'Bom dia, República!", diz a Princesa Aurora. FOTO: A Família Numerosa. |
Os meus filhos são crianças com consciência política. Como todas as crianças, aliás. Não conheço nenhuma que não tenha uma consciência política inata, a revelar-se nos pequenos detalhes e desde os primeiros dias de vida. Não é precisa lupa ou faro apurado: basta estarmos atentos às pequenas nuances destes pequenos e adoráveis seres. Somos animais políticos e eles são aprendizes de feiticeiros. E eu nunca li Platão para sabê-lo.
Há um déspota iluminado e um ditador sul-americano em cada um dos meus filhos.
Coexistem, na verdade, vários sistemas políticos nesta família.
Eu por vezes também suspendo a Democracia de manhã e instauro uma Ditadura Militar à hora de deitar.
Há regimes para todas as ocasiões; é à escolha do freguês: elas são princesas e ele é o príncipe perfeito.
Sem títulos, sem brasões, sem sangue real ou apelidos catitas, nós, os pais, por vezes somos do povo, aquele que trabalha o dia inteiro em troca de um salário que não cresce como com os bolos que faço na cozinha aos fins-de-semana, carregando no fermento, e que não estica, como as calças pingonas do chinês, que dão com tudo e resistem às minhas flutuações de peso entre gravidezes, amamentações, dietas loucas e outros disparates diversos.
Esta vida não é uma incrível bolha mágica do País das Maravilhas o tempo todo, 24 horas por dia, e por vezes roça a escravidão.
Somos escravos de muitas coisas, elementares, básicas, corriqueiras, comezinhas - somos subjugados pela roupa e loiça suja (anda para aí um anúncio de televisão a um detergente de máquina de lavar a loiça genial que fala deste ciclo interminável de sujidão), e no gigantesco mês de Setembro, o mês de todas e das mais sufocantes despesas, com quatro crianças na escola, rendemo-nos à evidência que precisávamos de uma máquina de lavar a roupa de 11 kg para deixar de fazer duas máquinas por dia. Vivemos agrilhoados aos banhos e às rotinas básicas de uma família qualquer, e que incluem o planeamento e a elaboração de refeições, e também as inesgotáveis actividades e experiências diversas - lúdicas, culturais e de toda a ordem - que os nossos amos pequeninos nos exigem. Sem chicote.
Vivemos em permanente luta de classes nestas quatro paredes.
E às vezes ascendemos na longa escada social e sentamos o nosso rabo burguês num sofá magenta um bocado desconfortável, e respiramos fundo, todos satisfeitos por tudo o que temos, por tudo o que alcançámos em 37 anos de vida e nove de vida em comum.
Partimos com um avanço considerável e a nossa felicidade não é a mera listagem e contabilidade de tudo o que temos; a equação é mais complexa e concede maior ponderação ao que somos. E somos mais, muito mais do que a soma das partes. Essa é a magia de uma família grande.
Mas é fácil, foi mais fácil para nós porque nós já nascemos burguesinhos. E os meus filhos - deixemo-nos de rodeios e de tretas; temos que ter noção da situação de privilégio e as águas calmas pelas quais navegamos sem tormentas de maior - também.
Temos uma casa grande, com quatro quartos - um improvisado, mas são quatro quartos, não deixa de ser um luxo -, num bairro chique, um apartamento que não pagamos, porque nos foi oferecida, assim de mão beijada, pela minha mãe. E essa casa, cheia de coisas bonitas, algumas velhas, outras de família, e ainda uns tarecos iguais a todas as outras casas, que comprámos na loja sueca, é a base de tudo. A nossa sorte começa aqui.
Depois, conduzimos dois carros muito velhos, mas que não deixam de ser dois carros, oito rodas, dois motores, com seguros, gasolinas, revisões e inspecções feitas (infelizmente ou felizmente, não temos um Volkswagen). Há quatro computadores cá em casa (dois muito velhos e dois em segunda-mão), um smartphone de 99 euros com o monitor todo estilhaçado e uma bateria viciada e um tablet Android oferecido a uma criança com seis anos.
Há orçamento suficiente para uma despesa inesperada - como uma junta da cabeça do motor queimada, ou um aparelho fixo nos dentes da mais velha -, e ainda sobra qualquer coisita para um indecente rodízio de carnes sul-americanas (onde as duas mais novas não pagam e o do meio só paga metade).Depois de tantos anos juntos, até conseguimos, finalmente, fazer umas férias na Europa, e lá fomos ao sol da meia-noite da Noruega (bela pontaria para um destino tão caro quanto civilizado).
Não é só o regime político e a classe social que estão em constante mudança nesta casa.
O sistema económico também passa do capitalismo selvagem, do consumismo desenfreado, para a troca directa, e para o consumo responsável e sustentável, sem fundamentalismos quanto ao óleo de palma, sacos de plástico e outras maradices biológicas (tudo o que é demais é moléstia).
Os Manos Ralha - serão eles os próximos irmãos da Política Portuguesa? Por enquanto ficam-se pelo consenso das bolas-de-Berlim. Foto: A Família Numerosa. |
E tudo isto a propósito de eleições.
As voltas de sempre.
Eu não estava preparada para comprar um soutien para a minha filha mais velha há um ano, e também não estava à espera que aos onze anos de idade ela me perguntasse:
'Qual é a diferença entre a esquerda e a direita?'
Os meus filhos têm muita consciência política.
