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segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Sobre Viver (um post com serviço público lá para o último parágrafo)

Os anjos não têm costas.
Esta semana o bebé aprendeu a levantar-se. Não tarda nada caem-lhe as asinhas e começa a andar.
Foto: A Família Numerosa.

Ao longo da vida vamos engolindo muitas verdades que tínhamos como absolutas.
Esqueçam sapos que viram príncipes - engolimos sapos, não os andamos para aí a beijar.

A digestão dessas verdades que o deixaram de ser vai-se tornando cada vez mais fácil e menos peçonhenta, porque aprendemos muito com o desconforto da azia que sobe até às bochechas por termos feito figura de parvos, e a vergonha do descaramento e arrogância que tivemos ao achar que tudo sabíamos, do alto do pedestal do nosso ego.

Crescemos, envelhecemos e, à partida, se tudo estiver a correr pelo melhor, vamos ficando mais sensatos e com menos sangue na guelra. Ficamos mais abertos a ouvir o outro, os seus argumentos e, quem sabe, a mudar a nossa opinião sem vir mal ao mundo, sem trairmos os seres únicos e imperfeitos que somos, ou a desviarmo-nos da essência e do projecto em construção que vamos levando por esta existência fora.

Claro está, e daí a ressalva, esta é ordem natural das coisas, quando tudo está bem e encaminhado.

Vivemos e aprendemos. Mas nem sempre assim é. Não há nada mais tóxico do que apanhar com a amargura requintada e requentada da velhice, e ainda ontem tive que levar com a má onda pestilenta de uma velha bruxa, na minha aula semanal de hidroginástica, permanentemente zangada com a alegria contagiante da professora. 'A menina é jovem e não percebe como é que esta gritaria toda me perturba'. Tudo perturbava o raio da velha e dei por mim a desejar que ela tivesse uma caibra para não contaminar a água toda com aquele amargor.

Tentarei ser magnânima para a próxima. 

Durante muito tempo não estive tão aberta à mudança e à certeza de que posso sempre aprender alguma coisa com o próximo. Sempre me senti um extraterrestre em grande parte dos meios onde tive que me adaptar para sobreviver, e usei amiúde a soberba de uma pretensa superioridade intelectual para camuflar algumas das minhas fragilidades e fraquezas.

Não sou perfeita, estou muito longe disso, tenho é um caso severo e galopante de perfeccionismo, que não é bem a mesma coisa.

Não me esqueço nunca o desdém de dondoca afectada com que recebi, certo dia, a sugestão e ajuda que uma simpática cabeleireira me ofereceu para arranjar uma vaga numa creche para a Carolina. Mas a creche era no Intendente. E eu, feita parva, nariz empinado e emproado: «Ó Mila, mas eu tenho cara de quem põe os filhos numa escola no Intendente?»

Que grande idiota.

Pouco mais de ano separa esta cena que aqui conto em jeito de acto de contricção e o soluço monumental que a vida deu. Eu e o João encontrámos a casa mais bela de todas onde já deixámos um rasto da nossa história.
E era onde? No Intendente. 

A Carolina e o António entravam também na melhor escola do mundo: a Associação Pro-Infância Santo António de Lisboa (APISAL), a quem agora confio também a Aurora e a Isaura.
A tal escola que a Mila me falava depois de me cortar uma franja ridícula que me fazia parecer uma menina doce.

(Arroto, que tonta, que verdade absurda tão bem engolida)

No primeiro dia de escola, a Carolina tornou-se a rainha do primeiro ciclo - e eu recebi logo propostas indecentes dos catraios: 'Ela é tão linda!', disse-me um ao fim da tarde, pedindo-me permissão para namorar. Do lado oposto, na creche, entreguei o bebé gordo, anafado e mimado que era o António a uma mulher negra, de sorriso gigante e coração resplandecente, que se chama Abi.
Ela abraçou-me e secou-me as lágrimas da separação, garantiu-me que não o deixaria chorar. E não deixou mesmo. Algum tempo depois soube que adormecia o seu 'Antoine' ao colo, às escondidas, no seu colo fofo.
É um privilégio ter uma ajuda destas, uma verdadeira escola dos afectos, ali no mal-amado Intendente.

A Isaura com a boneca Abi. Foto: APISAL.

Muitas, tantas outras vezes estive errada nas minhas bujardas e sentenças, e preciso ainda de confessar esta. 

