Quem faz um blog fá-lo por gosto

sexta-feira, 13 de março de 2015

Amor de cão



Já vos falei do único ruivo cá de casa, olhos doces, quatro patas, barriga sardenta, barbichas adoráveis, algum mau hálito e uma incrível propensão para sopas e descanso.

O Cenoura está connosco há quatro anos e antes disso esteve um bom par de anos à nossa espera e à guarda da União Zoófila -- até que todos os caminhos nos levaram até ele, numa tórrida tarde de Agosto cheia de felizes acasos que nos guiaram certinhos àquela box.

Tinha que ser assim. E a nós não nos podia ter saído melhor cão na lotaria.
Acho que acabo de desistir de o demover de dormir nos sofás e em todas as camas cá de casa. Rendo-me. Como é que depois podia ter fotos como estas, para toda a eternidade e mais além?



Adoptem. Não comprem,
A recompensa será um amor de cão :)



 Fichas de cães maravilhosospara adopção e à guarda da UZ aqui.


quinta-feira, 12 de março de 2015

Primavera



Chegou o temível mês de Março, aquele em que as abelhinhas andam loucas aos pólens, em que a Natureza acorda cheia de pica, depois do longo e gélido sono do Inverno, em que as vendas de anti-histamínico disparam nas farmácias.
O mês em que fazemos bebés.
Há um ano vinhas de surpresa com a força da Primavera.
Agora estás aqui, feita raio de sol, o centro do nosso mundo, da nossa família.

Fotos: A Família Numerosa num baratucho Nokia Lumia. O modelo é que faz milagres.


segunda-feira, 9 de março de 2015

I'm not a morning person

Isaura: Oi? Foto: A Família Numerosa


Anos a fio a odiar as manhãs. Feito gato laranja gorducho devorador de lasanhas, eu passei décadas da minha vida sem carburar como deve de ser durante as primeiras horas do dia. 
Esta aversão matinal transcendia o mau acordar. Porque, na realidade, sempre tive bons acordares - o despertador toca e eu pareço impulsionda da cama por uma daquelas molas celebrizadas nos desenhos animados.

Depois do calvário do meu percurso no ensino superior, que se iniciava no alto de uma colina de Benfica logo pelas oito da manhã (e que, por isso, muito sofreu por esta minha incapacidade física de funcionar de manhã) levei uma década boa de jornalista, com o dia a começar preguiçoso e tardiamente, respeitando o meu ritmo biológico e os meus sonos de beleza.


E depois aconteceu-me isto: as manhãs passaram a ser os momentos mais preciosos de todos.
Primeiro, aquele momento de paz e luz antes de o dia começar. Deixo-me invadir por aquele silêncio, mesmo que a gata Farrusca já me esteja a pressionar como uma sombra por uma saquera da Whiskas.

E depois começa o dua com os caracóis desalinhados da Aurora; os olhos inchadíssimos e azuis da Carolina em piloto-automático a passear-se com uma malga de cereais. Há as caretas mimosas e o bajulanço do António a pedir-me mais cinco minutos e abraços. Os primeiros sorrisos da Isaura ou os barulhinhos que faz quando está quase quase a despertar. Eu de pés descalços - sempre de pés descalços - a dar os bons dias ao João, com o romrom da máquina do café em surdina.

Acordo com as galinhas.
E agora sou um misto de mãe galinha e galo vaidoso, grato por cada alvorada.

Aurora: Ela berra mas eu não desfaço a pose. Foto: A Família Numerosa

quinta-feira, 5 de março de 2015

Isaura


[Vou-me habituando a esta coisa de me ter metamorfoseado numa estranha espécie de marsupial maneta, que se propõe a encarar a vida tal e qual como ela sempre foi com um bebé colado ao regaço e com um único braço e mão operacional. A minha mãe, noto agora, arranjou sempre alcunhas de insectos para os meus filhos: à primeira neta chamou-lhe ‘carochinha’. O António, pela sua doçura e amor cego pela sua mãe, ficou o ‘melga’. A Aurora, de tão moreninha que nasceu, ganhou o petit nom de 'cucaracha', nome doce para barata-tonta que é o meu raiozinho de sol. A pequena Isaura já não teve direito a falinhas-mansas da sua avó. É o 'carrapato'.]


