos o que reza a literatura sobre o assunto: o pai dá a comida, dá o banho, muda a fralda, adormece, consola, dá mimo, o pai brinca, o pai veste, o pai leva à escola e, coitado, é o pai quem vai sonâmbulo, pelas quatro da matina, hora em que o passarinho começa a fazer os seus primeiros gargarejos, sonhando com suculentas minhocas, e que passou a ser o primeiro momento de drama e birra do meu querido papagaio-gralha.

O pai vai paciente buscá-la à cama, solta baixinho um ‘shiu, não acorda o bebé’, e seguem juntos para o sofá, onde dormem tortos e tapados com uma matilha de três gatos solidários com a desgraça madrugadora que assolou aquela casa, até que, um bom par de horas depois, me levanto eu, dou corda à caixinha mágica que é esta família, e começa tudo a girar com a precisão de um relógio suíço em que cada minuto é tão frenético quanto precioso e eterno.

Nos primeiros momentos do dia é-me concedido um vislumbre da vida antes de a Isaura chegar, e volto a dar colo à bebé que foi forçada a crescer antes do tempo. Às primeiras horas da manhã, ou não se chamasse ela Aurora, ela concede que me adora e que também sente a minha falta. Vem com os caracóis ripados pelas almofadas, um despenteado volumoso que lhe tapa os olhos, tropeça desajeitada para cima de mim, e ficamos abraçadas uns cinco minutos, um abraço forte e beijos dorminhocos. Dura pouco tempo, mas eu agradeço a esmola.

Com sete pedras na mão e sem direito a nenhuma migalha de doçura. A minha adolescente de onze anos evita há muito todo o contacto físico que seja sinónimo de demonstração de afecto. Dar beijo de até já em frente à porta do liceu, por exemplo, é o mesmo que ter lepra. ‘Menos, mamã, menos…’ (ainda me chama mamã, já não é mau).


Me, myself and I. Foto: A Família Numerosa
A arrogância e soberba estão tão assanhadas como os pontos negros no nariz. A casa passou a ter portas fechadas – coisa nunca antes vista e que me implica com o sistema nervoso muito dado a um feng shui de aqui ninguém tem nada a esconder.

‘Preciso da minha privacidade!’, atirou outro dia, de dentro de um quarto imundo e desarrumado. De manhã, outra estreia: filas de espera para a casa-de-banho. A miss teen demora-se, novamente de porta fechada, há todo um ritual de beleza e de treino de poses ao espelho, apesar de as escolhas de roupa da sua lavra deixarem muito a desejar. Lembro-me que a mãe também me deixou desfilar com sapatos de verniz quando eu tinha 11 anos e que experimentar o mau gosto me fez, mais tarde, ter bom gosto, por antítese. E por isso encolho os ombros e já nem me dou ao trabalho de tentar direccionar a escolha do vestuário para o que acho que a favorecerá. Tudo funciona por psicologia invertida.

E depois há o raio do telemóvel que a avó lhe deu no Natal em reconhecimento das suas notas a pique e ausência de qualquer método de estudo e concentração – os avós têm comportamentos bizarros, razões que a razão não consegue descortinar.

Todas as conversas são sobre novos modelos, novas app’s, novos tarifários, qual é a password do wifi, o candy crush e o my boo, as selifies e, de quando a quando, algum mito urbano que envolva o aparelhómetro.

Quase todas as discussões são sobre este novo apêndice do corpo da minha primogénita, todos os castigos implicam-no invariavelmente, e tudo é sobre o dito. Não sei como ainda não voou pela janela em momentos de autênticos braços-de-ferro à minha paciência, ou como não o desfiz com um martelo no dia em que gritou, desesperada, quando lho confisquei por uma qualquer má criação: ‘eu não posso viver sem ele!!!!’  Já estive mais longe…

Sim, tenho a certeza, tenho uma cellfish em casa: eu, o meu umbigo, o meu telemóvel e mais nada. E a certeza que a procissão ainda está no adro. 

Eu faço pendant com a estátua e com o grafitti. Foto: A Família Numerosa
Entalado entre as minhas terrible twos, de onze anos e 23 meses, fica o rapaz-sanduíche por quem não dávamos nada e que, sem nos apercebermos, já lê, já escreve e teve muito boas notas, mesmo mantendo o seu registo de bobo da corte e no meio deste universo feminino em erupção.

Mas isso é para outra história…

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