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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Ocaso - A Odisseia

Ulisses virava muitas vezes a cabeça para o sol que tudo ilumina, desejoso de ver o ocaso: pois só pensava no regresso
Homero, Odisseia, trad. Frederico Lourenço, XII, vv.28-30.

Dia 3 da Odisseia. 53 anos separam avó e neta. Só mesmo meio século e três anos as separam: são em tudo idênticas. 

Regressar a casa.
Ulisses só queria voltar a casa. Esse desejo norteou-o, guiou-lhe os passos na sua incrível Odisseia. Guerras sangrentas, ciclopes, sereias, feiticeiras, a ira e a compaixão dos Deuses, profecias e prenúncios, esperança e coragem, desespero e agonia. Mas Ulisses, o herói da grande Odisseia, empreendeu toda as suas forças e engenho para voltar a casa.

O ocaso. 
Ulisses desejava o ocaso, o dia a quedar-se no horizonte.
O dia que nasce e ilumina tudo nada encerra: traz consigo a angústia do leque aberto com todas as possibilidades. Depois há dias para todos os gostos - há dias mornos, em que nada de extraordinário acontece, há dias de tempestades no mar e na terra, em que a força dos Deuses se faz sentir como um rugido das profundezas mais longínquas do coração da terra. Há dias em que sol corta como uma faca afiada, e outros há em que se limita a aquecer a alma e a guiá-la por atalhos piedosos que encurtam a viagem. 
Os dias deixam tudo em aberto. Mas o ocaso encerra sempre um dia da jornada, um dia a menos para o chegarmos ao sítio onde somos esperados. E somos sempre esperados algures.

Dez dias passaram desta Odisseia. 
Ulisses esperou dez anos e outros dez para voltar a Ítaca.
Connosco os Deuses foram mais brandos.

Teria talvez a idade da minha filha mais velha quando eles, os Deuses, me acordaram com um ruído ensurdecedor que me fez expandir os pulmões em toda a sua capacidade, e abrir muitos os olhos com uma explosão de negro da pupilas, num acto de automática sobrevivência. 

Uma tarde destas, uma mulher sofrida descrevia-me em detalhe o momento em que sobreviveu e, acto contínuo, renasceu, numa cama de hospital. Ouviu, segredou-me ela, o barulho das suas pestanas a baterem umas nas outras, como as asas de borboleta. Nessa manhã em que eu era menina e, que agora recordo, numa odisseia pelas minhas recordações mais profundas, cicatrizes que não podemos - espero - esquecer ou camuflar, levantei-me da cama em sobressalto e alarme, e fui atingida, à porta do meu quarto, pela primeira imagem de caos em que a vida se pode transformar, de um breve instante para o outro: os gatos da minha mãe haviam tombado um frasco de vidro muito alto e estreito, recheado de berlindes e abafadores de vidro de todas as cores (os meus favoritos eram os nacarados, como as pérolas), que, libertos, rolavam, esgazeados e barulhentos, numa maré-viva descontrolada por toda as assoalhadas da nossa casa.

Os guelas andam por aí soltos há dez dias.

Era um dia de chuva, o mar estava revolto, zangado, e eu revoltada e zangada com ele, porque não era dia para maus fígados de Neptuno. 

Acabara de casar a minha madrinha de casamento -- feiticeira que me ajudou a passar ilesa por mares povoados de sereias mortíferas, para poder chegar à porta de um prédio de seis andares com vista para o Jardim da Estrela --, quando o telefone tocou, e o frasco de berlindes se estilhaçou de novo aos meus pés, com um estrondo tão forte como o de um relâmpago de uma trovoada seca de Verão.

Só que agora eu não era menina, mas tinha comigo quatro meninos, que não podia assustar com o pânico que me invadia e rebentava, uma a uma, as mais automáticas funções do meu ser: falar, respirar, mexer os braços e as pernas, piscar os olhos (ouvi, porém, as minhas pestanas a bater umas nas outras, numa agitação de asas de colibri).