Morrer de amor. Logo à primeira hora da manhã. Foto: A Família Numerosa

Estou há 90 dias num ciclo vicioso de amor.
Por vezes, caio em mim e espanta-me todo este deslumbramento.  

Vivi todos os dias deste trimestre como se tudo fosse uma primeira vez, como se o universo me concedesse de novo a benesse irrepetível e emocionante de uma estreia. É bem pior que isso, sei-o bem agora: não é a primeira vez… é a última. E há toda uma fatalidade arrebatadora nessa certeza.  

Ainda há pouco vivi todo este algodão-doce cor-de-rosa, não seria suposto trazer em mim pelo menos uma ténue recordação? Tenho dois bebés em casa – e isso sim é uma novidade. São 19 meses de diferença, ano e meio. E vou na quarta repetição, devia estar já de barriga cheia, até um pouco enfartada a pedir um anti-ácido. Encho-me de espanto. E fico aterrada no segundo seguinte. E depois penso, penso muito sobre que amor é este que apanhou desprevenida na curva apertasda que nem vi a chegar ao meu caminho: O que fiz eu para merecer tanto desta vida?

O último filho é em tudo igual ao primeiro. Descompensei-me toda: como mal, muito mal, não durmo - fico com insónias, do assombro de ter achado este tesouro, da vertigem de ter na mão a chave de toda a felicidade do mundo. Oscilo entre fervorosos estados de humor que se passeiam, frenéticos, em filinha indiana, pelas 24 horas do meu dia: vou do frenesi desenfreado ao êxtase num minuto, passo demoradamente por uma paz absoluta e branca que quase me cega de tanta claridade que me leva ao coração, mas, de um momento para o outro, agita-se tudo e deixo-me levar por um turbilhão de momentos de terror, pânico e exaustão.

Às vezes sinto que me falta o ar. Pelo devir. Pela fragilidade deste castelo de cartas perfeito, construído com enormes fundações numa nuvem farfalhuda com vista para os sonhos mais lindos de todo o mundo e de toda a gente. Sei, estou perfeitamente ciente que, de um momento para o outro, tudo se poderá agitar. E do castelo de cartas pode um dia apenas restar um baralho com que se volta a jogar às cegas. É tão imprevisível quanto isto. Mas, por enquanto, vou fazendo uns truques e – confesso – trago muitas cartas na manga para o que der e vier. Tudo o que me tem vindo a acontecer é pura magia. E eu já tenho os quatro ases na mão - são os meus filhos.

Estou apaixonada. Estou viciada na minha filha Isaura.
Estava no bloco operatório gélido do Hospital da Luz, a sofrer na pele todas os efeitos secundários possíveis e algum dia descritos para uma epidural, quando o chefe de serviço da Anestesia, que assistia à temível quarta cesariana (que afinal correu às mil maravilhas), me dobrou as costas e as empurrou para a frente, para que pudesse assistir a minha última filha a sair do meu ventre. Foi a primeira vez que um médico me deu essa oportunidade. Foi também a última.

Pouco importa que o momento National Geographic, da vida a acontecer ao segundo, tenha tido como efeito uma gigantesca quebra de tensão que fez disparar todos os avisos sonoros da maquinaria que me monitorizava. Vi sangue, vi o meu corpo todo exposto, com pinças e tesouras espetadas como uma almofada de alfinetes. E vi-a a ela. Ela deu o seu primeiro grito, respirou ar pela primeira vez e eu, acto contínuo, senti-me a afogar.

Foi o momento mais violento da minha vida.

A Isaura é o meu último milagre: o meu corpo dividiu-se em quatro e doravante carrego a graça de morrer todos os dias de amor.

O tempo de repente passou por mim.
Tenho o corpo todo tatuado por marcas de amor, podia até fazer uma cronologia, um itinerário a cada ruga, estria, cabelo branco, demorar-me em cada uma destas amolgadelas. O tempo passou por mim, mas, para já, eu levo a melhor. Trago a força dos sonhos que a vida há-de trazer aos meus filhos. 

Descompensei-me toda com este amor com quatro lados todos iguais, mas sinto-me capaz de feitos nunca imaginados. Posso mover montanhas com o meu dedo mindinho e com os outros nove que restam limpar rabos, fazer poesia, assoar ranhocas, e fazer do mundo um melhor lugar. Por causa deles e por eles.

Estou chocada por a vida me ter dado tanto. Agradecida a toda a hora. Por esta família que tão serenamente construo com o meu melhor amigo, com o amor da minha vida.

