Quem faz um blog fá-lo por gosto

sábado, 21 de março de 2015

O primeiro dia do resto da nossa vida

Tu e eu. Foto: A Família Numerosa.


Há nove anos um ponto de exclamação mudou toda a minha vida. Uma sinalefa semeada à visita 50.000 do meu blogue sombrio.
Ele era revisor tipográfico e pouco depois de o conhecer deixei-lhe este pedido, uma espécie de oração dos aflitos:

Revê a minha vida toda.
Suprime parágrafos inteiros se for preciso, elimina delírios que não acrescentam nada à história, semeia pontos finais que eu não tenho nenhuns em stock já não sei há quanto tempo, passa o cortador de vírgulas pelos campos floridos da minha história, põe-me os pontos nos ii, assinala a caneta encarnada, com pontos de exclamação, a mania inexplicável e analfabeta que tenho de escrever “trancinhas” com cedilha (e eu sei que gostas de reticências: na última página, na última frase, colado à última palavra, tens autorização da escritora para fazer uma orgia de três pontos colados uns aos outros e não vou queixar-me à editora, agrada-me a ideia de a história ficar em suspenso, de não acabar nunca, de ser interminável)

Dorme com este livro à cabeceira, não o revejas com pressas, não aguarda publicação, não vai nunca descansar a lombada nos escaparates das livrarias, nem será autografado numa qualquer edição da Feira do Livro – revê bem, porque só há uma edição, de autor, e tem capa de couro, como tu gostas, centenas e centenas de folhas cosidas umas às outras com linha branca, foi impresso em papel de 75 gramas por metro quadrado numa tipografia velhinha e farrusca da Mouraria, foi um homem sábio de olhos azuis, cabelos crespos muito brancos, gengivas cor-de-rosa e bata cinzenta pintalgada de negro, quem montou as letras de chumbo, com amor, num tabuleiro, e depois as forçou a abraçarem-se às folhas num beijo quente, e fez isso porque eu o mandei, porque eu quero que este livro possa ser lido com os olhos, quando há luz das lâmpadas ou do sol, ou pelo tacto, com as cabeças dos dedos, quando a noite cai e os dias começam.


E ele acedeu.
Com calma, com infinita paciência, com devoção e num acto de fé, sem quaisquer garantias mas com a força de todas as certezas, ele reviu tudo, como lhe pedi: passou o pente fino e deixou preso aos dentes e depois pela malha fina do coador, os despojos de dias tão tristes que vivi sem ele.

Esta é a nossa história.
Eu escrevo-a e nós vivemo-la cada dia tão intensamente que parece que nos conhecemos há bem mais do que apenas nove anos; talvez seja mais há nove séculos, sinto-o assim, um amor que vem lá de longe, de muito longe.
Ele dá-me lenha para a fogueira dos próximos capítulos e foi ele quem me ensinou a escrever num blogue cheio de luz e não de sombras e becos sem saída.
Não foram precisas novas letras, inventar outros sinais de pontuação. Se é entre escrever e viver eu prefiro viver.
Mas, passados nove anos - quem diria? - eu consigo viver e escrever.

!


Para quem não acredita em coincidências. 

2 comentários:

  1. Lindo. Maravilhoso, e eu adoro histórias de amor!

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  2. Este texto é um dos textos mais bonitos que li nos últimos tempos e olhem que eu leio bastante. Foi escrita com a inspiração mais simples e mais bonita, o amor. E de facto, o acaso é um fenómeno mesmo estranho ;) Parabéns pela família linda! E Parabéns por bordar com tanta atenção e amor a manta encantada que se chama vida. E por transpôr para palavras, o que muitas vezes " é invisivel aos olhos". Grata pela inspiração boa que emana dos seus textos!

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