Quando estava grávida do António lembro-me da perplexidade inflamada que exprimia pela opção da minha vizinha Helena, tão jovem, tão trabalhadora, e a caminho do seu sexto filho. Agora sou eu que tenho quatro e atinjo que não é nenhum bicho de sete cabeças. Frases-feitas como 'eu não tenho capacidade para ter mais do que dois filhos', ou 'os miúdos pequenos dão cabo do casamento e do romance', entre outras pérolas, são redutoras, vazias de significado. Para mim, que me vi confrontada com este fabuloso destino, deixaram de fazer qualquer sentido: não me revejo e não me venham dizer que tenho super-poderes, porque não tenho. E as certezas inabaláveis sobre aquilo que vai ser o meu futuro e a minha vida não as tenho.
De repente, tudo muda. 

Haja o que houver tento ter mais tento na língua. Ainda não cheguei ao ponto em que escuto mais do que falo, mas para lá caminho.

É fácil cagar sentenças, alimentar o monstro do preconceito. 

«Devem ser do Opus Dei», «Então mas não sabem o que é a pílula?», «Onde é que arranjam o dinheiro para alimentar aquela gente toda?»

Quando a família atinge as (modestas) proporções da nossa, temos constantemente um elefante na sala. E esse elefante grita-nos que temos que ir comprar leite, pão, fraldas, arroz, massas, carne, peixe... Iogurtes (meu Deus, tantos iogurtes!).

Também temos que vestir as criancinhas, que não aguentam a roupa de uma estação para a outra e, bolas, procriámos cedo de mais e ninguém raramente tem nada para nos passar; nós é que passamos tudo para os primos e amigos! Como já ninguém tem sótãos ou arrecadações - pelo menos quem decidiu ficar por Lisboa sem as comodidades da construção nova do subúrbio -, o exercício de guardar de uns para os outros é cada vez mais difícil (lá está, sobretudo quando já se teve que improvisar um quarto onde existia uma sala, porque houve uma filha linda que decidiu aparecer sem avisar os pais). 

É um constante malabarismo.
E o elefante sempre a chicotar-nos com a tromba para nos mantermos na linha e tocarmos a sineta para recebermos a recompensa pelo trabalho bem feito!

Ter uma família numerosa exige alguma organização e planeamento.
Não somos neuróticos com essa necessidade de planificar tudo ao detalhe - ninguém faz grandes listas, nem menus semanais (tenho um sonho de planificar refeições, confesso), não temos as roupas alinhadas por cores ou tamanhos (apesar de eu já ter tentado quando era solteira e boa rapariga), e também não organizámos a cozinha de uma forma muito lógica, e vemos isso pela inabilidade de a empregada que está connosco há uns cinco anos em dominar o mapa das canecas, pratos, copos ou os tupperwares.
Fazemos deliberadamente uns apontamentos de loucura e arbitrariedade à nossa vida e à organização do lar, porque, caramba, de outra forma, tudo certinho, seria uma monotonia em tons de cinza.

No nosso âmago, eu e o João somos uns despassarados com a cabeça no ar. Somos da matéria que se fazem os sonhadores. Mas vimo-nos obrigados a atinar para levarmos este empreendimento avante. Dominamos todas as burocracias com as Finanças e Segurança Social como ninguém. Vencemos esse labirinto e somos uma espécie de guru para os nossos amigos, que nos vêem como especialistas a vencer a turtuosa máquina do Estado. 

As compras para a casa são uma dor de cabeça, mas temos um ritual, com o qual me tento divertir, como num jogo de telemóvel de encaixar as pecinhas todas umas nas outras, ordenando o caos e ganhando pontos extra. Tiro mesmo grande prazer numa pechincha. Mais do que aquele que retiro ao comer um chocolate.

Nunca há monotonia no momento de encher a despensa e, com dois bebés a gastar fraldas, a escolha do supermercado passa simplesmente por apurar onde existem Dodot Activity com 50% de desconto. Não compro por menos de 50%, ou seja 9,99 euros. São as melhores fraldas do mercado, absorvem como nenhumas outras, e acumulo-as sempre que as encontro em promoção, até porque a pilha enorme de pacotes desaparece quase por artes mágicas (o provérbio 'Parece manteiga em nariz de cão' aqui seria 'parece fraldas em rabo de filhas'). 

Este fim-de-semana fomos ao Jumbo. Há duas semanas tinha sido no Lidl. (Abençoados sejam os grupos de Mães do Facebook e a solidariedade entre mulheres - Love you, For Moms!!!)