E depois há este cheirinho de bebé… Que inebria tudo e a quebra todos, que vicia, que é até altamente contagioso.

A minha mãe, como vos disse, chama a Isaura de carrapato.
Mas se calhar sou eu a lapa.

'A Isaura é tão linda que até me apetece desmaiar'. Assim fala o meu António. FOTO: A Família Numerosa.


Post escrito com a mama de fora, e apenas dois dedos da mão direita.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Puerpério – Sobreviver a Dezembro

Ano cor-de-rosa para todos (com oito dias, no estúdio da 'tia' Raquel Brinca)

 Reza a tradição, passada ao longo de gerações e gerações, em jeito de ritual de iniciação desta maratona frenética que é a maternidade, mas tão desbotada e encolhida como uma camisola de cor garrida que foi à máquina no programa de noventa graus e com a centrifugação máxima, que mulher parida deve ingressar voluntária e obrigatoriamente por um período de “resguardo” nunca inferior a trinta dias, confinada a quatro paredes e a um cocktail de canjas de galinha, muito descanso e toda a ajuda possível, para combater a privação de sono, as mamadas a cada três horas e uma rave hormonas em roda livre.

Todos sabemos que a tradição já não é o que era e, de certa forma, ainda bem; fico entre o alívio profundo e a náusea: é que diziam os antigos que mulher parida não podia lavar o cabelo – e nem quero nem imaginar em que condições lastimosas estariam os cerca de oitenta centímetros das minhas melenas se eu estivesse a escrever estas linhas a cumprir escrupulosamente esse regime feito à medida de superstições e crendices milenares.

Pois bem, foi já bem crescida, prestes a dar à luz à minha primeira filha, que dei por mim a folhear o dicionário (a Internet ainda era um bem escasso apenas acessível no posto de trabalho) à procura da palavra “puerpério”, intrigada com o termo que teimava a aparecer na pequena súmula de legislação laboral que me apresentava o sinistro livrinho verde da grávida do serviço nacional de saúde (a tradição mudou, mas o livrinho verde da grávida, apesar das “actualizações” gráficas da última década, continua a ser um “tesourinho deprimente”; pior só mesmo o cartão do cidadão com os seus caracteres numéricos minúsculos, apenas legíveis à lupa ou à visão infalível de uma ave de rapina).

Foi então que tomei conhecimento do “resguardo”, que é sinónimo do dito “puerpério”, um fenómeno insólito e em vias de extinção, que antigamente juntava um grupo de mulheres com o simples intuito de prestar assistência a uma outra mulher em apuros e a braços com esta coisa incrível que é gerar e deitar uma vida cá para fora e ficar com o mundo como o conhecemos todo do avesso. É que o bilhete premiado da taluda traz consigo aquele cheiro delicioso de bebé e também uma tonelada de roupa suja para lavar, estender, passar, dobrar, entre outras coisas, anteriormente banais e automáticas e que, de um momento para o outro, passaram a tarefas hercúleas, como preparar refeições, fazer a cama, pentear o cabelo ou até tomar banho.


Acaba hoje o meu “resguardo”. Não comi canja e lavei o cabelo menos vezes do que desejaria. Foram trinta dias inesquecíveis. E sim, estou a utilizar muita autocensura na adjectivação.

Um nascimento – o dia em que a minha filha-milagre veio ao mundo e em que o estranho e improvável amor que me cola ao João voltou a transbordar violentamente. Uma cesariana, a quarta e última vez em que o bisturi me rasgou o ventre, expondo o mais incrível feito de toda a minha existência. Uma cirurgia complicada, turbulenta, mas sem que nenhuma das complicações que nos assombraram ao longo de três trimestres ousasse sequer a aparecer de soslaio, e uma recuperação sobrenatural ao fim de apenas 24 horas. Uma euforia apenas comparável à primeira vez que se consome uma droga dura. O espanto de ter gerado este incrível ser-humano – e particularmente embasbacada com a perfeição das orelhas peludas. 

Entrem com o pé direito em 2015!

O 11º aniversário da filha mais velha, com direito a duas festas de arromba – uma para a família, outra com dezena e meia de pré-adolescentes. O fato de super-mulher sempre vestido e caber na roupa mais justa de todas as penduradas no roupeiro ao sexto dia após o parto. O 65º aniversário do meu sogro e um acampamento cigano de visitas ao presente de Natal antecipado que nos chegou no primeiro dia do advento. 

