Quem faz um blog fá-lo por gosto

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O(s) meu(s) segundo(s) filho(s)

Amanhecer de dia 20 de Dezembro de 2008. Voltei a sorrir. Larguei o luto.
No outro dia o António fez sete anos.

O meu segundo filho, o meu único rapaz, é um anjo: vê-se de longe a sua aura, mas de perto desmascaram-no os filamentos de ouro fino das longas pestanas encaracoladas, que fazem brilhar ainda mais uns olhos que sorriem sempre. A pele muito branca e pálida, quase transparente, e a maneira desconcertante como espalha alegria e paz por onde quer que passe, denunciam que um querubim se fez menino nesta vida. 

O meu menino é um anjo, que expõe toda a beleza que a vida tem. É o ser mais consensual e doce que conheço. Faz umas pilantragens, arma umas confusões, mas é um ser único, capaz das coisas mais improváveis.

O feito mais incrível do António é ele ser quem é, tão leve, tão feliz, tão mágico, apesar dos pesares. 

Porque eu passei toda a gravidez do António de luto, a morrer de tristeza. 


Hoje, há oito anos, comecei a perder o meu segundo filho, o primeiro fruto desta incrível história de amor que aqui relato, quase toda ela luz e gargalhadas.

Tinha sido o nosso presente de Natal - eu estava finalmente grávida.

Contámos a toda a gente, foi um dos momentos mais felizes da minha vida: aquela tão esperada e desejada gravidez. 
Passáramos jantares de família de Domingo, durante meses e meses a fio, a escolher nomes estapafúrdios para o nosso primogénito, e finalmente acontecera, imediatamente após o momento de desalento e preocupação no qual eu tivera a coragem de questionar o meu médico se haveria algum problema, e sobre que opções teríamos ao dispor para concretizar este sonho que começava a tardar, o de termos o nosso primeiro filho em comum.

Flutuámos com a notícia, com o teste de gravidez que guardo numa caixa de latão dourada. Decidimos comemorar, a três: eu o João e a Carolina.
A vida, a nossa nova vida começava ali, depois de tanta tormenta, tanto sofrimento, tanta solidão que tínhamos enfrentado e enterrado quando o destino nos juntou, começava agora um novo capítulo, e era o mais feliz de todos: a nossa família, a nossa história interminável, estava prestes a começar.

A viagem seria curta, e o cenário escolhido era Óbidos e o seu castelo, uma escolha quase óbvia, quase cliché, para o conto de fadas que se seguiria nos próximos meses até ao Verão.
Fomos ao jardim da Estrela antes de seguir viagem. 
O chão junto ao portão da Basílica estava coberto de ouro. As folhas amarelas, quase fluorescentes, em forma de coração, da centenária Ginkgo, compunham um tapete triunfal e cinematográfico. A Carolina atirava-as ao ar, e andou naquilo, aos rodopios, um tempo sem fim, que ficou congelado numa parte demasiado dolorosa da memória.

Sem qualquer aviso, sem qualquer ai, sem uma dor, sem o grasnar lá do alto de uma ave de mau agoiro, sem o repique estridente do carrilhão de sinos da imponente basílica, eu comecei a perder o meu segundo filho por debaixo da chuva de folhas amarelas em forma de coração da Gingko do Jardim da Estrela. 
No nosso jardim. 
Onde nos conhecemos. 
Onde casámos. 
Onde achei que nunca mais poderia ir depois do que aconteceu há oito anos.

O médico, na primeira urgência para onde corremos, no Hospital onde a Carolina nasceu, disse - não consigo esquecer-me disto nunca: 'Descambou'.
A confirmação que a gravidez era 'não evolutiva' surgiu na urgência da Maternidade Alfredo da Costa, ao cair da noite de dia 31 de Dezembro.

Os primeiros bebés do ano nasciam.
O meu não nasceria.

Não conheço palavras - creio que estão por inventar; são mais esgares - para conseguir descrever o vazio do gabinete, e da imagem silenciosa, escura, vazia que o ecógrafo revelava. 
O meu coração partiu-se.
Senti o estalo, e a dor física, sufocante, generalizada, pelo corpo todo, em convulsão, a serpentear-se.

Quando a porta da urgência se abriu estavam as pessoas a quem devo o mundo: a Hermínia e a Teresa. Apararam-me. Nos meses que se seguiram foram elas que me ampararam.

Em casa, o Stucky, que vivia connosco no sofá da nossa casa de Santa Marta, tinha feito lentilhas para o jantar. Passou-me para a mão o Santo António que era da sua amada mãe, e entregou-me um caçador de pesadelos que trazia sempre consigo e que está sempre à minha cabeceira.

Passaram-se dias e dias.
A primeira noite foi a pior delas todas: o desgosto vinha às golfadas, marés vivas de dor latejante.

O médico falou de estatísticas absurdas, que a culpa não era de ninguém, que a Natureza era sábia, que tudo ficaria bem, que eu ia esquecer. Advertiu também que não era expectável conseguir engravidar até ao Verão.

Senti-me sozinha como nunca me senti.
Por vezes senti-me ridícula com as proporções daquele luto.
Senti-me por um fio, a enlouquecer.
Nunca senti uma dor tão grande.

Trouxe a mim toda a tristeza do mundo.
Acredito que o João tenha querido um bocadinho dela para si também, mas eu açambarquei-a toda para mim sem pensar em mais nada – era eu, a minha dor, o meu desespero e a minha desesperança. Queria-os todos para mim. Como um castigo, uma penitência.

E três meses depois estava grávida do António.
Não consegui ficar feliz: vivi permanentemente aterrorizada e a culpar-me ainda mais por não estar feliz, como era devido e merecido. Levei os nove meses de gravidez do António de luto carregado, a chorar diariamente pelo meu filho que não nasceu.