Fiquei congelada, o sangue fugiu-me das bochechas, e uma tontura quis levar-me a dançar uma valsa louca. Fiquei a olhar fixamente para os olhos do João, e contei-lhe detalhadamente por telepatia o que acabara de acontecer. Fiquei à espera de uma ordem dele para começar a reagir. Rápido e coordenadamente, sem atropelos, ou pânicos.
A bebé chorou e eu dei-lhe de enfiada duas papas da Bledina. Talvez tenha batido o recorde de dar papas Bledina do mundo. 

O tempo parou, ou eu parei-o para conseguir processar tudo.
O espaço também se bifurcou, na sua linha contínua: noutro local, precisamente ao mesmo segundo, a minha mãe estava a ter um AVC, ia a caminho do hospital, já perdera a capacidade de falar. E nós acabáramos de casar a nossa amiga Teresa, madrinha do nosso casamento, havia pétalas de rosa e arroz no chão, frente ao mar revolto da Linha, e ela seguia tão bela e feliz para o copo de água onde eu não a poderia beijar e abraçar.

Nesse instante, o dia ainda ia a meio, o sol debaixo das nuvens carregadas, acabar de chegar ao seu ponto mais alto, mas eu passei apenas a importar-me com o ocaso, no dia que se encerra e encurta o caminho escarpado que falta trilhar.

No primeiro pôr-do-sol pedi a cada um dos gatos da minha mãe uma vida emprestada. 
Não lhes custava nada: têm tantas, e eles, obviamente, nem hesitaram, tão aterrorizados pela possibilidade da perda como eu. Acederam. Estou-lhes grata.

E depois veio o ocaso. 
Tudo passou a centrar-se no ocaso seguinte.

A noite, claro, foi dura: foi a mais dura e escura de todas as noites. 
Fumei de enfiada, à janela, todos os Português Suave amarelos da minha mãe. Do alto do vertiginoso sétimo andar sobre Alvalade, piscou, pela noite fora, um clarão intermitente vindo de um candeeiro de jardim, que encadeou todos os meus sentidos, que já de si funcionavam descompensados, em modo de sobrevivência.




Guio toda a minha vida por sinais, escolho o certo e o errado pela lente de uma intuição bacoca, quase infamtil. Mas a realidade é nesse dia eu que tinha os sentidos, incluindo o sexto, em curto circuito, como o candeeiro do jardim. A desesperança tomou conta da noite, quando, entre o fumo do cigarro, me deixei hipnotizar pela luz morrente do candeeiro do jardim. Assim interpretei o clarão.

Por instantes, por longos instantes, acreditei que o pior ia acontecer, e revivi o momento em que a minha mãe passou por mim e pelo meu irmão, mudos, à porta do corredor dos cuidados intensivos, com o olhar desesperado de quem está preso em si, sem se conseguir libertar, e sem ter sequer a capacidade de gritar um ai. Acreditei que o prenúncio do dia de tempestade, do ano terrível que já me levou tantas pessoas, continuaria no seu propósito devastador, imparável.

Mas não eram as intermitências da morte: li tudo mal; era um farol que a guiava pela noite mais longa de toda a sua vida.

A luz do dia seguinte, a tal que tudo ilumina, trouxe angústias, receios, dificuldades.
Chamam-lhes sequelas. 
É esse o termo médico apropriado.
A cada ocaso uma conquista, um dia a menos para o regresso.

Sou, neste momento, uma menina-soldado, assustada e em permanente modo de luta armada.
Nunca estive tão frágil e vulnerável, nunca precisei de tanto da minha mãe, nem mesmo quando nasci. Enfrentei a sua mortalidade e, portanto, enfrentei também a minha própria mortalidade. Trago as lágrimas guardadas num poço sem fundo, para o dia em que, finalmente, possa libertar as represas, num alívio violento. Travo uma guerra, a minha pequena odisseia, desde a primeira hora de luz até ao próximo ocaso: o dia em que me tornei mãe da minha mãe chegou. 

A minha mãe sobreviveu. Renasceu há dez dias e já regressou a casa.

A cada ocaso continua a sua odisseia.

2 comentários:

  1. Diana, espero sinceramente que ela consiga recuperar bem, e que daqui uns tempos seja só um susto que passou. Força e coragem para a vossa luta.
    beijinhos
    Alexandra

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    1. Alexandra, Obrigada pela força. Por enquanto ainda é uma montanha-russa de melhoras e recaídas. Mas acredito que vamos superar este susto. Um beijo enorme.

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