Comprar barro, esculpir um aldeão para o presépio colectivo da escola, e entregá-lo, ainda assim, com um gigantesco e embaraçoso atraso para uma mãe que até tinha um Excel que tudo previa. Crises de choro por tudo e por nada. ~

Um recém-nascido a perder peso e com icterícia. Mais lágrimas. Urgências, pulseiras vermelhas, e picadas nos pequeninos pés e mãos mais perfeitos que já vi, para análises que não confirmariam as piores suspeitas. Uma mastite, novamente nas urgências, dores indescritíveis e febre a quarenta graus. Um recém-nascido a perder mais peso e ter que lhe enfiar um biberon na boca. Quatro festas de Natal apesar de eles serem só três, com lanches, e espectáculos de música e dança. O 37º aniversário do João – está cada vez mais lindo o meu homem. O sexto aniversário do António – está cada vez mais lindo meu homenzinho.

E não se esqueçam de vestir cuecas azuis!
Compras de Natal. A Consoada e os despojos intermináveis da festa que não me apetecia este ano, e que o pai Natal não levou consigo para a viagem de volta ao Polo Norte, acabando por consolar os gatos e o cão desta casa que, neste momento, devem estar pré-diabéticos. Presentes de anos e de Natal escondidos nos armários para distribuição faseada ao longo do próximo ano. 

Comer bolachas e chocolates como refeição e dar cabo de toda a dieta restrita e meticulosa seguida nos meses anteriores. Aquecedores ligados 24 horas por dia. Máquinas e máquinas de roupa a lavar e a secar, e estendais cheios de cueiros e babygrows, uma casa permanentemente em desalinho. 

Um bebé de 19 meses com crises de ciúmes, de choro, e de pilantrice e que, entretanto, começou a falar talvez para chamar à atenção.

Acaba hoje o meu “resguardo”. Faltam duas horas, vou lá chegar às doze badaladas.
Sobrevivi a Dezembro. Sobrevivemos a Dezembro.

E escrevi este texto com apenas dois dedos e um bebé pendurado ao peito a mamar.

Bom Ano para todos.

Amanhã gostava de vos falar da minha doce Isaura, que amanhã faz um mês de vida.



domingo, 30 de novembro de 2014

O Excel da Família Numerosa

Temos um encontro marcado daqui a 24 horas. E para esse não há Excel que nos valha. [Foto: Ties.pt]
A folha de cálculo da Microsoft entrou na minha vida há metade dela. Mudou o curso de muitos eventos que a partir desse momento se seguiram, entre macros, worksheets, tabelas, gráficos e funções mais avançadas. Desculpem o jeitinho dramático, profundo, solene e grave, mas vem aí uma boa história.

Pessoalmente irrita-me que um aplicativo do Bill Gates para fazer contas e cálculos me tenha eventualmente desviado daquele que eu estava certa ser o meu grandioso destino (depois, mas muito depois, muitos, muitos anos depois, veio o Powerpoint, ferramentazinha que me dá azia, mas com a qual transformo slides em euros e talvez até dominar o mundo, mas isso, meus caros, são outros quinhentos; fica para depois), mas é mesmo assim a vida: eventos extraordinários, acontecimentos tão improváveis que nenhum matemático se daria ao trabalho de resolver a complexa equação, rotundas iluminadas que abrem inúmeros caminhos e possibilidades num frenesi de carrossel e encruzilhadas onde, num instante, tudo muda. Para sempre. Quer se siga em frente. Ou se volte para trás. Corte-se à direita ou para a esquerda.

Foi numa sala de informática nas catacumbas de uma escola superior de comunicação social em Lisboa, com uma arquitectura muito catita sobre a segunda circular mas nada funcional e acusticamente viável para quem lá almejava aprender as artes de vender a banha da cobra (e eu queria fazer anúncios; era isso que eu queria: fazer bonecos, grandes copys  que ficassem no colectivo para sempre e filmes de trinta segundos que rugiriam em Cannes) que eu cliquei duas vezes com o rato sobre o ícone do Excel.

Nada seria como dantes.

