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terça-feira, 24 de março de 2015

'As mães são as mais altas coisas que os filhos criam' - Herberto Hélder

'As mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos'. A minha mãe está em todo este blog. Ela é a mais alta coisa que eu criei. Foto: Manuel Oliveira 


No sorriso louco das mães batem as leves 
gotas de chuva. Nas amadas 
caras loucas batem e batem 
os dedos amarelos das candeias. 
Que balouçam. Que são puras. 
Gotas e candeias puras. E as mães 
aproximam-se soprando os dedos frios. 
Seu corpo move-se 
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões 
e órgãos mergulhados, 
e as calmas mães intrínsecas sentam-se 
nas cabeças filiais. 
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado 
vendo tudo, 
e queimando as imagens, alimentando as imagens 
enquanto o amor é cada vez mais forte. 
E bate-lhes nas caras, o amor leve. 
O amor feroz. 
E as mães são cada vez mais belas. 
Pensam os filhos que elas levitam. 
Flores violentas batem nas suas pálpebras. 
Elas respiram ao alto e em baixo. São 
silenciosas. 
E a sua cara está no meio das gotas particulares 
da chuva, 
em volta das candeias. No contínuo 
escorrer dos filhos. 
As mães são as mais altas coisas 
que os filhos criam, porque se colocam 
na combustão dos filhos, porque 
os filhos estão como invasores dentes-de-leão 
no terreno das mães. 
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos, 
e atiram-se, através deles, como jactos 
para fora da terra. 
E os filhos mergulham em escafandros no interior 
de muitas águas, 
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos 
e na agudeza de toda a sua vida. 
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa, 
e através dele a mãe mexe aqui e ali, 
nas chávenas e nos garfos. 
E através da mãe o filho pensa 
que nenhuma morte é possível e as águas 
estão ligadas entre si 
por meio da mão dele que toca a cara louca 
da mãe que toca a mão pressentida do filho. 
E por dentro do amor, até somente ser possível 
amar tudo, 
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor. 

Herberto Hélder, excerto do poema «Fonte», publicado em A Colher na Boca, 1961


Herberto Helder no incrível Projecto "Os Poetas"

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