A culpa é nossa. Não a praticamos em São Bento, nem nos Paços do Concelho da mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa - o que é uma pena até; não tenho a menor dúvida que seríamos inacreditáveis políticos, em bancadas opostas -, mas ambos vivemos a Política com um fervor religioso, um entusiasmo contagiante. E isso não tem nada a ver com partidos. É um estado de espírito, uma predisposição. E as crianças, adoráveis esponjinhas aparentemente desligadas da realidade dos 'adultos' percebem tudo, apanham tudo.
Duplicámos o tamanho da nossa família durante a estadia da Troika neste rectângulo: a Aurora e a Isaura têm como madrinhas a tia Austeridade. Escusado será dizer que a madrinha não manda folar pela Páscoa e no Natal nem umas míseras peúgas.
Filha da Troika. Afilhada da Austeridade. Vestida para votar num dia de Outono de Outubro. Foto: A Família Numerosa. |
O António e a Carolina (sem esquecer o cão Cenoura) participaram, que me lembre, em pelo menos duas gigantescas manifestações de indignados, e sempre que passam pela Assembleia da República gritam: "Olha o Povo Unido!" (o pai faz sempre questão de os avisar que o povo já foi vencido, no picanço).
Nas últimas autárquicas, fizemos, durante a licença de maternidade da Aurora e a partir da nossa casa sem água potável de São Félix, em São Pedro do Sul, o projecto Sexy Autárquicas, que saiu em todos os jornais e televisões, e concluiu, sem margem para qualquer discussão, que há uma maioria absoluta à esquerda se os programas eleitorais se resumissem à beleza, e que o PCP é uma incubadora de borrachos.
Foi também nessas autárquicas que, pela primeira vez na vida, estivemos todos, sem excepção, ao lado do Partido Socialista, na candidatura do nosso gigantesco amigo-para-a-vida Pedro Coelho dos Santos à Câmara Municipal de Sobral de Monte Agraço (sim, aquela terra dos parques infantis e das cartas de condução duvidosas). Com comícios, arruadas e jantares-convívio incluídos. A amizade tem destas coisas, que transcendem ideais e convicções políticas.
As minhas crianças percebem mesmo muito de Política.
Sabem reconhecer o Passos, o Portas, o Costa, a Marilu, como carinhosamente chamamos a mulher-de-ferro das Finanças portuguesas, e têm um gigantesco núnero de professores candidatos e cabeças-de-lista pelo PAN. Ainda se lembram do Gaspar e das maldades colossais que nos fez, e nestas Legislativas passaram a reconhecer a Catarina e a saber qual a diferença entre uma sigla e um acrónimo. Aprenderam também o verbo 'concatenar' (a televisão e a campanha tem destas coisas também).
Os meus filhos, os vossos filhos são o futuro deste país.
Aos meus, ensino-lhes Política desde o berço, segue pela mama: rejeito a ideia de que os políticos são todos iguais e que a abstenção e o cuzinho sentado farão mais por Portugal do que os políticos possíveis neste momento. Talvez não sejam os melhores, mas são os que temos. E se a crise me ensinou algo foi que tenho que saber fazer o melhor possível com o pouco que me é apresentado. Isso abarca tudo, Política incluída.
Os meus filhos serão de Direita, de Esquerda ou de Centro, Monárquicos, Anarquistas, Revolucionários. Tanto faz. Os meus, os vossos filhos serão os Políticos do futuro.
Há cem anos anos as minhas três filhas não teriam direito a votar; eu e elas seríamos pessoas de segunda categoria.
Há 40 não havia eleições livres no meu país.
Núcleo do PAN na nossa casa. FOTO: A Família Numerosa |
Filha, não é simples a pergunta, e por favor a seguir não me peças para te responder se Deus existe e se há vida depois da morte.
Olha, não há ninguém de Direita, como a mãe, que não acredite na esmagadora maioria dos princípios que a Esquerda defende: a liberdade, a igualdade, a justiça social, o emprego digno, os direitos básicos, o progresso colectivo. As pessoas de Direita acreditam noutras coisas, no lucro, na propriedade e iniciativa privada, e depois em algumas em que eu não acredito nada. Lembras-te do cartaz dos idiotas do PNR? Lembras-te o que a mãe te explicou, que os refugiados não são terroristas, que não nos vêm roubar nada, como tinhas ouvido? Que tudo lhes foi roubado e que nós temos que ajudar? Pois, olha, nisso a mãe não é de Direita. A mãe gosta muito de imigrantes. A nossa querida D. Nargeeza é muçulmana e achas que ela é terrorista? Quanto muita acha-vos a vocês uns talibans!
O importante, filha, não é ser de Direita ou de Esquerda, de um partido ou de outro, como num clube de futebol. O importante é conhecer as propostas, ler os programas, ouvir o que esta gente tem para Portugal. O importante é votar. Sempre votar. Se calhar, umas vezes à Direita, outras à Esquerda. Saltar de um lado para o outro. Mudar de ideias. Acreditar. Desiludir. Voltar a tentar. Fazer a melhor escolha possível. Em consciência. Nunca desistir. Da Democracia. Promete-me que vais votar sempre. Que vais tentar sempre votar.
E Domingo de chuva, véspera da República, lá seguimos os seis para a escola primária colada à igreja, um cavaquistão em Lisboa, e nós, à boca da urna cheios de filhos, quem nos visse não teria dúvida: 'Olha que linda família PAF!"
E no entanto...
Não cabemos na maioria dos carros em circulação e em nenhum esterótipo...
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