Não tive computador em casa até ser adulta e vacinada. Lá em casa sempre houve muitas máquinas de escrever, Olivetti de várias cores e tamanhos, eléctricas, com memória e apagador automático, e armazenadas em gavetas da sala encontrávamos bobines de Kores e papel químico. Mas a minha mãe nunca atinou sequer com o VHS ou com o evento extraordinário que foi o controlo remoto da televisão, quanto mais com um computador. Sobrevivi a tamanha provação de uma forma despreocupada e feliz, uma suplèsse que a minha filha mais velha, de dez anos, não parece capaz de superar, só porque o seu Magalhães Socrático já não corre à velocidade que ela acha conveniente para ver filmes da Violetta no Youtube.

À parte as aulas de Introdução às Técnologias de Informação do ensino secundário, onde aprendi MS/ DOS no papel – porque a escola não tinha um único terminal –, mantive-me indiferente a este teclado sobre o qual martelo estas palavras com demasiada força (talvez a força necessária para uma Olivetti) até à minha entrada na Faculdade, sobre a segunda circular, em Benfica (um território que eu, menina de Alvalade, filha de uma mãe solteira sem carta de condução, achava que nem fazia parte de Lisboa).

Tenho poucas recordações dessa escola. Fiz o curso desmotivada e ao pé-coxinho, aparecendo muito pouco por lá – ali na segunda circular não havia nada para mim, ou para os meus sonhos de fazer arte no bloco publicitário da novela. Foi pura desilusão. Mas devo-lhe a meia dúzia de amigos para a vida que ali conheci.

O Excel foi um dos raros entusiasmos que aquelas salas me concederam: macros, balanços de stocks, listagens infinitas com tudo o que me apetecesse.  Já vos disse anteriormente: há um obsessivo-compulsivo assanhado em todos nós. Cada qual ameniza a sua ansiedade com o melhor escape que está à mão e, nessa altura, o Excel foi minha bizarra muleta, e isso foi um momento tão ou mais perturbador como aquele da minha pré-adolescência em que a simpática psicóloga escolar, depois de uma gigantesca bateria de testes psicotécnicos à extra-sensível e criativa ‘filha do pintor’, sentencia, visivelmente perturbada, que os meus melhores valores dão para profissões burocráticas, como contabilista, ou analista financeira e que os meus piores resultados iam, precisamente, para as artes.
São estranhos os caminhos do destino. Sei-o bem agora. E aceito-o com serenidade.

O meu percurso académico apresentou-me a muitos outros perturbadores softwares informáticos. O SPSS de tratamento estatístico de dados nunca me deu pele de galinha; o Photoshop e o Quark ainda me fizeram olhinhos; houve um outro de planeamento de campanhas publicitárias, com cálculos de OTS, Audiências e GRPs que ainda me fez levantar o sobrolho de interesse, mas a verdade é que eu entrei para o jornalismo, e toda a minha vida mudou, por causa do Excel.   

E isso também foi há metade da minha vida atrás. É assustador constatar que o dia em que eu pisei numa redacção já foi há 18 anos – poderia ter nascido outra vez, já teria atingido a maioridade e teria direito de voto.

A minha posição na hierarquia da redacção era igualmente bizarra. Estava no final da cadeia da alimentação mas mesmo assim deu-me direito a um epíteto: era e fui largos anos da minha vida a ‘menina das Bolsas’. Quatro páginas diárias estavam à minha responsabilidade; às quais acresciam outras quatro semanais, num suplemento que fechava a desoras nas madrugadas de sexta-feira.

Todas aquelas páginas impressas em papel de má qualidade se faziam em Excel. Eu chegava a meio da tarde a um sítio até então ausente e desconhecido da minha geografia de lisboeta, na Quinta do Lambert, e corria macros com dados do mercado em contínuo e das cotações dos fundos, que vinham em disquete de baixa densidade por estafeta da Bolsa de Valores de Lisboa. Havia um único terminal com Internet em toda a redacção e estava dentro de um aquário, como uma Mona Lisa no Louvre. E era eu quem lá mais passava tempo. A viajar através da Yahoo.

Eu chegava e introduzia o Nasdaq, o Ibex, o Dow, o Cac à unha dos ruidosos telexes azuis que saiam do terminal da Reuters e, pelas 18h00, ligava o teletexto da televisão do bar, onde se transacciona whiskey em copos discretos de papel, para ver o fecho da bolsa suíça. Calculava a capitalização bolsista nacional, registava a evolução semanal e anual do escudo face ao dólar e face à libra. Depois, de tudo tratado no Excel, mandava dezenas de ficheiros para a rede e seguia para o departamento dos gráficos, abria-se o Quark, anos mais tarde o Indesign e paginava-se tudo, ficando apenas à espera do comentário da bolsa e dos câmbios lá para o início da noite.