Foi uma decisão difícil e penosa, mas desistimos das compras online. Recorrentemente os artigos em promoção entram em ruptura de stock e não são entregues. Quando uma família baseia o seu carrinho de compras em promoções, deixaram de estar reunidas as condições para esta ajuda enorme que era fazer as compras pelo computador, pela madrugada fora se necessário fosse e sem crianças descontroladas a exigirem açúcar e snacks cheios de gordura e sal.

Outro dia o Continente deu-se conta que deixámos de gastar milhares de euros por ano no seu serviço online e, viajando perfeitamente na maionese, contactou-me telefonicamente pedindo-me para que perdesse uma tarde da minha vida para um focus group onde pudesse expor e avaliar o que tinha corrido mal!!!!
«Mas não podemos fazer isso por telefone? E por Skype? Não? Opá, vocês são engraçados: então acham que alguém vos vai aí dizer seja o que for??? Está a ver: as pessoas que fazem compras online não têm tempo para ir aos supermercados! Muito menos para estar enfiados em estudos de mercado!».
Enfim, CRM para loucos! Incompreensível.

O meu desencanto com a grande distribuição portuguesa e a Internet na era das promoções bombásticas sai-me do pelo. Obriga-me a perder parte da manhã de um Sábado ou de um Domingo nas grandes compras da semana (e são sempre grandes, mesmo que depois avie os frescos, a carne e o peixe na Praça ou nas mercearias / frutarias de bairro). Vou para arena do hipermercado com quatro crianças atreladas, duas em carrinho de bebé. É pior pesadelo para um jovem casal de pais já muito cansados da semana infindável de trabalho.

Mas tudo se faz. 
E no final do dia há uma sensação de superação e vitória que penso ser idêntica à de um atleta de alta competição.

Ao fim-de-semana os pais também têm trabalhos de casa: vassouras de Halloween pirosas!
O António sobrevive à bebedeira do cor-de-rosa... FOTO: A Família Numerosa.

Nas roupas, quem me conhece, sabe o meu histórico de pirosa em estado terminal. Não sou uma mãe que vive para os lacinhos do cabelo das filhas, ou para as carneiras dos filhos, mas gosto de brincar às princesas - e, minha gente, tenho três miúdas cá em casa: é a mesma coisa que pôr um drogado na Colômbia!

Quando tive a Carolina e a redacção do Público foi muitas das vezes o seu jardim-de-infância, a editora de Política dizia-me sempre, em jeito de gozo e provocação: «Mas porque é que tens que vestir a miúda de reposteiro?»
O tempo passa mas continuo a vestir as minhas filhas de reposteiro.
Não há cá leggings, nem gangas (só em último recurso), nem fatos de treino.

E sabem como é possível?
Porque me deixei de pudores e pruridos ao dado e ao comprado em segunda mão.
Para além dos grupos de Facebook específicos (com grupetas divinas, onde já fiz belos negócios e boas amigas), há uma coisa extraordinária que bate tudo, chamada Humana For People (tem quatro lojas no eixo da Avenida Almirante Reis - desde o Areeiro, passando pelo Chile, em frente à Portugália, e acabando no Intendente).

Passo agora para a parte deste texto de serviço público: esta semana a Humana está a despachar duas peças de criança (quaisquer que sejam as peças - casacões de Inverno incluídos) a 2 euros. Ou seja, cada peça custa uma moeda de eurito - nem um queque se compra por um euro hoje em dia.

Minha gente, a renovação de Outono da Isaura e da Aurora custou seis euros.

Olha eu a fingir que sou um blog de moda, a preços da uva mijona!

Quatro vestidos de boas marcas e duas malhas: meia dúzia de euros. Imbatível. A Farrusca não está à venda. Foto: A Família Numerosa


Isto é não é sobreviver; é sobre viver. É saber viver.


5 comentários:

  1. Na leitura do mesmo post soltei gargalhadas e veio-me uma lagriminha ao canto do olho...Até que enfim há uma mãe que não se apresenta como benzoca e larga a difundir as marcas com que "preenche" as crias desde o laço grandão até às menorquinas nos pés! Gosto de seguir uma família tão diferente da que criei e intimamente tenho um pouquinho de inveja dessa "bagunça" de amores...E os seus filhos são mesmo lindos!!!

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    1. Mariana, Obrigada pela visita e pelos piropos e invejas das boas :)
      Não há fórmulas mágicas - cada vez mais defendo isso. Nós, por entre esta bagunça descobrimos o que funciona para a nossa família :))
      Beijinhos!

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  2. Cada texto deste blog é uma preciosidade ... tão bem escrito, tão bonito, tão comovente

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