Na primeira ecografia, a da confirmação da gravidez do António, surgi o primeiro sinal que ele era um anjo que vinha para me resgatar do pântano triste para onde eu me deixava arrastar. A data prevista do parto era o dia 31 de Dezembro, um ano depois do dia mais triste de toda a minha vida.
Mas eu não via isso como uma segunda possibilidade, um atalho para a felicidade imaginada e interrompida; interpretava-o como um presságio, como uma maldade do destino, a gozar sem vergonha com a minha cara e com o minha dor.

Todos os dias, de manhã, durante 39 semanas de gravidez, enfiava-me no carro e percorria a Almirante Reis pelo rio, até Belém, a ouvir a mesma música em repeat one, e todos os dias me concedia o direito de chorar, sem rédeas, até ao desligar do motor do carro junto aos jardins do Império.
Recompunha-me o suficiente, e fazia um esforço para esconder o desgosto que não diminuía com o crescente volume da minha barriga e da vida que gerava no meio de tantas lágrimas e tanto medo.

Inexplicavelmente pari a criança mais feliz do mundo.

A cinco dias do Natal, o António foi-me arrancado do ventre, no parto mais traumático e também mais libertador de todos. Houve complicações e durante horas acreditei que morreria. O tempo todo em que estive consciente, entre tremores violentos e maquinarias que berravam incessantemente, em alarme constante, lembro-me de me deter naquele pequenino sereno ao meu lado. Queria recordar tudo antes de partir. Não deixei que o João saísse da sala vigiada por um segundo – achei mesmo que morreria. Sei agora que me libertava de tudo pelo que tinha passado.

Mas o António - que se chama António nem sei bem porquê, porque nunca gostei deste nome - nasceu miraculosamente protegido de toda esta dor e terror que eu tinha de o perder também a ele.

E eu vivi, sobrevivi àquela madrugada de há oito anos, e à outra em que há sete anos o António nasceu.

Os dias passaram-se. 
A história continuou. Houve becos e houve reviravoltas. Houve dias muito felizes. Ficou tudo bem, como garantiu o médico da MAC naquela noite. Mas o tempo não perdoa nem acalma a perda: eu trago tudo isto tatuado, segue sempre comigo, está sempre comigo, geralmente só comigo, ainda me vergasta uma espécie de dor que é paralisante, que abre a velha e incurável ferida. 

Hoje soube que era a hora de falar sobre ele, sobre o meu filho que não nasceu. Ele faz parte da nossa história - e nunca, mas mesmo nunca será esquecido.


Eu sou a irmã mais velha, diz a Carolina.

No outro dia, o meu filho António fez sete anos.

Estava a levitar pelos disparates que inventa para me fazer rir, num bajulanço que é quase idolatria religiosa, e eu perguntei-lhe:

Meu amor, como é que tu és tão feliz?
Mostrou-me a língua, revirou os olhos, e bateu as pestanas. Desenhou-se uma cova na bochecha deliciosa.

Então, eu contei-lhe esta história:
Tu és o segundo filho, mas não és o segundo filho.
Quando tu vieste do céu para a minha barriga, a mãe tinha estado grávida, de um outro bebé, que não nasceu. A mãe estava muito feliz por tu vires, mas estava também estava muito triste pelo bebé que não tinha nascido. Eu acho que tu vieste para me fazer sorrir outra vez. Diz-me lá como é que tu nasceste tão feliz, quando a mãe estava tão tão triste?

É simples.
É que o(s) meu(s) segundo(s) filho(s) é (são) anjo(s).


E não há um dia dos últimos oito anos que eu agradeça por ter ambos na minha vida.

Meu amor, como é que tu és tão feliz?
Bom Ano para todos.

(David, Inês - Obrigada por me terem ajudado no dia 20 de Dezembro de 2008 e em todos os anos que já nos conhecemos)

6 comentários:

  1. Bolas, fizeste-me chorar, outra vez como uma madalena. Passei exactamente pelo mesmo, uma filha, uma segunda gravidez, um aborto e 3 meses depois nova gravidez. O medo, o medo foi mesmo a parte pior: que terei feito? posso fazer isto? o bebé mexeu? porque não mexe? e 7 meses depois nasceu...e ficava a ver-lhe o peito a subir e a descer, não dormia porque a queria ver respirar... Passaram quase 10 anos e ainda dou por mim a levantar-me a meio da noite para lhe ir espiar o sono. Por onde andavas há quase 10 anos quando podíamos ter partilhado aquela dor imensa que sufoca?

    ResponderEliminar
  2. Ainda bem qur conseguiste pôr em palavras aquilo porqus tantas de nós pasaram, tristeza e sofrinento muitas vezes imcompreendidos, muitas vezes ate por aqueles que nos são próximos. A dor da perda fica lá sempre,sempre. Beijod

    ResponderEliminar
  3. Durante 6 anos tentei ter um terceiro filho. Infelizmente não consegui. Engravidei 5 vezes, sempre não evolutiva. Sempre que comentava com alguém só me diziam já tens dois, para que queres mais.
    Agora já não faço mais tentativas (já tenho 40). Nunca pude seque ficar triste, afinal já tinha dois porque raio havia de chatear alguém com a minha tristeza de uma "futilidade" de querer ter um terceiro filho....
    Sei bem o que é uma gravidez não evolutiva. Passei 5 vezes por isso...

    ResponderEliminar
  4. Que texto tão bonito :') e que final tão feliz. Tudo de bom <3

    ResponderEliminar
  5. Lindos!!! Que farra... adorei, felicidade é tudo.

    ResponderEliminar