Hoje, a 24 horas de nascer a minha quarta filha, tenho o Excel aberto e toda a vida da minha família numerosa na última semana e nos próximos dias está discriminada em células digitais, à falta de papel quadriculado, régua e esquadro.

Como qualquer plano perfeito, tem que ter a humildade de estar aberto a alterações constantes, a qualquer hora do dia ou da noite, um baralha tudo e volta a dar, toca a encaixar de novo as peças do puzzle esquizofrénico. Não previ pois que o António, que nunca está doente, apanhasse uma amigdalite, e logo de seguida a ‘quinta doença’, ou que a Aurora também decidisse que era uma boa altura para trazer para casa uma virose de nome surreal – síndroma de pés-mão-boca.

É a minha quarta gravidez e, se bem que não tenho a presunção de tudo saber sobre os mistérios da maternidade, não estava também previsto no Excel o insólito acontecimento de ter uma subida de leite mesmo antes de ter um bebé ao colo para alimentar.

Justiça seja feita; algumas coisas correram conforme o planeado: consegui fazer a árvore de Natal, no roupeiro dos miúdos estão conjuntos de roupa completos para todos os dias da próxima semana, incluindo cuecas e meias, acumulei na despensa leite, comida de gato e papas lácteas dignas de um bunker de sobrevivência, pintei o cabelo, fui à depilação e até arranjei tempo para dormir um bocadinho – privilégio que sei que vai estar em suspenso nos próximos meses.

 A partir de amanhã, o Excel da Família Numerosa prevê a que horas é que se tem que acordar e porque ordem, o que cada um toma de pequeno-almoço, incluindo os animais, o conteúdo de cada uma das mochilas da minha prole, as datas e horas dos testes de avaliação do final do primeiro período, aparentemente todos marcados para esta semana, os imperdíveis ensaios de hip hop e do coro da mais velha, que será estrela da festa de Natal com a sua voz cristalina e jeito desengonçado, as aulas de judo e de dança e as visitas de estudo a Monsanto do rapaz do meio, que também tem que fazer uma figura de barro para o Presépio da escola, as rotinas e manhas para adormecer a pequenina Aurora…

E, para cada um dos itens, o meu Excel determina a respectiva delegação de competências, distribuindo o mal pelas aldeias durante a minha ausência na maternidade. Detalhe a detalhe, preto no branco, a quem confio toda esta complexa logística que é a minha vida. A vida que eu não trocava por nada, a vida que, se calhar, comecei a construir quando cliquei duas vezes sobre o ícone do Excel pela primeira vez, há metade da minha vida atrás.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A família numerosa de quatro patas (um post com miados e latidos, patrocinado por Noé)

Junho de 2013. O tímido, desconfiado e velhote gato Pi, aproxima-se da Aurora pé ante pé.  [Foto: A Família Numerosa]
A Família Numerosa tem muitas patas e pode dividir-se em conjuntos e múltiplos de quatro. É muito peluda, cabeluda e colorida: há pretos, há pardos, há ruivos, há loiros, loiras e morenos. Há olhos castanhos, amarelos, verdes e azuis. A Família Numerosa é assim: uma balbúrdia.

Costumo dizer, a torto e a direito, em jeito de louvor público, que a minha empregada é uma santa sem altar, Nesta casa temos aquilo a que eu chamo o 'ABC' a que nenhuma empregada doméstica no seu perfeito juízo se submete: Animais, Bibelots, Crianças. Abençoada seja Nargiza, que veio da milenar idade de Samarcanda, no Uzbequistão, Ásia Central, para ser o nosso garante de sanidade mental, a senhora organizadora de todas as confusões.

Farrusca, a benjamim, sob a interminável e hipnotizante manta de crochet que ando a fazer há tempo de mais. [Foto: A Família Numerosa]
Durante muito tempo fui conhecida pelo Bairro de Alvalade como a 'filha da senhora dos gatos' (agora serei, eventualmente, conhecida na rua pela 'senhora que tem muitos filhos', ou 'a senhora que está novamente grávida'. De uma coisa tenho a certeza: já sou a senhora; à excepção do porteiro da minha empresa e de uma ou outra peixeira na Praça já ninguém me chama de 'menina'). 

Há um obsessivo-compulsivo em todos nós: há quem preencha os vazios comendo; há quem faça colecções de cromos, mochos, ou memorabilia do Star Wars. Há quem estoire dinheiro em viagens, roupas caras, ou electrodomésticos sofisticadíssimos. Há quem vá ao bingo, aposte tudo na raspadinha ou anestesie a alma na taberna com vinho barato.

Já a minha mãe, dedicou grande parte da sua vida adulta a uma devoção assisiana a estes deuses ronronantes, os gatos, regatando-os, amando-os e compreendendo-os ao ponto de eu estar praticamente convencida de que ela sabe miar e que aqueles grandes bigodes que teima em não arrancar à pinça ou por qualquer outro método à escolha (dizendo por graça que está a tentar tornar-se a primeira mulher a ser aceite no clube restrito dos homens de bigodes) é um sinal inequívoco da sua metamorfose em 'lobisgata'.

Gata Manga apresenta-vos um detalhe do quarto das bebés. Os mais atentos já terão reparado que a minha obsessão é o crochet. [Foto: A Família Numerosa]
Os gatos fazem desde sempre parte da minha vida. 

Ironicamente e, apesar da minha vasta convivência com felinos desde tenra idade, não estou imune à toxoplasmose: aquela doença cque impede as grávidas de comer alface, morangos e carne mal-passada e que leva, estupidamente, ao abandono de milhares de felinos por todo o mundo, por pura ignorância e alarmismo neurótico.

Sou uma grávida muito descontraída, tenho a noção disso. Fui, durante alguns, muitos anos da minha idade adulta uma pessoa muito ansiosa. Pedaços de vida menos doce assim me toldaram. Levei algumas panadas na vida, tropecei em demasiados desaires, fui vítima de estranhas circunstâncias e de injustiças grotescas que, a páginas tantas e durante tempo de mais, me tornaram uma panela de pressão prestes a explodir, apesar do trato tresloucado de falsa extrovertida de que sempre tive fama.

Depois, muito tempo depois, veio a gravidez da Aurora em plena intervenção da troika. As primeiras cólicas da nervoseira do sistema parassimpático surgiram automaticamente com as dúvidas sobre como iríamos sustentar uma família numerosa com um salário cada vez mais confiscado com impostos, taxas e sobretaxas, e um marido a recibos verdes, a descontar mais de 70 por cento do que facturava, entre retenções de IRS, IVA e pagamentos para a segurança social obrigatórios, quando do outro lado havia parcos recebimentos a 60, 120, 360 dias...

Não sei como, nem porque graça, nesse ano em que gerava a Aurora no ventre, baixou em mim a certeza de que tudo se cria e que coisas boas acontecem àqueles que não tiraram esta vida e a outra para embirrar com tudo e todos e à boleia fazer a vida negra ao vizinho do lado. Fiquei submersa numa serenidade que nunca antes tinha vivido - passei até então a minha vida num sobressalto de uma montanha-russa: altos muito altos, baixos muito baixos, bençãos a roçar o milagre, tragédias helénicas deslocadas para a ponta da Península Ibérica. Deixei-me levar por essa calma. Até hoje. Passámos a aproveitar a beleza das coisas pequenas, que não se compram com cartão, sabendo à partida que tudo é efémero e volátil, mas que não vale a pena estar a sofrer por antecipação. Como diz a amiga do peito Catarina Beato: a vida resolve-se sozinha.

Nada nos falta. Nada nos continuará a faltar. Estou certa disso. 

Margot, a rainha-gata-mãe, e o seu incrível e inimitável pantone azul de pelo [Foto: A Família Numerosa]
Desde então os meus níveis de neurose raramente se sobrepõem à razão. Ninguém é perfeito e nem tudo é rosa, mas passei a ser uma pessoa diferente e temo até que os amigos mais próximos desconfiem que ande drunfada em ansiolíticos.

E isto tudo vem a propósito de gatos e toxoplasmose. Para explicar que, cá em casa, não se abandonam gatos só porque o teste de gravidez deu positivo. Aliás, grávida de 32 semanas e com desgosto de ter perdido a minha felina matriarca, a incrível gata azul Margot, para um devastador cancro, rumei a Sete Rios, até ao gatil da União Zoófila, e foi lá que tive a sorte de poder ser a dona do mais inesquecível gato preto de bruxa à prova de todas as superstições: o Neco. 

Fomos nessa Primavera a 'estrela da companhia' da União Zoófila. Habituados que estamos a quebrar estereótipos e clichés, foi com gosto que participámos, já no estatuto de família numerosa com três filhos, numa dupla campanha de sensibilização à adopção de gatos pretos (os preteridos por estúpidas crendices), e pela queda do mito que uma grávida, não imune à toxoplasmose, não pode ter contacto algum com felinos.

Neco e Aurora, com uma semana de vida - amor sem fim. [Foto: A Família Numerosa]
Neco, o gato mais inesquecível desta casa, protege a Aurora das cólicas e dos sonhos maus [Foto: A Família Numerosa] 
O meu amor pelos meus gatos é idêntico e inspirado na sua personalidade independente (diria até displicente). Não lhes compro roupinhas, não os apaparico com saquetas gourmet com descrições e ingredientes idênticos à nova ementa do Eleven, não os trato como filhos, mas sim como gatos que são. 

Sei bem que eles é que marcam a agenda nesta casa, sei que eles é que escolhem quem é o seu dono, apesar de ser sempre eu a alimentá-los e sempre o João a limpar-lhes o caixote - isso não interfere com as suas preferências ou escolhas. A decisão de compra de um sofá também nunca é motivo de angústia: há-de ser sempre o maior e o mais barato da loja sueca, pois nesta casa amam-se mais os gatos que os sofás onde eles afiam as garras alegremente. 

Mas são gatos, não são filhos. Mas é claro que fazem parte da família. Fazemos por eles tudo o que estiver ao nosso alcance. Amamo-los a uma certa distância porque é assim que eles mais gostam.

O Neco, porém, foi um dos gatos que mais me marcou, apesar de ter esgotado as suas nove vidas num curto espaço de dez meses felizes que esteve ao nosso lado, sucumbindo súbita e fulminantemente a uma misteriosa doença na véspera do passado ano novo. Quem cresceu com uma mãe armada em 'Noé da Gataria' ganha um calo e uma imunidade à sua perda à prova de bala, Vai-se adquirindo uma certa insensibilidade. Dizem os entendidos que essa é, até, uma das grandes virtudes de uma criança conviver com um animal de estimação: ter conhecimento e experiência da morte, essa inevitabilidade da vida. 

E eu há muito que eu não chorava pela perda de um gato. Ainda hoje, quase um ano depois de o ter perdido, escrevo estas palavras de olhos marejados. Há coisas que não se explicam.

A Montanha Mágica - Cenoura, Manga e o Livro de Thomas Mann lá atrás na prateleira [Foto: A Família Numerosa]
Falta apresentar o Cenoura. É também um ex-inquilino da União Zoófila. Era o António bebé hiperactivo e soubemos que ele estava destinado a ser o nosso cão, quando se deixou abraçar violentamente pela peste loira endiabrada, sem exibir qualquer reacção de excitação, medo, ou terror. 

Trouxemo-lo à experiência, sem que as voluntárias da Associação estivessem convencidas que trazer um cão abandonado, traumatizado, e já adulto a virar para o sénior, para uma casa com crianças barulhentas e gatos peneirentos, ia dar bom resultado. Nós não duvidámos que era uma boa ideia. A sorte protege os audases, a vida resolve-se sozinha e o canídeo queria um sofá quentinho onde se aninhar.

O resultado está à vista. É que cá em casa há uma regra muito simples: a chave de tudo é o amor e é o respeito.

Chamem-nos subsversivos, liguem para a Protecção de Menores horrorizados, mas cá por casa damo-nos como cão e gato. Somos fiéis a esse princípio como um cão que segue incondicionalmente o seu dono até ao fim do mundo. Claro que nos sabemos diferentes em feitios e manhas: há uns independentes, outros carentes e ainda uns mais submissos que outros. Rosnamos alto, às vezes até bufamos uns aos outros. Já houve dias de valentes uivadelas (sei lá se estava lua cheia...).

Mas, no final, amamo-nos e somos felizes como um rom rom do fundo das entranhas, e levamos a vida com a mesma alegria de um cão a escavar um buraco muito fundo na terra, para guardar aquele osso.

Este é o nosso tesouro.